24/06/11
EXAMe Escrita CRIAtiva
Para quem optou por avaliação no regime de exame, a data será dia 13 de Junho, entre as 16 e as 18h (com meia hora de tolerância), na sala 3.1.
O modelo será semelhante ao do teste escrito — perguntas de interpretação sobre o excerto de um conto e escrita de texto.
Workshops ARGUMENTO CINEma
20 a 24 de Julh
Abertas as inscrições para os workshops.
Personalidades do audiovisual contemporâneo estarão em AVANCA para
orientar espaços de trabalho, reflexão e compromisso com o cinema de
qualidade.
WORKSHOPS
1 - “A direcção de actores em cinema”
Orientador – Luís Filipe Rocha (Portugal)
Coordenador – José Miguel Moreira
2 - “Escrever um argumento e realizar um filme de FERIDAS INVISÍVEIS”
Orientador – Mohamadreza Vatandoust (Irão)
Coordenador – André Gil Mata
3 - “Explorar a direcção artística dos filmes de animação”
Orientador – Natalia Mirzoyan (Rússia)
Coordenador – Patrícia Figueiredo
4 - “Realizar uma curta-metragem de ficção”
Orientador – Ciro Altabás (Espanha)
Coordenador – Luis Diogo
5 - “Realizar documentários no caminho dos filmes de ficção”
Orientador – Mehdi Rahmani (Irão)
Orientador Assistente – Esmaelion Behrang (Irão)
Coordenador – Luís Oliveira Santos
6 - “O Cinema de Animação vai à Escola”
Orientador – Paulo Fernandes (Portugal)
Coordenador – José Rodrigues
Informações em www.avanca.com
Contactos:
AVANCA 2011
Cine-Clube de Avanca
3860-078 Avanca
Tel/fax – 234.880658
festival@avanca.com
www.avanca.com
21/06/11
nova data AVALIAção
Adio o nosso encontro um dia, para TERÇA, 28 de Junho, same time, same place.
Passem palavra.
Bom SOLstício
12/06/11
DATA AVALIAção
Decidi ser realista e prolongar os dias, além do enleio das tarefas a cumprir, pelo que proponho como data para o nosso encontro dia 27 de JUNHO entre as 15 e as 17 horas, na esplanada do bar do átrio da FLUL (entrada principal).
Passem palavra entre os colegas, por favor.
Atenção: os alunos que não colocaram no portfolio as versões dos contos corrigidas por mim, entregam-nos no CEAUL para a próxima semana ou, no máximo, até dia 21 de Junho.
Festa do Povo Mágico
A festa vai ser a 25 de Junho, na Ermida de S. Mamede, em Janas
Direcções google: Estrada de São Mamede –2710 Sintra
Passo a citar o convite
"A partir das 12,00
(Quem quiser ir mais cedo, ainda dará uma ajuda na «decoração…»)
Levar:
- toalhas e/ou mantas, para o chão
- comida feita, de preferência que não necessite de talheres
- bebidas, conforme os gostos – eu levo água da fonte para quem quiser
- cadeiras e/ou banquinhos desdobráveis para quem se sentir mais confortável com eles, e/ ou almofadas.
Empresta-se e troca-se tudo o que calhar.
Levar os jogos de exterior que os meninos tiverem.
Os meninos podem ir vestidos de fantasia, fadas, duendes, feiticeiros/as, coelhos, tudo… Toda a gente pode levar fatos feéricos e grinaldas.
Há um arco com flechas ( de ventosa) para os Robins dos Bosques e as Ladies Marions.
Em princípio, estará calor, mas há sombras. Com o microclima de Sintra, nunca se sabe. Melhor levar casaquinhos!
Eu levarei autocolantes para «afixar» em todos, de modo a que se saiba sempre a quem «pertence» cada menino…
… e também para que nos possamos tratar logo pelos nomes.
Por isso, convém que as vestes sejam de tecido a que os autocolantes adiram bem.
Em princípio, haverá pessoas de todas as idades. Se os adolescentes aparecerem não se aborrecerão!
Levem Cds, não fones individuais - a Cristiana e o João fornecem um leitor a pilhas e o som é para se espalhar a todos os ouvidos…
Câmaras de foto e vídeo fazem falta , embora o Mágico Ethan garanta o trabalho de fundo…"
09/06/11
Velocidade
A minha vida ultimamente anda um pouco atribulada, devido a uma série de más notícias que não me deixam propriamente bem e afectam o meu bem-estar mental.
