28/04/11

A guitarra (2ªversão)

Tudo começou quando aquele rapazinho e a sua mãe entraram na loja de música. Era Inverno. A rua estava coberta de um imaculado manto branco. Sentia-me aborrecida, farta de ali estar. Seria mais um dia igual aos outros com o entrar e sair dos clientes, se ele não tivesse aparecido.

- Demora o tempo que precisares, querido – disse a mãe.

O rapaz deambulou pela loja a ver se algo lhe agradava. O empregado viu-os e ofereceu-se para ajudar.

- Tinhas alguma guitarra em mente?

- Bem, eu estava a pensar numa Fender... – respondeu ele, com timidez.

- Ah, tens bom gosto. Olha, temos aqui uma.

Sentia-me desejosa de atrair a atenção daquele rapazinho. Ser usada, de novo. Ele esteve imenso tempo à procura da guitarra certa. O funcionário estava distraído a mostrar-lhe uma e foi aí que decidi deixar-me escorregar do suporte. Ouviu-se um estrondo enorme e o empregado veio logo até mim.

- Não sei como isto aconteceu. Desculpa a confusão!

- Não tem mal. É uma bela guitarra...

- Ah sim, é a Fender Stratocaster. A guitarra do Jimmi Hendrix! – respondeu o empregado com entusiasmo.

Deve ter havido alguma química entre nós, porque quando dei por mim, estava eu no banco de trás do carro, a caminho do meu novo lar.

Nos dias seguintes, eu e o David tornámo-nos inseparáveis. Era a menina dos seus olhos, a sua primeira guitarra. Às vezes, era difícil para a mãe lidar com o barulho lá de casa. “Mas valeu a pena”, pensou ela, ao ver o filho tão feliz.

Os anos foram passando e, claro, David também foi crescendo. Entrou para a faculdade, fez novos amigos e conheceu a namorada. Passei mais tempo no canto do quarto por causa dos estudos. Mas, sempre que podia, ele vinha tocar. É como se precisasse de mim para estar equilibrado. E eu dele, claro.

No entanto, a minha felicidade não durou muito mais tempo. Afinal, tudo tem um fim... até mesmo para uma guitarra.

A vida de David deu uma grande reviravolta, nos anos seguintes. Para começar, a mudança de casa. Eu, que passava a maior parte do tempo no cantinho do seu quarto, estava agora dentro de uma mala e transportavam-me para aqui e para acolá. Ah, e já vos disse que agora tenho irmãos? O David resolveu comprar mais algumas guitarras. No entanto, o motivo desta confusão toda era outro. Se eu tinha agora irmãos, o David ia ter um filho, o pequeno João. A namorada, que agora era sua mulher, estava grávida. E a barriga crescia a olhos vistos.

A nova casa tinha um sótão. E era aí onde eu ia ficar. Eu e o todo o equipamento musical. David passava algumas horas a tocar, não fosse ele músico tal como fora o pai.

Podia acabar a minha história por aqui e dizer que fomos felizes para sempre. Mas não foi bem assim. Dois anos depois do João ter nascido, surgiram alguns problemas financeiros. O novo álbum de David não estava a vender muito bem e o ordenado da Carolina não era suficiente para cobrir as despesas.

No correio, só havia contas para pagar. “Tenho de fazer algo...” pensou ele. “Quem me dera que o meu pai estivesse aqui... Ele saberia o que fazer.” Encontrava-se tão absorto nas suas preocupações que nem reparou na presença de Carolina.

- Más notícias?

David suspirou.

- Nada de mais... só contas.

A esposa abraçou-o e deu-lhe um beijo na testa.

- Se for preciso fazer horas extraordinárias lá no trabalho...

- Não! Eu trato disto, não te preocupes. Vou arranjar uma solução.

A verdade é que arranjou. Começou por vender alguns dos seus equipamentos de música: amplificadores, pedais e por fim... as guitarras. Sabia como lhe custava fazer isso. Vender uma guitarra era como perder um pedacinho de si próprio. Enquanto isso, ele tentava trabalhar no novo disco.

Meses depois, o seu grande amigo Pedro foi lá a casa comprar uma guitarra. Nunca mais me esqueci desse dia.

