Tudo começou quando aquele rapazinho e a sua mãe entraram na loja de música. Era Inverno. A rua estava coberta de um imaculado manto branco. Sentia-me aborrecida, farta de ali estar. Seria mais um dia igual aos outros com o entrar e sair dos clientes, se ele não tivesse aparecido.
- Demora o tempo que precisares, querido – disse a mãe.
O rapaz deambulou pela loja a ver se algo lhe agradava. O empregado viu-os e ofereceu-se para ajudar.
- Tinhas alguma guitarra em mente?
- Bem, eu estava a pensar numa Fender... – respondeu ele, com timidez.
- Ah, tens bom gosto. Olha, temos aqui uma.
Sentia-me desejosa de atrair a atenção daquele rapazinho. Ser usada, de novo. Ele esteve imenso tempo à procura da guitarra certa. O funcionário estava distraído a mostrar-lhe uma e foi aí que decidi deixar-me escorregar do suporte. Ouviu-se um estrondo enorme e o empregado veio logo até mim.
- Não sei como isto aconteceu. Desculpa a confusão!
- Não tem mal. É uma bela guitarra...
- Ah sim, é a Fender Stratocaster. A guitarra do Jimmi Hendrix! – respondeu o empregado com entusiasmo.
Deve ter havido alguma química entre nós, porque quando dei por mim, estava eu no banco de trás do carro, a caminho do meu novo lar.
Nos dias seguintes, eu e o David tornámo-nos inseparáveis. Era a menina dos seus olhos, a sua primeira guitarra. Às vezes, era difícil para a mãe lidar com o barulho lá de casa. “Mas valeu a pena”, pensou ela, ao ver o filho tão feliz.
Os anos foram passando e, claro, David também foi crescendo. Entrou para a faculdade, fez novos amigos e conheceu a namorada. Passei mais tempo no canto do quarto por causa dos estudos. Mas, sempre que podia, ele vinha tocar. É como se precisasse de mim para estar equilibrado. E eu dele, claro.
No entanto, a minha felicidade não durou muito mais tempo. Afinal, tudo tem um fim... até mesmo para uma guitarra.
A vida de David deu uma grande reviravolta, nos anos seguintes. Para começar, a mudança de casa. Eu, que passava a maior parte do tempo no cantinho do seu quarto, estava agora dentro de uma mala e transportavam-me para aqui e para acolá. Ah, e já vos disse que agora tenho irmãos? O David resolveu comprar mais algumas guitarras. No entanto, o motivo desta confusão toda era outro. Se eu tinha agora irmãos, o David ia ter um filho, o pequeno João. A namorada, que agora era sua mulher, estava grávida. E a barriga crescia a olhos vistos.
A nova casa tinha um sótão. E era aí onde eu ia ficar. Eu e o todo o equipamento musical. David passava algumas horas a tocar, não fosse ele músico tal como fora o pai.
Podia acabar a minha história por aqui e dizer que fomos felizes para sempre. Mas não foi bem assim. Dois anos depois do João ter nascido, surgiram alguns problemas financeiros. O novo álbum de David não estava a vender muito bem e o ordenado da Carolina não era suficiente para cobrir as despesas.
No correio, só havia contas para pagar. “Tenho de fazer algo...” pensou ele. “Quem me dera que o meu pai estivesse aqui... Ele saberia o que fazer.” Encontrava-se tão absorto nas suas preocupações que nem reparou na presença de Carolina.
- Más notícias?
David suspirou.
- Nada de mais... só contas.
A esposa abraçou-o e deu-lhe um beijo na testa.
- Se for preciso fazer horas extraordinárias lá no trabalho...
- Não! Eu trato disto, não te preocupes. Vou arranjar uma solução.
A verdade é que arranjou. Começou por vender alguns dos seus equipamentos de música: amplificadores, pedais e por fim... as guitarras. Sabia como lhe custava fazer isso. Vender uma guitarra era como perder um pedacinho de si próprio. Enquanto isso, ele tentava trabalhar no novo disco.
Meses depois, o seu grande amigo Pedro foi lá a casa comprar uma guitarra. Nunca mais me esqueci desse dia.
- Tens aqui boas guitarras.
- É verdade... – respondeu David, meio nostálgico.
De repente, o Pedro estacou à minha frente e perguntou:
- Gosto desta! Quanto é que queres por ela?
David engoliu em seco.
- Vá lá, pago-te o dobro por ela.
Nem queria acreditar no que estava a ouvir. Pior ainda, quando o vi a ponderar o assunto. Eu que o vira crescer.
Uns minutos depois, estava eu no carro do Pedro. Ia para longe do meu lar. Se ao menos pudesse chorar... mas era apenas uma guitarra. Um mero objecto que pode ser facilmente descartado, tal como aconteceu.