Um dia, já confuso com as emoções que sentia – raiva, stress, vontade de espairecer, enfim – tive a ideia de pegar nas chaves do carro e desaparecer. O meu carro não é o que se pode chamar luxuoso: não tem ar condicionado, airbag, leitor de CD, nem jantes de liga leve. Tem um volante rijo, uma manete das mudanças lassa e muito pouco prática, uns bancos pouco confortáveis e uma suspensão… bem é melhor nem falar na suspensão.
Costumo chamar-lhe a minha caixa de fósforos, mas até um carro assim dá para sentir liberdade, a liberdade que só a velocidade traz. Pus a chave na porta já enferrujada, abri a fechadura, sentei-me no banco e liguei o motor. Nesse momento senti uma enorme tristeza pois o som do motor nada tinha em comum com aquele dos carros desportivos.
Pus o carro em ponto morto, acelerei o máximo, respirei profundamente e sorri. Estava na altura de sair dali, levantei o travão de mão, pus a primeira e comecei a minha perigosa viagem. Não parava no stop, na luz vermelha, nem na passadeira, não podia parar. Guiei até um local ermo, sítio de armazéns e fábricas, sem movimento, ideal para uma pequena brincadeira.
Acelerei a fundo, o carro ganhou velocidade e ao mesmo tempo que travava virei o volante. Uma marca circular de borracha queimada ficou desenhada no chão, depois de o carro se ter inclinado numa chiadeira. Soltei uma gargalhada – era o meu primeiro peão.
Abri a janela e senti o cheiro da borracha. Os subúrbios já não chegavam. Decidi ir para a auto-estrada. Liguei o rádio; um anúncio sobre pasta de dentes… mudei… outro anúncio sobre sabonete… mudei… um padre falava sobre a sociedade e a falta de fé das pessoas, era um programa religioso, deixei ficar.
A auto-estrada estava quase vazia; comecei a conduzir ainda mais depressa. No meu horizonte surgiu outro carro que ultrapassei, não sem antes lhe bater na traseira e lhe partir um farol. O outro condutor começou a gritar comigo, não o conseguia ouvir mas sabia que ele não dizia coisas agradáveis. Buzinou. Agarrado ao volante acelerei ainda mais sem, prestar a mínima atenção ao que acontecera.
Uns quilómetros à frente um carro da polícia mandava parar os condutores. Se não parasse cometia um crime, o meu primeiro crime na vida.
Senti um longo arrepio na espinha. O programa na rádio interveio, dizendo que a religião era a salvação. Tenho que admitir que não sou religioso, no sentido tradicional do termo, se bem que goste da ideia de uma vida para além da morte. Acelerei, cada vez mais decidido.
Um carro da polícia estava estacionado à beira da estrada com um radar a controlar a velocidade a que seguiam os condutores. Encostado ao carro estava um polícia que quase caiu quando passei por ele. Achei piada. Este entrou no carro de imediato, ligou a sirene e seguiu atrás de mim. Era mais rápido do que eu, tinha um carro mais potente. Em dois tempos estávamos lado a lado. Para me tentar parar, ia contra o meu carro que se ia desfazendo a cada encontrão. Eu fazia o mesmo, se bem que o resultado fosse pouco eficaz.
O outro carro era mais largo e mais estável, o meu não ia aguentar aquilo muito mais tempo. Felizmente, ao longe surgiu uma portagem e na minha cabeça uma ideia. A passagem era demasiado estreita, só havia espaço para um carro. Travei bruscamente! O polícia seguiu em frente, travou também e fez marcha-atrás, nessa altura passei por ele a toda a velocidade em direcção à portagem. O homem da cabine abriu a porta e fugiu à medida que eu me aproximava. A cancela partiu com uma facilidade incrível. Soltei uma grande gargalhada, pois aquilo lembrava um palito a estalar.
Respirei profundamente e olhei para o espelho retrovisor, o carro da polícia estava de novo no meu alcance. Reparei também que isso era um problema menor: ao longe a polícia tinha formado uma barreira com carros. Tinha chegado ao fim, não havia saída.
Peguei no telemóvel e escrevi uma mensagem: “ Mãe, a consulta foi pouco animadora. Doença a progredir. Cancro avança até paralisia. Fui dar uma volta de carro. Bj.”.
Na rádio, a conversa era sobre a vontade divina que controla tudo. Concordei, naquele momento a decisão de viver já não me pertencia. Acelerei a fundo, estava cada vez mais próximo da barreira. Alguns polícias perceberam que eu não ia parar e começaram a fugir, outros com o rosto sulcado pelo medo procuraram abrigo atrás dos carros. No último segundo, fiz uma viragem brusca. O carro capotou, foi contra um muro e ficou completamente esmagado. Com o choque, bati com a cabeça no volante e via sangue por todo o lado.