- Tens aqui boas guitarras.

- É verdade... – respondeu David, meio nostálgico.

De repente, o Pedro estacou à minha frente e perguntou:

- Gosto desta! Quanto é que queres por ela?

David engoliu em seco.

- Vá lá, pago-te o dobro por ela.

Nem queria acreditar no que estava a ouvir. Pior ainda, quando o vi a ponderar o assunto. Eu que o vira crescer.

Uns minutos depois, estava eu no carro do Pedro. Ia para longe do meu lar. Se ao menos pudesse chorar... mas era apenas uma guitarra. Um mero objecto que pode ser facilmente descartado, tal como aconteceu.

A casa do Pedro era espaçosa, bem iluminada. No entanto, sentia-me uma intrusa dentro daquelas paredes. Acabei por ficar no quarto. Olhava para as fotografias na cómoda e nada me diziam. Quem eram aqueles estranhos? Iria ser este o meu novo... lar? Sentia-me destroçada. Mas mal sabia eu que a salvação chegaria vinte e quatro horas mais tarde. A campainha tocou ao final da manhã.

- Carol, que surpresa! Como estás?

- Olá, Pedro. Na verdade, não estou muito bem...

- Que se passa? Por favor, entra.

Sentaram-se os dois na sala. Nem queria acreditar que era ela!

- Queres beber alguma coisa?

- Não, estou bem assim. Obrigada.

Houve um breve silêncio. Depois, Carolina começou.

- Eu queria-te pedir um favor.

- Sim, diz.

Ela endireitou-se no sofá e prosseguiu.

- A guitarra que compraste ao David... eu gostaria de a ter de volta.

Pedro olhou surpreso para ela.

- Ouve, eu sei que não é muito correcto o que estou a fazer. O David nem sabe que vim aqui. Mas eu não suporto vê-lo naquele estado. Nós estamos com alguns problemas financeiros e ele só queria ajudar. Só que ... esta foi a primeira guitarra dele.

- Eu... não imaginava que as coisas estavam tão más. Podiam ter falado comigo. Vou lá buscá-la. Dá-me só uns minutos.

- Obrigada, Pedro... muito obrigada!

E foi assim que regressei a casa. David nem queria acreditar. Abraçou a esposa com tanta força que ela até refilou:

- Ai! Estás-me esmagar! - disse, rindo-se.

Depois, olhou para mim e disse-me baixinho:

- Nunca mais nos vamos separar. Prometo.

E manteve a sua promessa.

Anos depois, o novo álbum do David chegou às lojas. E, desta vez, foi um sucesso. Talvez vocês já estivessem à espera disso. David voltou a comprar guitarras e outros equipamentos de música. Ah! Quase me esquecia! A Carolina está grávida, de novo. Desta vez, de uma menina. Vai chamar-se Sofia. Aguardamos todos ansiosos a chegada deste novo membro da família.

David Ribeiro faleceu aos 87 anos. Para muitos, perdeu-se um músico. Para Carolina, perdeu-se um companheiro de vida. Para o João e a Sofia, perdeu-se um pai. Mas eu... perdi o meu rapazinho. A vida humana é tão... passageira.

No entanto, não julguem que sou infeliz. A casa do João é uma festa, agora que o pequeno Rui nasceu. Será que ele também vai ser um guitarrista?

Ana Catarina Nº41087

25/04/11

a menina do adeus-soraia gonçalves

Acordei num daqueles dias que queremos que perdure durante todo o ano. O Sol brilhava, o dia era claro, como sempre fui ate à janela, contemplar o dia e fumar o meu cigarro. Lá estava ela, não sei ao certo o seu nome, para mim será sempre a menina do adeus.