A casa do Pedro era espaçosa, bem iluminada. No entanto, sentia-me uma intrusa dentro daquelas paredes. Acabei por ficar no quarto. Olhava para as fotografias na cómoda e nada me diziam. Quem eram aqueles estranhos? Iria ser este o meu novo... lar? Sentia-me destroçada. Mas mal sabia eu que a salvação chegaria vinte e quatro horas mais tarde. A campainha tocou ao final da manhã.
- Carol, que surpresa! Como estás?
- Olá, Pedro. Na verdade, não estou muito bem...
- Que se passa? Por favor, entra.
Sentaram-se os dois na sala. Nem queria acreditar que era ela!
- Queres beber alguma coisa?
- Não, estou bem assim. Obrigada.
Houve um breve silêncio. Depois, Carolina começou.
- Eu queria-te pedir um favor.
- Sim, diz.
Ela endireitou-se no sofá e prosseguiu.
- A guitarra que compraste ao David... eu gostaria de a ter de volta.
Pedro olhou surpreso para ela.
- Ouve, eu sei que não é muito correcto o que estou a fazer. O David nem sabe que vim aqui. Mas eu não suporto vê-lo naquele estado. Nós estamos com alguns problemas financeiros e ele só queria ajudar. Só que ... esta foi a primeira guitarra dele.
- Eu... não imaginava que as coisas estavam tão más. Podiam ter falado comigo. Vou lá buscá-la. Dá-me só uns minutos.
- Obrigada, Pedro... muito obrigada!
E foi assim que regressei a casa. David nem queria acreditar. Abraçou a esposa com tanta força que ela até refilou:
- Ai! Estás-me esmagar! - disse, rindo-se.
Depois, olhou para mim e disse-me baixinho:
- Nunca mais nos vamos separar. Prometo.
E manteve a sua promessa.
Anos depois, o novo álbum do David chegou às lojas. E, desta vez, foi um sucesso. Talvez vocês já estivessem à espera disso. David voltou a comprar guitarras e outros equipamentos de música. Ah! Quase me esquecia! A Carolina está grávida, de novo. Desta vez, de uma menina. Vai chamar-se Sofia. Aguardamos todos ansiosos a chegada deste novo membro da família.
David Ribeiro faleceu aos 87 anos. Para muitos, perdeu-se um músico. Para Carolina, perdeu-se um companheiro de vida. Para o João e a Sofia, perdeu-se um pai. Mas eu... perdi o meu rapazinho. A vida humana é tão... passageira.
No entanto, não julguem que sou infeliz. A casa do João é uma festa, agora que o pequeno Rui nasceu. Será que ele também vai ser um guitarrista?
Ana Catarina Nº41087
O conto está engraçado. Até agora li poucas narrativas em que a personagem principal era um objecto inanimado, mas todas elas me agradarem. O teu conto não é nenhuma excepção. Gostei sobretudo da parte final, em que a guitarra é herdada pelo filho do David.
ResponderEliminarContudo, tenho apenas alguns pontos a salientar. Reparei que costumas colocar um ponto final antes da adversativa "mas", algo que me causa uma certa impressão, sobretudo porque, quando lida, uma frase com uma adversativa não possui uma pausa assim tão grande que obrigue o uso de um ponto final (mas talvez eu esteja a ser demasiado picuinhas).
Ainda assim, o teu texto continua a ser bom.
Tal como o colega acima, achei muito interessante o facto da personagem principal ser uma guitarra e da história ser vista pela sua perspetiva. Houve, no entanto, momentos em que achei que este objecto sabia mais do que aquilo que estava ao seu alcance: tal como os pensamentos das outras personagens e a conversa entre Carolina e Pedro, que se passa na sala enquanto a guitarra está no quarto. Corrige-me se estou enganada, mas denotei uma certa semelhança com a trilogia de Walt Disney "Toy Story".
ResponderEliminarDe todas as formas, não deixa de ser um conto diferente e bastante amoroso.
37958
Pois, realmente foi um lapso meu a incoerência de perspectivas, por assim dizer.Mas já tenho a 3a versão, só ainda não publiquei.
ResponderEliminarQuanto ao Toy Story, bem... como não vi a trilogia, não posso comentar :)
Olá Ana,
ResponderEliminarAchei o teu conto bastante engraçado, especialmente por ser a perspectiva de uma guitarra.
No entanto houve uma parte que não pareceu bater certo: quando o David, já crescido e casado põe os instrumentos no sótão... Logo de seguida mencionas que ele é músico... parece um pouco incoerente. Acho que podias estabelecer uma ligação mais lógica, por exemplo fazer do sótão o estúdio do David, o que te parece? :)