Inclinei-me e encostei a cabeça no assento. Reparei que parte do sangue que escorria da minha cara estava mais claro, foi então que percebi que estava a chorar.
Bruno Jacinto, nº39099
Numa fria sala de jantar inundada de sol, Marcela dobra cuidadosamente o jornal e fita-me, pensativa; com o queixo apoiado na mão, observa-me a tomar café. Olho-a, franzindo a testa, mas a sua expressão não se altera. Suspiro e pouso a chávena.
“Que tens?” pergunto, demasiado ensonada para me lembrar que Marcela nunca responde a uma pergunta directa.
Ela sorri levemente e, sem desviar os olhos, estende a mão para afastar a garrafa de whisky de Jaime, que a fita resignado.
“Já leste o jornal?” pergunta-lhe, desviando o olhar de mim.
Jaime grunhe algo vagamente humano.
“A Marta morreu.”
A mente é um lugar estranho. Estou em pânico, claro, o que é, que sabes, porquê, como é que o mundo desaparece quando fechamos os olhos, mas não, «A Marta morreu». Ao mesmo tempo, a quilómetros de distância da minha chávena de café, do jornal dobrado, do reflexo do sol nos talheres, registo o efeito da causa. Jaime a sacudir a flacidez bêbada com um esgar de receio. Marcela a estreitar os olhos como um gato ronronante, à medida que analisa os efeitos destas suas palavras em mim.
Ergo as sobrancelhas e levo de novo a chávena à boca, cautelosa para que a mão não me trema.
“Isso não veio no jornal de hoje” arrisco.
Marcela continua a sorrir.
“C-como?” balbucia Jaime.
“Afogada” responde-lhe Marcela, serenamente.
Suicida – sinto-o agora como nunca, pois Marcela sempre me intimidou, mas não assim –, corrijo-a:
“Com o pescoço partido. Atiraram-na para a água... depois.”
A cabeça de Marcela volta-se para mim tão depressa que me sinto zonza, mas não é de bom-tom vomitar à mesa do pequeno-almoço.
“Como é que soubeste?”
“Foram dois polícias a minha casa, anteontem. Fizeram-me perguntas sobre a Marta.”
Marcela faz um estalido com a língua, aborrecida.
“Porquê a ti?”
Encolho os ombros e faço uma careta. Os meus joelhos batem um contra o outro.
“Encontraram a minha morada e o meu nome na agenda em casa dela, como contacto de emergência.”
“Que burra!“ exclama Marcela, divertida, sobressaltando Jaime.
Encolho os ombros de novo e levanto-me. O Jaime olha para mim; os seus olhos remelosos e injectados de sangue alternam entre fitar-me e fixar um qualquer ponto da sala. Geme. O rosto de Marcela ilumina-se; comprime os lábios num trejeito juvenil e pede-me o telefone com um gesto.
“Crisântemos ou gladíolos?”pergunta, enquanto marca um número. “Não, lírios, não é? Lírios brancos. Tão vulgar. Enfim, é o costume, não?”
Como Marta fora vulgar; nunca ouvira de Marcela uma palavra contra ela – Marcela fala por silêncios. O meu estômago crispa-se; uma película de suor cobre-me a nuca.
“Para quê?” pergunto, a minha voz sumida de medo. Jaime solta um ganido patético.
“Para que havia de ser, tonta? O funeral. Está aí, na secção de óbitos” disse Marcela, empurrando o jornal na minha direcção. Levantei-me da mesa com um safanão e corri para fora de casa, uma voz polida e distante a seguir-me, encomendando coroas e ramos.
Com a testa encostada ao rebordo do lavatório e uma mão debaixo da torrente de água fria conto-me uma história, Era uma vez um trio de abutres que apreciava carne humana.
O mundo foi gentil para comigo. Nunca trabalhei porque não precisava e, se estudei, de nada me lembro. Marcela foi um achado; é uma líder nata e eu nunca quis ser mais que seguidora. Funciona. Tem tudo um pouco mais do que eu, seja dinheiro, beleza ou inteligência; isso também funciona. Jaime apareceu pouco depois, mais uma traça, como tantos outros. Marcela achou-lhe graça; ficou.
Quando encontrei a Marta pela primeira vez ela ainda não despira aquele olhar arregalado de rato do campo; acho que foi isso que me chamou a atenção. Apresentei-me sem lhe dar tempo de pensar porque é que uma desconhecida lhe falava com tanto à vontade; empurrei-a para a frente da Marcela e do Jaime que a olharam de alto a baixo, franzindo o sobrolho. Marcela soltou uma gargalhada que fez com que Marta corasse, e não lhe prestou mais atenção.