A menina do adeus é figura presente na minha vida. Na verdade se a minha vida fosse narrada, ela tomaria o lugar de narrador omnisciente. Sabe a que horas me levanto, a que horas regresso do trabalho, a que horas saio de casa, quem recebo em casa, ela está sempre presente. A sua janela abre para a minha. Por todas as vezes que ela me sorriu do outro lado e me disse adeus, eu retribuí. Esta manhã nada foi diferente, contudo não sei se terá sido o documentário a que assisti ontem, ou os sonhos sem cessar que sobrevoaram o meu sono. Hoje o adeus da menina remeteu a minha alma para um adeus que ficou perdido, no passado, nas memórias mais profundas, naquelas que enterramos por baixo de outras. O curso da história não pode ser apagado para aqueles que nele viram as suas vidas envolvidas. A doçura da infância perdida, em prol de ideologias e de guerras que não nos pertencem. A paisagem de Lorch assemelhava-se, pela sua cristalinidade, pela sua pureza, a uma tela projectada no irreal, no imaginário. Na tela, era possível ver duas crianças, que juntas corriam entre as árvores. Tínhamos nove anos, e brincávamos juntas nas margens do Reno. A envolvência das corridas em salto, dos jogos, das gargalhadas, não fazia prever os dias que se seguiram. Sonhavas ser médica, e eu professora, por vezes voávamos, ora para o teu consultório, ora para a minha sala de aula. Criámos nas traseiras do meu quintal, a casa dos sonhos, onde tudo era permitido. Eu criei esboços subtis de flores, árvores e corações, imagens normais para a minha idade, mas tu não. A tua sede de criar, tornavam o teu traço firme. O teu primeiro desenho ocupou a parede do teu consultório O céu pintado de todas as tonalidades possíveis, contrastavam com uma muralha, que dizias ser um castelo. Eu então desenhei mais árvores, uma porção de árvores que cercavam o castelo. No fim do dia, quando voltaste para casa eu permaneci a olhar para o desenho, faltava o mais importante, eu e tu. Então num traço tremule e branco desenhei-nos às duas de mãos dádas à porta do castelo. A aura de um viver inspirador, a casa dos sonhos. No ano seguinte viajei, inicialmente não entendi porque tive de vir para Portugal. A minha mãe apenas me explicou que viria passar umas férias com a tia Matilde. Na altura lembro-me de não ter gostado da decisão, mas não me foram dadas grandes alternativas. Passei aproximadamente quatro meses sem os meus pais e depois também eles vieram para cá. A ideia de que, na verdade, as férias seriam eternas, e não voltaríamos a casa foi surgindo pouca a pouco, sem grandes questões. Contudo com o passar dos anos, a idade dos «porquês» esmiuçados parece que assombra qualquer mente que incessantemente procura o seu lugar na terra. Acho que todas as crianças que começam a dar as primeiras passadas na chamada adolescência envolvem-se nesse processo. E nessa incessante procura de respostas, os meus pais contaram-me o verdadeiro motivo da nossa partida da Alemanha. Acho que nesse dia, de alguma forma a minha interpretação do mundo foi quebrada. Os dias que se seguiram foram marcados por uma profunda desconfiança da vida. As recordações da minha casa, do meu quintal, do rio, dos pássaros e inevitavelmente de ti, ainda se encontravam bastante presentes. Continuava a viver numa moradia, e procurava ainda no voar do baloiço sentir-me liberta, acho que desde sempre os baloiços me acalmam. Numa dessas tardes, enquanto me baloiçava a pensar nas informações que me tinham sido omitidas, como sendo peças de um puzzle, ocorreu-me que talvez tu e a tua família fossem os tais judeus perseguidos de que o meu pai me falara. Na verdade eu não percebia nada de religião, os meus pais já eram ateus quando nasci. Mas tinha consciência de que a tua educação não era igual à minha. Saltei do baloiço e fui ter com o meu pai, acreditei que ele me explicaria os factos de forma mais explícita. A minha mãe procurava sempre adulterar qualquer história, por ela, como se tal fosse possível, ainda hoje não saberia nada sobre “a mais irracional, tenebrosa e desumana acção daquele que insiste em denominar-se ser racional - o homem” (como diria anos mais tarde). Como calculava, o meu pai explicou-me o que na verdade significava ser judeu, e confirmou a minha suspeita, tu e a tua família eram judeus. Percebi finalmente a razão para nunca me responderes às cartas que te enviei. Nos primeiros tempos em Portugal, lembro-me de que te enviei dois desenhos do meu quarto: queria que soubesses onde eu dormia, quando na verdade também tu te encontravas a dormir noutro local, provavelmente no campo de Dachau, enquanto eu permanecia num completo desconhecimento. Desde essa altura decidi que seria médica, na época decidi por ti, anos mais tarde decidi por mim. O meu pai nunca me confirmou se terias sido deportada para algum campo de concentração, mas acabei por descobrir sozinha, que a maioria dos judeus de toda a área envolvente tinham sido deportados para Dachau. Na manhã em que abandonei Lorch, foste-te despedir de mim. Assim, a última vez que te vi lá estavas tu, de cabelo entraçado, vestido azul, e ficaste parada a acenar-me até o carro desaparecer. Também eu te acenava, sem saber que aquela era a última vez que me despediria de ti. Se existe justiça? É inútil responder. A desumanidade toma contornos tão eloquentes, que o utópico humanismo é na realidade uma fantasia na qual o homem necessita de acreditar.

