Já passou tanto tempo desde a nossa última aventura. Sinto falta dos serões perdidos em planícies sem fim e montanhas vulcânicas. E aquelas batalhas campais em que tratávamos da saúde daqueles nabos que tinham a mania? Como sinto falta daquelas horas esquecidas...
Estávamos, mais uma vez, nas ilhas de “Sandstream”. Como de costume, à frente íamos eu e Créme, logo atrás vinha Hugs e na linha da retaguarda estavam Maya e Sun. Já tínhamos feito aquela masmorra várias vezes, mas ainda estávamos na fase de encontrar melhor equipamento, para podermos partir em aventuras mais árduas.
Quando chegámos ao fim da masmorra, a uns vinte metros diante de nós, estava o nosso alvo, o titã da cascata. Um monstro enorme, colorido por vários tons de azul e rodeado por sete vespas mutantes. Antes de nos lançarmos a ele, eu perguntei aos meus parceiros:
- Jovens, ainda se lembram da táctica?
- Mais oui, prrovoco as vespas e levo-as parra un cantinho – disse Créme.
- Já sabes, deitar abaixo inimigos voadores é a minha especialidade. Podes contar com o meu arco e as minhas flechas! – disse Sun.
- Feitiços de área. Entendido! – disse Maya.
- Quem julgais que sou? Óbvio que sei o que tenho de fazer! É só manter o nosso engodo vivo. Ide, usai o vosso florete e trazei a vitória ao nosso grupo mais uma vez – disse Hugs.
Tendo relembrado a estratégia para derrotar o nosso alvo, pusemo-la em prática. Créme aproximou-se e soltou um grito de guerra, atraindo as vespas e defendendo-se com o seu escudo de gelo. Enquanto elas a tentavam envenenar com as suas ferroadas, eu e Sun atingíamo-las com as nossas armas e Maya invocava tremendas tempestades tropicais.
Quando estávamos prestes a livrar-nos das vespas, o titã acordou. Enraivecido, dirigiu-se a nós, que estávamos longe de Créme. Ela acabou com as vespas e foi logo a correr em direcção ao titã, enquanto Hugs a revitalizava com magia branca.
- Mangez mon épée, seu “porrco”!
- Tende cuidado, as vossas feridas ainda não foram totalmente tratadas!
- Créme, espera que o meu irmão volte a ter mana para lançar flechas paralisantes! Sun, ainda te falta muito?
Mas ele não respondeu. Voltei-me e reparei que o avatar dele estava parado. Quando lhe ia perguntar porque estava imóvel, o titã derrotou o nosso grupo. Sem as flechas paralisantes, Hugs não teve tempo para tratar das feridas de Créme, o que a fez morrer num instante. Logicamente, como os restantes não tinham uma defesa tão elevada como a dela, fomos mortos, um a um, numa questão de segundos.
Furiosa, fui até ao quarto do meu irmão. Ele estava sentado ao computador com um ar estupefacto. Aproximei-me dele aos berros.
- Alphonse Ballista, que raio estavas tu a fazer?!
- A culpa não foi minha, o PC é que bloqueou! Se calhar não devia ter deixado o “BitTorrent” ligado.
- O quê?! Al, tu sabias muito que bem o “BitTorrent” deixa o computador lento! Tu lembras-te muito bem que hoje íamos voltar a derrotar o titã!
- Ó, Vanilla, desculpa, esqueci-me.
Estava mesmo fula, parecia um touro que acabara de ver um pano vermelho. Empurrei-o da cadeira e inseri o comando para lhe formatar o computador. Disse-lhe para não me dirigir a palavra na próxima semana e voltei para o meu quarto.
No dia seguinte, passámos o caminho a discutir enquanto voltávamos da faculdade. Até nas aulas discutíamos, os professores tiveram de nos pôr em mesas separadas. Eu gritava com ele por ter deixado o computador bloquear a meio do jogo e ele gritava comigo por lho ter formatado.
- És um amputado! Não fazes nada de jeito, só serves para aumentar a conta da electricidade!
- Tens mesmo necessidade de me chamar nomes? E até me formatares o computador, só o usava para baixar uma ou outra série e para jogar contigo. Tu é que passas horas e horas a fio ligada àquele jogo parvo!
- Nunca mais digas que Burning Blood é um jogo parvo! Fica desde já sabendo que a melhor coisa que aconteceu em toda a minha vida foi começar a jogá-lo!
- É um jogo! Não passa de um mundo virtual com o objectivo de entreter pessoas que não sabem distinguir o real do fictício.
- Fica sabendo que o fictício é melhor do que o real e tu és o exemplo perfeito disso. No jogo és suportável…
A nossa discussão tornou-se agressiva ao ponto de nos começarmos a empurrar. A dada altura, exaltei-me e dei-lhe um encontrão que o fez cair no meio da estrada.
Ainda me lembro da rapidez a que o carro passou diante de mim. Fez-me sentir que céu sem sol é como morrer sem nascer. No fundo, quando formatei o computador, também formatei o meu irmão…
No início vemos tudo apenas como um jogo de computador, no mundo da ficção, do divertimento e do escape ao stress do mundo real. Depois a tensão entre os irmãos torna-se tão insuportável que, no meio de encontrões, um acaba por “formatar” o outro. De facto, fiquei surpreendida pela positiva. Acho que o conto dá uma reviravolta poderosa de que eu não estava à espera. A protagonista, mesmo depois de ser atingida pela realidade, não foi capaz de se desprender da ficção, referindo-se ao irmão como algo passível de ser formatado.
ResponderEliminarSusana Correia
N.º37786