Os seus olhos arregalavam-se na ânsia de devorar o mundo que eu lhe apresentava: nunca percebeu ser ela a devorada. Eu e os meus amigos não passamos de sanguessugas. Pegamos nestes pedaços de almas de anjos, essa partícula que brilha nos olhos de pessoas como a Marta, fazemo-los girar, e girar e girar ao ritmo hipnótico daquilo a que chamamos vida, mas que é apenas uma morte adiada. Quando estamos fartos, quando a Marcela começa a bocejar e eu sinto aquele formigueiro familiar, a música cessa e amanhã é outro dia, todos os dias.
Há que entender: neste mundo em que vivo, no mundo que é de Marcela e nunca foi de Marta, ter uma consciência não tem utilidade prática. É uma desculpa e uma razão, embora estas sejam apenas remendos em trapos sujos.
Marta engolia as luzes da cidade e erguia o copo para mais; rodopiava nos vestidos brilhantes que eu lhe arranjava, criando redemoinhos de cores violentas no néon a preto e branco das nossas vidas mudas. Estendia a mão como uma criança para qualquer coisa com potencial de a divertir e isso era tudo.
Esmagámo-la. E rimos e rolámos pelo chão sufocados no nosso histerismo, como hienas humanóides – como abutres. Ela queria sugar a vida até à medula – morreu numa noite sem nuvens: um corpo anónimo, lançado ao mar. O pescoço partido. O caso arrastou-se e acabou por ser arquivado por falta de provas.
Semanas depois daquela manhã em casa de Marcela, o Jaime evaporou-se. Marcela ainda é a mesma. Que cinco gerações depois de mim murchem e se desfaçam em cinzas e pó e nada, antes que da sua cabeça brote um único cabelo branco.
Passo as noites na varanda a contar estrelas. Compro todos os dias um novo maço de cigarros para não os fumar; eram o vício de estimação de Marta. Guardo-os na segunda gaveta da cómoda grande; estou a ficar sem espaço mas seria um desperdício deitá-los fora. Na noite em que morreu, Marta fumou meio maço à minha frente, enquanto esperávamos que a Marcela se arranjasse. Marcela chama à cómoda «o altar».
Não falamos sobre Marta. A suspeita é um cancro ulceroso e eu sou apenas humana; as pessoas que, como a Marcela, se habituam a ser adoradas, dificilmente deixam que coisinhas vulgares como a Marta afastem os seus idólatras. No entanto, penso. E quanto mais penso, mais se adensa o nevoeiro que é a memória daquela noite, porque eu vi a Marta, falei-lhe, deixei que a Marcela me servisse champanhe, empurrei o Jaime quando se encostou a mim no sofá. Estática. Um apagão e, de repente, o dia seguinte. Três dias depois, «A Marta morreu».
De dia durmo as horas que me fogem de noite. Talvez por isso tenha visto a Marta na montra de uma loja, no faiscar do Sol numa poça de água, no espelho da minha casa de banho. Talvez sejam pesadelos. Talvez não; talvez as estrelas sejam o sonho e a Marta a realidade. Devia deixar de dormir de dia mas não consigo, há tantas estrelas por contar. Marta gostava de estrelas, era uma tola romântica. Tinha um perfil desinteressante. Vulgar. Ainda tenho o seu lenço favorito, o vermelho, estendido em cima da cómoda. Marcela não gosta.
Fez anteontem quatro anos e sete meses desde que «A Marta morreu». Não conto os dias; falta pouco para que deixe de contar os meses também. O nevoeiro daquela noite espalhou-se. As alucinações ganharam som. Contam-me todos os dias uma versão nova para preencher os espaços brancos na minha mente.
A Marcela decidiu levar-me para a casa do lago; disse que devia antes internar-me num hospício, mas ia fazer uma última tentativa. A Marcela adora o lago – é fácil perceber quanto ela gosta de algo ou alguém pelo tempo que gasta a insultá-los. Como quando lhe peço a bóia vermelha grande: diz que sou uma tonta preguiçosa e que se a encher de limos nem preciso de voltar para casa, mas empresta-me sempre. É uma mulher magnífica, a Marcela. Marta era tão subtil quanto uma pedra a cair num charco.
Devo ter adormecido, deitada na borracha quente da bóia, com o Sol a queimar-me os ombros e a água a morder-me a ponta dos dedos; a Marcela diz que sim. Devo ter adormecido porque a cara da Marta a olhar-me fixamente do fundo do lago é um absurdo. Ou talvez não. O que é o sonho? O que é a verdade?
“O que aconteceu naquela noite, Marcela?”
A Marcela diz que estou a começar a enervá-la.