Não voltei à Alemanha, acho que inconscientemente criei uma certa aversão à minha terra natal. Lorch, tu, a minha velha casa, a minha infância, tudo ficou nesse tempo, no refúgio das minhas memórias. Terminei o cigarro e lá continuava ela a contemplar-me. O palco das minhas lembranças, contrastou com o Sol que emanava um calor agradável. Respirei fundo, para aliviar a sensação de vazio. Enrolei outro cigarro, enquanto observava os miúdos na rua, abraçados a tentarem deslizar unidos, apenas com um par de patins, cada um com um patim, unidos para provavelmente em conjunto caírem. Uma ingenuidade tão genuína. Acabei o segundo cigarro, e fiquei mais uns minutos a contemplar a menina do adeus, que agora se encontrava mais interessada nos dois miúdos de patins.

Soraia Gonçalves nº39034

Format C: (2ª versão)

Já passou tanto tempo desde a nossa última aventura. Sinto falta dos serões perdidos em planícies sem fim e montanhas vulcânicas. E aquelas batalhas campais em que tratávamos da saúde daqueles nabos que tinham a mania? Como sinto falta daquelas horas esquecidas...


Estávamos, mais uma vez, nas ilhas de “Sandstream”. Como de costume, à frente íamos eu e Créme, logo atrás vinha Hugs e na linha da retaguarda estavam Maya e Sun. Já tínhamos feito aquela masmorra várias vezes, mas ainda estávamos na fase de encontrar melhor equipamento, para podermos partir em aventuras mais árduas.


Quando chegámos ao fim da masmorra, a uns vinte metros diante de nós, estava o nosso alvo, o titã da cascata. Um monstro enorme, colorido por vários tons de azul e rodeado por sete vespas mutantes. Antes de nos lançarmos a ele, eu perguntei aos meus parceiros:


- Jovens, ainda se lembram da táctica?

- Mais oui, prrovoco as vespas e levo-as parra un cantinho – disse Créme.

- Já sabes, deitar abaixo inimigos voadores é a minha especialidade. Podes contar com o meu arco e as minhas flechas! – disse Sun.

- Feitiços de área. Entendido! – disse Maya.

- Quem julgais que sou? Óbvio que sei o que tenho de fazer! É só manter o nosso engodo vivo. Ide, usai o vosso florete e trazei a vitória ao nosso grupo mais uma vez – disse Hugs.


Tendo relembrado a estratégia para derrotar o nosso alvo, pusemo-la em prática. Créme aproximou-se e soltou um grito de guerra, atraindo as vespas e defendendo-se com o seu escudo de gelo. Enquanto elas a tentavam envenenar com as suas ferroadas, eu e Sun atingíamo-las com as nossas armas e Maya invocava tremendas tempestades tropicais.


Quando estávamos prestes a livrar-nos das vespas, o titã acordou. Enraivecido, dirigiu-se a nós, que estávamos longe de Créme. Ela acabou com as vespas e foi logo a correr em direcção ao titã, enquanto Hugs a revitalizava com magia branca.


- Mangez mon épée, seu “porrco”!

- Tende cuidado, as vossas feridas ainda não foram totalmente tratadas!

- Créme, espera que o meu irmão volte a ter mana para lançar flechas paralisantes! Sun, ainda te falta muito?


