03/04/11

Os Ponteiros de Saturno - 2ª Versão do Conto Individual - Sara Fernandes

Os ponteiros de Saturno-

Abriu os olhos, sabendo que estava cego. Num incómodo conflito de pestanas decidiu voltar a fecha-los. Passava-se algo de estranho.
O escuro sempre o presenteara com um conforto que as imagens excessivamente profundas que gravava naquelas telas brancas ameaçavam destruir. Aquele pedaço de tecido negro que tinha amarrado na parte de trás da cabeça tinha-se tornado no seu escudo.
No entanto, naquele dia, naquele momento, um sentimento que desconhecia tinha tomado conta de si. Uma curiosidade infantil, uma antecipação no peito. Parou de movimentar o pincel perdido e pousou-o. Hesitante, desapertou o nó que lhe emaranhava nos cabelos. Pouco a pouco, uma imagem torta e fria surgiu à sua frente, convidando-o a imaginar. Uma aragem gélida perfurou-lhe a pele, expandiu-se pelas suas entranhas e penetrou-lhe o coração. A mente acelerou, momentaneamente livre de uma prisão.

Não aguentou sonhar. Levantou-se com brusquidão, empurrando o cavalete, que caiu no chão poeirento. Sem pensar, foi levado a contemplar o mundo lá fora, através da janela. Era algo estranho e separado, trazendo-lhe pensamentos frequentes de que talvez a realidade acabasse na soleira da sua porta.
Mas naquele dia deixou os olhos sentirem-se atraídos por aquele anoitecer longínquo. Percorreu os céus com eles e perguntou a si mesmo se algo naquela imensidão estaria a testemunhar aquela lenta, mas inegável mudança. Perguntou se haveria algo escondido para além do frenético ritmo da Terra que, tal como ele, se deliciasse na lentidão sábia dos corpos.
As cores e formas do horizonte aglomeraram-se para dar origem a ideias, que se juntaram para desenhar o contorno daquilo que seria um sonho. Este, indefeso e sozinho no solo árido daquele coração, tentou, pouco a pouco, fazer nascer um sentimento.
Não.
Mesmo a tempo de evitar esta corrupção da mente, forçou-se a desviar o corpo. Respirou fundo para voltar ao ameno conforto da neutralidade. Sentou-se na cama e revirou o tecido áspero nas mãos, acabando por amarrá-lo ao próprio pulso.
Tinha a certeza de que tudo voltaria ao normal. Era apenas um dia fora do comum.
Repetiu este mantra para si mesmo, mas a concentração virou-lhe costas. Uma força invisível atraiu-lhe os olhos para as suas obras. As imagens eram tortas e desajeitadas, mas todas representavam o mesmo. O desejo que sentiu nascer dentro de si queimou-lhe a visão como gelo. Tentou olhar para longe, mas continuava aquela imagem flutuava, provocadora, na sua memória. Não demorou muito até ganhar vida e movimento.
A irritação subiu-lhe na garganta e borbulhou na sua pele. A tremer, tentou desfazer o nó que tinha dado, numa tentativa de voltar a pintar e fingir que nada se tinha passado, mas não conseguiu. Com uma força que preferia não ter, agarrou os seus cabelos e puxou-os, como se tal fosse arrancar de si a maldita criação. Levantou-se. Como um tornado que assola uma casa, atingiu tudo o que ousava existir. Os quadros foram arrancados das paredes, as telas partidas e os papéis rasgados num tremor aflito.
Quando toda aquela destruição parecia ter acalmado aquele fresco, insuportável e inútil sentimento, sentou-se de novo na cama, agora desfeita, e deliciou-se a pensar. Rendeu-se ao cansaço, após horas daquele pensamento incessante e sem qualquer efeito aparente que não fosse o de fazer surgir mais uma muito racional dúvida sobre a sua sanidade. Havia algo no ar abafado que o empurrava para o sono. Por isso, mal encostou a cabeça à almofada desfeita, sentiu todos aqueles pensamentos desvanecerem, para dar lugar a um flutuar para bem longe de toda a lógica.