Hoje à noite o Jaime bateu à porta. Tinha os olhos vermelhos, barba de uma semana e cheirava como se não visse água e sabão há ainda mais tempo. Olhou para mim a fungar e começou a carpir como uma velha desdentada; a Marcela bateu-lhe. A marca ficou, vermelho-raiva naquele rosto apatetado. A Marcela é muito forte para uma mulher tão sofisticada; acreditei que era uma deusa quando pela primeira vez a vi.
O rosto da Marta fitou-me do lume da lareira.
Perguntei-lhe. Perguntei-lhe, Marta, perguntei-lhe se te tinha morto. O Jaime tremeu e olhou para Marcela, como que a implorar, mudo. A lenha rangeu e, aos meus ouvidos, soou como ossos a quebrarem.
O céu estava cheio de estrelas nessa noite.
------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
* O título é inspirado num jogo para crianças (equivalente em português a "O rei manda") em que o escolhido como "Simon" ditará tudo o que os outros têm de fazer. Pensei no título do jogo em inglês como mais adequado ao que queria transmitir, fazendo a ligação com a personagem da Marcela.
Diana Paulo, nº 41211
Prólogo
A 8 de Julho de 1497, parte do Restelo, em Lisboa, uma expedição que tem como principais objectivos encontrar o reino do rei cristão Preste João e chegar à Índia por via marítima. A Expedição é comandada pelo Almirante Vasco da Gama e com ele partem outros 159 homens, incluindo o seu irmão Paulo da Gama. A armada do almirante era constituída por quatro navios: a nau São Gabriel, capitaneada por Vasco da Gama; a nau São Rafael, chefiada por Paulo da Gama; a caravela Bérrio, comandada por Nicolau Coelho; e uma naveta destinada ao transporte de mantimentos, liderada por Gonçalo Nunes.
A missão era arriscada e ninguém tinha ideia de quanto tempo iria durar a viagem ou mesmo se tal região existia. Havia mitos, mas nada de concreto. A única informação disponível fora dada por Bartolomeu Dias, havia dobrado o cabo da Boa Esperança em 1488.
A armada de Vasco da Gama chega finalmente a Calecute a 20 de Maio de 1498 e regressa a Lisboa em Julho do mesmo ano. Das naus envolvidas, apenas a São Rafael não regressou, pois teve de ser queimada fase à incapacidade de a manobrar. Apenas 55 dos 160 homens que integravam a armada sobreviveram a este grande feito. Mais de metade da tripulação tombou devido ao escorbuto.
Álvaro Velho foi quem relatou toda a viagem. No entanto, apenas narrou até ao dia 25 de Abril de 1499, quando a frota, ao regressar da Índia, chega à ilha de Santiago, em Cabo Verde. Não se sabe se o cronista faleceu, se ficou em terra, se apenas perdeu a última parte do diário da viagem, ou se teria ficado doente. O documento que narra a viagem tem o nome de “Roteiro de Álvaro Velho”. Este conto relata precisamente a parte final da primeira viagem dos portugueses ao oriente.
------------------------------------------------------------------------------------
Aos vinte e cinco dias de Abril de mil quatrocentos e noventa e nove, a S. Gabriel e a Bérrio avistam, finalmente, a ilha de Santiago. Para trás e sem retorno possível ficaram noventa e um homens, a São Rafael (que repousa no Indico) e mais de seiscentos dias de viagem. Aqueles companheiros, que também foram irmãos, deixaram as suas almas entregues ao grande Senhor dos Mares e ao criador de todas distâncias.
Ontem ao início da noite, o Capitão Paulo da Gama mandou reunir toda a tripulação e deu aquela que pode bem ter sido a sua última demanda, bradando apenas, já sem a força de outros meses: “Façam história com os vossos nomes”. Sem entender o porquê e o significado daquelas palavras, limitei-me a transcrever e a repetir silêncio, na calma da noite as mesmas falas. Os homens, já cansados do dia e da aventura, que há muito perdurava, prestaram atenção a cada palavra, sem chegarem a nenhuma conclusão, mirando para uns e outros, procurando obter de alguém uma explicação, sem resultado. Depois de ver tantos outros enfraquecerem daquela mesma forma, já todos imaginam o que em breve poderá ocorrer. O capitão deixou de conseguir absorver o desespero e o desânimo de todos aqueles que o admiram. Talvez por isso, também ele deixasse de lutar com a pior de todas a doenças: a descrença.