Mas ele não respondeu. Voltei-me e reparei que o avatar dele estava parado. Quando lhe ia perguntar porque estava imóvel, o titã derrotou o nosso grupo. Sem as flechas paralisantes, Hugs não teve tempo para tratar das feridas de Créme, o que a fez morrer num instante. Logicamente, como os restantes não tinham uma defesa tão elevada como a dela, fomos mortos, um a um, numa questão de segundos.


Furiosa, fui até ao quarto do meu irmão. Ele estava sentado ao computador com um ar estupefacto. Aproximei-me dele aos berros.


- Alphonse Ballista, que raio estavas tu a fazer?!

- A culpa não foi minha, o PC é que bloqueou! Se calhar não devia ter deixado o “BitTorrent” ligado.

- O quê?! Al, tu sabias muito que bem o “BitTorrent” deixa o computador lento! Tu lembras-te muito bem que hoje íamos voltar a derrotar o titã!

- Ó, Vanilla, desculpa, esqueci-me.


Estava mesmo fula, parecia um touro que acabara de ver um pano vermelho. Empurrei-o da cadeira e inseri o comando para lhe formatar o computador. Disse-lhe para não me dirigir a palavra na próxima semana e voltei para o meu quarto.


No dia seguinte, passámos o caminho a discutir enquanto voltávamos da faculdade. Até nas aulas discutíamos, os professores tiveram de nos pôr em mesas separadas. Eu gritava com ele por ter deixado o computador bloquear a meio do jogo e ele gritava comigo por lho ter formatado.


- És um amputado! Não fazes nada de jeito, só serves para aumentar a conta da electricidade!

- Tens mesmo necessidade de me chamar nomes? E até me formatares o computador, só o usava para baixar uma ou outra série e para jogar contigo. Tu é que passas horas e horas a fio ligada àquele jogo parvo!

- Nunca mais digas que Burning Blood é um jogo parvo! Fica desde já sabendo que a melhor coisa que aconteceu em toda a minha vida foi começar a jogá-lo!

- É um jogo! Não passa de um mundo virtual com o objectivo de entreter pessoas que não sabem distinguir o real do fictício.

- Fica sabendo que o fictício é melhor do que o real e tu és o exemplo perfeito disso. No jogo és suportável…


A nossa discussão tornou-se agressiva ao ponto de nos começarmos a empurrar. A dada altura, exaltei-me e dei-lhe um encontrão que o fez cair no meio da estrada.


Ainda me lembro da rapidez a que o carro passou diante de mim. Fez-me sentir que céu sem sol é como morrer sem nascer. No fundo, quando formatei o computador, também formatei o meu irmão…

22/04/11

Pai - 1º versão

Nasci fruto de uma relação fugaz entre uma adolescente que via o mundo através de uns óculos cor-de-rosa e acreditava na ilusão do amor eterno, e uma criatura que a iludiu com palavras bonitas mas mal soube que a sua semente tinha dado frutos, fugiu para parte incerta. Foi no dia em que ele abandonou a minha mãe que ela contou aos meus avós que estava grávida. Apesar de temerem as críticas e os olhares mordazes da vizinhança, os meus avós apoiaram a minha mãe durante a gravidez e criaram-me nos primeiros anos como se de um filho me tratasse. A minha mãe e a minha avó sempre fizeram os possíveis e os impossíveis para sobreviver. Ambas tinham vários trabalhos para conseguirem trazer alimentação para casa. O meu avô lamentava todos os dias o combate que travara durante a guerra do ultramar e que o deixara dependente daquela cadeira de rodas. Considerava-se um estorvo para nós pois em muitas situações estava dependente da nossa ajuda. Sempre vivi com pouco, mas o pouco que me davam chegava para viver feliz. Na escola, as notas nunca foram um problema. Sempre me safei bem nas aulas e as amizades também eram muitas.

Uma tarde, terminar mais um dia de aulas no liceu, deparei-me com o olhar preocupado da minha mãe.

-Que se passa mãe?

-É o teu pai…Acabou de ligar, e diz que te quer ver.