No meio daquele silêncio, que só podia ter vindo de dentro da sua própria alma, tudo se tornou claro. Uma voz perdida tentou gritar-lhe que não sentisse, mas estava tão longe… Quase não a conseguia ouvir… Será que tinha entendido bem? Para onde fora voz? Talvez a tivesse imaginado.
Era melhor concentrar-se nas imagens.
A vida passou-lhe diante dos olhos, em gravuras sem cor.
A sua boca rejeitando um beijo. Molduras. Aquelas molduras vazias e de vidro partido que mantinha numa prateleira esquecida. Cada uma delas fora habitada por uma face bonita e sorridente. Cada uma delas representava uma tentativa falhada de sentir. E eram tantas…
A sua mão, rejeitando um toque. Longos cabelos que se afastavam.
Todas as caras bonitas e sorridentes, queimadas num qualquer cinzeiro, quando chegava a altura de mais uma derrota. Não se lembrava o que fizera com as cinzas. Tinha visto cabelos loiros, ruivos, castanhos, olhos redondos, amendoados, todos os formatos de cara e todos os tipos de narizes serem consumidos pelas chamas, como se fossem parte de um desfile de moda ultrapassada. Na verdade, era apenas assim que se sentia em relação a tudo aquilo: Eram apenas parte de uma galeria de diferentes caras bonitas, sorridentes e nada mais do que isso. Tudo passava por ele, como num desfile, mas nada lhe tocava.
Foi então que, de um recanto escondido de si, algo escapou por engano ou feito divino. Era uma praia? Havia uns pés descalços que tocavam na areia sem se sujarem. A água surgiu e recuou, serena, sem os levar consigo. Havia uma boca que traçava o seu perfil num fundo inexistente. Havia uns olhos…e uns cabelos.
E por fim, algo brilhante e puro, como uma luz.
Sim, era uma luz.
Quando acordou, o ar fresco da manhã enroscou-lhe, como água, à volta da sua pele. Quando piscara os olhos vezes o suficiente, apercebeu-se do caos que o circundava e lembrou-se da noite passada. Parecia ter sido há uma vida atrás.
Com uma vontade que nunca sentira, saltou da cama desfeita, ouvindo o roçagar das folhas amontoadas no chão, sob os seus pés. Era hora de mudar.
Os dedos amassaram centenas de papéis soltos, as mãos fizeram desaparecer todas as molduras partidas, os braços carregaram, mudaram e construíram. Quando o espaço que lhe pertencia portava, finalmente, alguma semelhança com a pessoa que agora lá dentro se movimentava, foi atraído pela janela. Tinha de sair.
Esta vontade louca, de uma vontade finalmente desencarcerada, tomou-lhe conta da alma. De mãos a tremer de coragem, desfez o nó apertado do tecido à volta do pulso e endireitou o seu último quadro - O único que sobrevivera à sua penosa e teimosa fúria da noite anterior. Levou a imagem bem segura na mente ao abrir a porta e atravessar aquela barreira invisível que já não existia. Com a lentidão de quem saboreia uma vitória, tornou perpétua a sua mudança. O vento soprou-lhe de frente, em boas vindas.
Mas não estava sozinho. Alguém se aproximava, silenciosamente. Eram aqueles pés descalços e a pele feita dos tons frios que conhecia melhor do que a si mesmo. O vazio em que se tornou o seu pensamento e o turbilhão de emoções no qual nadava o seu corpo deixaram apenas entrar uma memória não muito distante daquele último retrato. O corpo que admirara e prendera, no mundo emoldurado de telas sem valor, seguiu-o para a liberdade.

E então, como um relógio de ponteiros enferrujados relembrado de que a vida continua, Saturno moveu-se, finalmente, nos céus.

Sara Fernandes

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