O dia vinte e cinco de Abril foi, de facto, o dia mais importante daqueles últimos dois meses. Depois de oito semanas em alto mar, finalmente chegamos a Santiago. Os homens que restavam tinham por fim a possibilidade de se vingarem daqueles cinquenta e seis dias seguidos de amargura, da monotonia azul da paisagem longínqua, dos afazeres fincados e, o mais importante, podiam-se desforrar da incerteza do amanhã.
Entre o céu e o mar, tanto a São Gabriel, como a Bérrio, mesmo aceitando os desígnios do Todo-Poderoso através da mãe natureza, são apenas duas jangadas flutuantes e apesar da sua robustez, a determinação do ondear serpentino, que os faz deslizar entre e sobre seu manto líquido e salgado, é quem dita as normas e decide quem pode e deve ver o amanhã.
A neblina matinal de outros dias não compareceu e aos primeiros raios da manhã ouve-se do alto dos mastros a voz do grumete Sancho Mexia, bradando com a alegria ressuscitada e com toda a energia de que dispunha: “Terra à vista, terra à vista…”
Com a beleza daquela vista desimpedida, aquele que ainda era um pequeno ponto no horizonte, mais parecia o último e o único paraíso do mundo. Finalmente as ilhas de Cabo Verde. Ao fim de quase dois anos, sabíamos que iríamos encontrar súbditos de El Rei D. Manuel, ouvir a língua da amada terra, comer carne fresca, beber um bom vinho ou tomar um banho sentindo o íntimo das moças.
Depois de aportar, o Capitão-mor, solicitou a comparência de todos os mareantes junto à proa, muito preocupado com o estado de saúde do seu irmão, o nosso querido capitão Paulo da Gama e também de outros três marinheiros tomados pelo escorbuto e decidiu que a tripulação ficaria na ilha somente oito dias. De acordo com a indicação do almirante, a nau São Gabriel e a caravela Bérrio iriam partir no dia três de Maio, logo ao nascer do sol.
Ao chegar à cidade da Ribeira Grande não pudemos deixar de notar que aquela que era apenas uma pequena aldeia há apenas dois anos se transformou numa bela povoação, mais preenchida e colorida. Havia mais negros de África, moças muito vistosas, que mais pareciam belas encantadas, saídas de uma bela canção forjada por um trovador.
Fomos muito bem recebidos na ilha e ao anoitecer foi oferecido um manjar em nossa honra, por ordem do Regente Leonardo de Barros. Segundo aquele Administrador todo o reino estava receoso quanto ao nosso paradeiro, visto que não havia notícias; e ele acredita que iríamos ser muito bem recompensados por tal feito e que a Europa iria cair a nossos pés.
Os sacrifícios, as lágrimas, as perdas e privações ficaram olvidados por instantes. Todos os membros da tripulação (aqueles que podiam) tiveram direito a regalos para todos os gostos: vinho da terra, moças formosas, comida do melhor, aguardente e um canto para dormir com aconchego. Foi farra a noite inteira…
Em nome de Deus, ámen[1].
Depois de a noite, tornava a dura tarefa de voltar à realidade. Dei por mim na praia de Santa Maria com vários companheiros a ladear a minha pessoa e naquele momento só pensei no meu querido Barreiro. Por instantes alembrei-me do doce Tejo…
… e de repente tudo muda. Tento olvidar aquele momento em que alterei a minha vida por causa de um amor que não era o meu. Já fiz de tudo para o esquecer mas Deus, que me protege, não o permite. Em mim jaz a culpa que é grandiosa e viverei para o todo sempre na desvirtude. Nem mesmo dois anos de afazeres forçados perdoaram tal acto. Ao doce Tejo, que era meu, não poderei tornar. As águas tranquilas do grande rio não voltarão a passar pela janela da minha retina, nem por esta pele queimada pelo sol abrasador destes mares do sul.
Todos os marujos tornaram a casa, para junto das suas esposas e familiares e eu que posso fazer? El Rei prometeu que se a minha pessoa voltasse a pisar as terras do reino seria enforcado. Talvez esse seja o castigo merecido. Desta forma cessava o pecado e morria ao menos com os olhos postos na terra que me viu nascer, calmo e sereno, como o Tejo quando se converte em oceano nas manhãs tranquilas de Junho. Talvez por falta de coragem ou por não ter cumprido o pedido do respeitoso e querido capitão Paulo da Gama, não poderei entregar o meu destino ao desconhecido e improvável. Como prometido, terei de fazer história com o meu nome e porque não, eternizá-lo num feito.
Três dias antes de o nosso pouso nesta ilha, chegara a Santiago um navio proveniente de Cadiz, da Andaluzia de Castela, capitaneado por Vicente Yáñez Pinzón[2], que, de acordo com elementos da tripulação se dirigia para a ilha de São Domingos, no Novo Mundo. Talvez se encontre um afazer para mim no navio. Mas não será traição passar a carreira ao serviço do maior rival de El Rei de Portugal? Não, voltarei a ser alguém entre as ondas e as marés.