Na minha cabeça formou-se uma estranha confusão de sentimentos. Por um lado, era meu pai, e eu sempre quis ter um pai. A vontade de o ver era muita. A curiosidade também : Será que o meu pai também gosta de futebol? Será que a música que eu oiço é a mesma que ele ouve? Por outro lado, um sentimento de raiva apoderou-se de mim. Dezasseis anos depois aparece e pensa que está tudo bem?! Sempre sobrevivi sem pai, porque não continuar assim??

-Preciso de pensar, mãe.

-Eu sei meu filho.

Fui falar com quem mais me podia ajudar, o Miguel. O Miguel era um colega de escola com quem eu me dava desde pequeno. Quando cheguei á escola, no dia seguinte, perguntei-lhe como era ter um pai.

- Ter pai é poder abraçá-lo quando temos saudades. É poder ligar-lhe quando precisamos de dinheiro. É chorar quando estamos mal e gritar de alegria quando conseguimos alcançar os nossos objectivos. Ter pai é fazer de tudo para o convencer a deixar-nos sair a noite. É ter 18 num teste e ouvir da boca dele que podemos fazer melhor. Ter pai é passar horas com ele sentados no sofá a ver futebol. Ter pai é receber lições de vida. Ter pai é, acima de tudo, uma razão para se continuar a viver.

Nesse momento tomei uma decisão. Comuniquei-a á minha mãe mal cheguei a casa:

-Mãe, diz ao pai que amanhã a tarde me pode vir buscar.

Nessa noite mal consegui dormir. Tinha medo de criar falsas expectativas em relação àquele ser que eu nunca tinha conhecido. Porém era impossível não pensar que daqui a uns tempos podia ter finalmente um pai.

No dia seguinte, depois das aulas, fiquei em casa à espera da sua chegada. As pernas tremiam-me e o coração batia cada vez mais rápido. Esperei um pouco até que finalmente soou o som da campainha. Abri as portas com a mão a tremer e deparei-me com um homem alto e moreno, tal como eu. Olhou-me nos olhos: -Desculpa meu filho – e agarrou-se a mim. Sem saber o que fazer afastei-o e disse-lhe: -Sempre cresci sem pai e fui feliz. Se há alguém a quem tenhas de pedir desculpa, não sou eu...

A minha mãe olhava-nos com lágrimas nos olhos. Ele dirigiu-se a ela:

-Des…

-Não digas nada. Não vale a pena pedires desculpa quando sabes que nunca na vida te vou perdoar. O que me fizeste não se faz, não tem perdão. Fizeste-me acreditar em mentiras e ilusões e quando eu menos esperava apunhalaste-me pelas costas. Só te peço uma coisa, não faças com o nosso filho o mesmo que fizeste comigo.

-Não faço, nem quero fazer. Neste momento só quero que ele me dê uma oportunidade para recuperarmos o tempo perdido.

Olhei-o nos olhos:

-Não penses que regressas de repente e tudo fica bem. Sai daqui. Não te consigo perdoar.

O meu pai saiu com lágrimas nos olhos e eu corri a fechar-me no quarto. Descarreguei a minha raiva no pouco que tinha. Raiva de saber quem era o meu pai, raiva de saber que provavelmente nunca mais o ia ver e, acima de tudo, raiva de mim próprio por o ter mandado embora sem sequer ter ouvido as suas explicações.

Mais uma noite mal dormida e um dia de aulas para esquecer. Cheguei a casa e tocou o telefone. Era do hospital da zona. O meu pai tinha sido atropelado. Estava mal e queria ver-me. Sem sequer pousar a mochila, dirigi-me para lá.

Entrei no quarto e vi que o meu pai estava a dormir. Dirigi-me a ele e peguei-lhe na mão:

-Estás perdoado, pai.

Filipe Marques Nº41199

21/04/11

Conto Individual - 2.ª versão

ÀS ESCURAS

“É hoje!” pensou, enquanto abria a gaveta que ficara fechada durante cinco anos. Num ápice, encontrou o tão incómodo passado que lhe trazia à memória recordações demasiado emocionantes. “Vamos lá recomeçar do princípio”, abriu o álbum e com as mãos a tremer folheou a primeira página. A primeira fotografia espelhava a moldura de uma família perfeita, os seus pais ladeavam-no no abraço gigantesco. Deu voltas e mais voltas àquela história, e passado algum tempo, com a luz do quarto ainda acesa, fechou os olhos e adormeceu. O dia que tivera deitou-o abaixo e as maravilhas do escuro encerravam um novo capítulo da sua história.

A sua mente transportou-o para outras vidas, uma vida retratada pelas suas próprias mãos. Há muito que Miguel imaginava uma tela ofuscante pela quantidade de cores que continha. : Roxo, azul, rosa, vermelho, amarelo, laranja; era toda uma miscelânea de traços que fazia qualquer um acordar para a vida. Vida que ele queria esquecer, pois o enredo da sua teia contrariava aquela expressividade de cores e texturas. Ainda assim, Miguel não podia fugir à realidade e teria que enfrentar o seu destino. Após a escuridão da noite teria que piscar os olhos, enfrentar a triste luz do dia e voltar à terra.

Tanto tempo tornado e Miguel continuava sem se dedicar à paixão que desde sempre o encantara: a pintura. Para ele já não tinha o mesmo sentido passar dia e noite sentado em frente a uma tela, sem a presença do seu progenitor. Aquele que lhe ensinara a mais bela das artes fugira, encontrou um novo rumo deixando Miguel num mundo à parte. A adolescência não fora um episódio feliz, e quando aos treze anos o pai desapareceu, Miguel perdeu a confiança no seu talento passando a viver revoltado com a mãe pelo abandono do progenitor.

Sem ânimo, aterrou na terra no momento em que o despertador fez ecoar uma melodia demasiado irritante para os seus ouvidos.

Nunca fora um rapaz socialmente activo, e agora nos seus dezoito anos continuava sem vontade de procurar um novo alento para alterar o passado terrível que tivera. O recinto das aulas era para ele um drama, basta entrar que todo o corpo enfraquecia e aqueles que passavam por ele olhavam-no de lado, segredando: “volta para casa”, “não pertences aqui”. No meio daquele reboliço, Miguel foi capaz de vislumbrar o seu maior medo, Pedro, o rufia mais popular da escola. Cabisbaixo, dirigiu-se para o cacifo e assim que o abriu alguém tornou a fechá-lo com brutidão. “Tu saíste-me cá uma personagem, fecha-te na tua masmorra e encara apenas as aberrações que pintas!”.

Sem reacção, Miguel limitou-se a encolher os ombros e a abrir de novo o cacifo, na esperança de que o marginal desistisse de o atormentar. Pedro porém voltou a insistir “Ainda não conseguiste perceber que ninguém aqui ficaria triste com o teu desaparecimento? Só farias bem a todos se evaporasses de uma vez por todas!”. No instante em que ouviu a dureza daquelas palavras, Miguel fugiu da multidão e correu desesperado tentando encontrar um sítio onde se pudesse refugiar daquele terror. Pedro aproveitou a oportunidade para vasculhar o cacifo do rapaz, encontrando várias pinturas repletas de simbolismo, mas que para ele não passavam de gatafunhos horríveis. Qual era então para Miguel o lugar mais tranquilizador do mundo senão o sótão? Chegou a casa com o coração na boca e foi ter directamente à cozinha para se enfrascar em dois litros de água gelada, foi então que a mãe apareceu ainda de pijama vestido. “Então voltaste a faltar às aulas? É por isso que não consegues ter amigos, tu não sais desse teu mundo perdido e solitário em que ninguém pode entrar senão tu!” Aquelas palavras não fugiam à verdade total, mas Miguel não sabia dar mais de si aos outros e tinha medo de sair magoado novamente, depois daquilo que o pai o tinha feito passar. “Nunca me soubeste entender e eu não te condeno por isso, mas ao menos deixa-me viver à minha maneira. Tu podes ter saído magoada com o abandono do pai, mas eu também sofri bastante porque passei pouco tempo com ele, e ele comigo.”