Mesmo um degredado pode ter direito a uma segunda vida, se a misericórdia de Deus assim o permitir. Talvez o meu estimado amigo e capitão Paulo da Gama me possa salvar nessa decisão.
Assim que cheguei aos aposentos do nosso querido capitão senti um misto de alegria e ansiedade. Alegria por saber que a pessoa que tornou aquela viagem possível estava com melhor aspecto. A sua pele ganhara o tom natural de um marinheiro e os seus olhos tinham agora o brilho da coragem. A ansiedade apoderou-se de mim no momento em que Paulo da Gama, reparou nos meus gestos comprometidos e disse: “conheço os sinais do teu rosto e sei que não vais embarcar connosco para o reino. Quero apenas dizer que não aceito despedidas, muito menos lágrimas, pois a memórias que guardo das nossas aventuras iram prevalecer nos melhores momentos que guardo comigo. Escrevi uma pequena carta para ti, como sinal do meu respeito e admiração, mas tens de prometer que só irás ler depois de eu partir”.
Sem outra saída possível, limitei-me a garantir que o seu desejo seria cumprido. Já sem palavras, abracei o meu grande amigo pela última vez. A força daquele aperto ajudou a traduzir o respeito, a afeição e a admiração que sentia de em relação à aquela pessoa magnífica.
“As palavras nem sempre dizem tudo, mas os gestos não enganam. Ficarei eternamente grato”. Esta foi a última mensagem dirigida ao meu eterno capitão.
A uma quarta-feira, que foram os vinte e sete dias do mês de Abril, a nau Esperanza levantou a âncora em direcção ao Novo Mundo. Aceitei o meu passado e agora irei edificar o meu próprio destino. Não poderei voltar ao Tejo, mas irei fazer história com o meu nome, dedicando a minha vida ao princípio da felicidade. Sendo feliz, serei quem sempre ansiei ser…
A luz da manhã que nascera ganhara força à noite, que passou pacífica, e reclamou para si o calor daquele dia. Finalmente iria ler a carta que o estimado capitão escrevera.
“Filho, a vida é um instante preso a vários momentos e um conjunto de viagens que se vão abrindo com os nossos sentidos. Como um rio, também tivemos um local de nascimento, onde iniciamos a nossa aventura. Porém, o ponto de chegada é uma incógnita. A nossa existência é pautada com as consequências das nossas decisões. Podemos até querer parar e talvez voltar atrás, no entanto, a força maior do futuro, que não espera, jamais o permite.
Vai e onde quer que o destino te leve, segue o teu rumo bem firme e sê apenas feliz…
Paulo da Gama
Epilogo
Álvaro Velho embarcou na Esperanza, nau comandada por Vicente Yáñez Pinzón. Este navegador andaluz veio a descobrir o actual Brasil em 1499, no entanto, esta terra apenas seria descoberta de forma oficial e reclamada para Portugal por Pedro Alvares Cabral em 1500.
Depois desta viagem, Álvaro Velho regressou a África, onde viveu até aos seus últimos dias, nas margens do Rio Grande, actual Serra Leoa, como professor, pai e marido. Consta apenas que morreu feliz.
Paulo da Gama veio a falecer em Junho de 1499, na ilha da Terceira, nos Açores. Apesar de a história não ter sido generosa com este que foi provavelmente um dos maiores navegadores portugueses, para a eternidade ficam a coragem e a generosidade de um homem que trocou tudo pela dignidade da vida simples e afortunada de boas memórias ("eternidade provisória").
Este conto é dedicado à memória de Francisco Rodrigues.
Paulo Rodrigues
35626
08/06/11
WOMEN and the ARTS
http://womenandthearts.blogspot.com/
15-17 Junho
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
O grupo de investigação de Estudos Americanos do CEAUL (Centro de Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa) está a organizar o colóquio “Women and the Arts: Dialogues in Female Creativity in the U.S. and Beyond”, a decorrer na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, entre os dias 15 e 17 de Junho. Pretende-se dinamizar uma reflexão sobre a produção artística no feminino, num contexto multidisciplinar e de cariz internacional.
A relação entre a mulher e a arte e os seus diferentes contornos e expressões é a base deste colóquio de três dias, contrastando a realidade dos Estados Unidos da América com outras culturas. Propõe-se uma reflexão sobre as condições de produção, circulação e recepção dos trabalhos realizados por mulheres artistas, desde a modernidade até ao contexto contemporâneo.