Ao ouvir aquele discurso, a mãe de Miguel lembrou-se do pesadelo que viveu quando o seu grande amor decidiu abandoná-la, ainda Miguel era adolescente, mas não queria discutir mais com o filho e resolveu deixar para trás das costas o passado ausente.
Já a Miguel, aquela discussão deu-lhe vontade de transpor toda a angústia do passado para a tela, as pinturas tinham ficado para trás, viveram muito tempo apenas na memória e, como tal, tinha imensa coisa que queria descrever por entre cores e pincéis, numa tela que iria ficar para sempre marcada no seu olhar.

Com o entardecer a aproximar-se, as pinturas triplicaram-se e a imaginação de Miguel continuava tempestuosa tal e qual a noite lá fora. O seu sonho nunca deixou de ser o mesmo, desde que aprendeu a pintar com o pai, realmente aquilo de que melhor se lembrava quando lhe vinha à memória a imagem do pai era o seu lado mais ternurento na atenção dedicada à pintura.

Decidira permanecer toda a noite naquelas andanças, atingir a perfeição através do pensamento era o horizonte de uma realidade muito longínqua. “Este merece um nome, vou ter que o apelidar”, pensou, ao terminar uma obra extremamente colorida e brilhante, repleta de esquemas contraditórios e peças incompletas, mas que no total criavam uma moldura única com paixão, emoção e vibração. “A reviravolta, porque tudo gira em torno de uma só peça”.

O relógio já marcava três da madrugada quando um forte estrondo irrompeu pela porta do sótão, mas Miguel nem se apercebeu da fumaçada que estava a emergir à sua volta. “Acorda Miguel, não podes adormecer”, este pensamento foi o último antes de perder os sentidos e desmaiar por cima das telas que ainda estavam frescas com tinta. A sua salvação entrou pela porta naquele instante, tentou reanimá-lo e soube que ele conseguiria sobreviver, mas de imediato decidiu levá-lo para o hospital mais próximo.

“Não, eu consigo. Sempre consegui!”. Naquela madrugada cinzenta, Miguel não foi capaz de apreciar aquilo que estava à sua volta, mas sabia que havia alguém, para além dele, que preenchia aquele mesmo espaço silencioso e tenso. “Olá filho, como é que te sentes?”; “Mãe? O que fazes aqui?”; “Eu sei que não esperavas a minha presença, mas fui eu quem te tirou do sótão em chamas, lembras-te?”; “Não me lembro de nada, só sei que estava entretido com as minhas criações e de repente tudo ficou às escuras”; “Já deves ter percebido que a tua visão ficou afectada, mas não te preocupes que juntos vamos superar tudo isto”; “Isso significa que me vais ajudar? Eu tenho que voltar a pintar, as tintas são como água para mim, sem elas nada faz sentido”; “Não tens com que te preocupar, sabes que, pela primeira vez, fiquei admirada com a beleza das tuas telas, tens um talento dentro de ti e eu nunca quis ver isso”.

A conversa durou longas horas e proporcionou a Miguel um momento de pura cumplicidade, o suficiente para o deixar tranquilizado e com pensamento positivo apesar das consequências que aquela noite lhe trouxera. O destino não estava nas suas mãos e o tempo tardava em abrandar, mas Miguel não se conseguia lembrar da garrafa que, por pequena que fosse, endereçada por Pedro provocou aquela tragédia irreversível.

Nunca pensou poder sentir-se ainda mais desintegrado do mundo exterior, e o facto de depender dos outros para prosseguir com a sua vida preocupava-o bastante. Os dias foram passando e Miguel nunca deixou de pintar, sempre sob o olhar atento da mãe que tinha o poder de o incentivar nas horas mais desanimadoras. Na escola, a mudança gerou-se rapidamente com todos os colegas a darem-lhe a mão para o apoiarem nos momentos mais complicados e até Pedro, com remorsos do sucedido, tentou apaziguar a dor que sentia ao pedir-lhe “Desculpa”.

Depressa os seus quadros começaram a ser divulgados e tiveram uma projecção gigantesca no mercado das artes, e quando chegou o momento da sua apresentação perante o público, Miguel disse: “Não quero que tenham pena da minha condição física, porque, na realidade, eu sempre vivi às escuras e vou saber enfrentar o meu destino por mais terrível ou assombroso que ele possa vir a ser”.

Tânia Almeida, nº 38063