O colóquio irá cobrir uma panóplia de áreas, desde a literatura, às artes visuais e performativas, passando pela música. Vamos ter como convidados de relevo, Sandra Gilbert, poetisa e investigadora sobre a literatura feminina de expressão anglística; Christine Battersby da área da filosofia da criatividade feminina; o crítico, fotógrafo e curador Edward Lucie-Smith; Ana Luísa Amaral, poetisa e académica.
Estamos ainda a dinamizar um programa cultural variado, incluindo: no cinema S. Jorge e em parceria com o Festival do Silêncio, um espectáculo de improvisação sobre a figura de Sherazade, com a participação de contadoras de histórias, uma música/compositora e uma bailarina/coreógrafa; uma mesa-redonda com artistas portuguesas de várias áreas; um workshop sobre a arte de contar; um recital de poesia.
Destaca-se a presença de Joana Vasconcelos, que virá dar uma palestra sobre a sua obra e apresentar a peça “Valquíria enxoval, 2009”, da colecção da Câmara Municipal de Nisa. Gentilmente cedida pela artista, esta peça ficará instalada algumas semanas no átrio da Faculdade de Letras, no contexto da celebração do centenário da Universidade de Lisboa.
07/06/11
Conto Individual 2º versão
Quando as casas eram brancas e os homens usavam bigode, os habitantes da grande casa da vila bebiam chá sempre às 5h25. Nunca antes ou depois. A vila era pequena, nada mais do que uma longa rua com dois cafés, um restaurante e uma mercearia, para além das vivendas. Ao fim da rua a terra batida misturava-se com a areia da praia. A grande casa, por ser alta, tinha vista para o mar que era azul e calmo durante todo o ano, algo que fazia uma grande confusão à Dona Maria, que era do norte e não estava habituada. No Verão, a areia da praia quase não era visível, tantos eram os que ali se deitavam à espera que a sua palidez desaparecesse para dar lugar ao vermelho ardente. A Dona Maria nunca ia à praia, ela tinha de fazer o chá, e o chá tinha de estar pronto às 5h25 nem mais nem menos. A essa hora, o chá, a mesinha de madeira da sala e as bolachas de chocolate e caramelo (as preferidas da Mercedes) tinham de estar prontos. Portanto não havia tempo para ir queimar a pele ou molhar os pés. Se algo não estivesse pronto, pobre Dona Maria, seria como da outra vez, em que por causa da Mercedes, esteve a limpar os pedaços de chocolate do chão e não conseguiu ter o chá feito à hora certa, até já passavam das 5h32 quando a mesa ficou finalmente pronta. Nesse dia, a senhora Cecília não bebeu chá, saiu e foi para a praia. No parecer da Dona Maria, a senhora Cecília passava demasiado tempo na praia. E a necessidade de ter o chá às 5h25 era simplestemente ridícula.
Nestes dias de início de Primavera, a Mercedes saía à rua de vestido curto, mas voltava sempre a meio da tarde à procura de um casaco.
- Não, Maria! É aquele amarelo!
- Oh, menina Mercedes, mas esse não é de Verão?
Mercedes revirou os olhos da maneira que tantas vezes fazia (mas nunca na presença de Cecília) - Maria, não quero saber se é de Verão ou não! Quero esse!
- Eu também não quero saber! É a menina que depois fica com frio, não sou eu! Mas de qualquer maneira esse casaco não está aqui, se calhar é a senhora Cecília que o tem no quarto.
Mercedes murmurou qualquer coisa que a senhora do norte não percebeu e saiu do quarto depois de vestir um casaco azul marinho que tinha em cima da cama.
Lá fora já estava a ficar frio e vento e a vontade de ir comprar um gelado rapidamente desapareceu. Foi até à praia, descalçou os sapatos, que eram amarelos tal como o casaco que queria vestir. Cecília estava deitada na areia um pouco mais à frente. Ainda não era Verão e ela já ali estava, pensou Mercedes. Realmente Cecília parecia não sentir o vento. Na verdade as duas irmãs pouco tinham em comum, tanto na aparência como na maneira de ser. Cecília era também mais velha, a Maria e todos os da vila dirigiam-se a ela como senhora Cecília porque a outra senhora da casa já tinha morrido.
Mercedes decidiu ir ter com ela… também gostava do mar e da praia, talvez não tanto como a irmã. A única coisa de que não gostava era de sentir a areia nos pés ou de ficar com areia nos sapatos e na roupa, Cecília não se importava com isso.
- Não tens frio?
- Não… a areia está quente.
Mercedes riu-se de forma infantil
- Só se for aí onde tu estas deitada!
- Talvez. E tu? Não tens frio? Esse vestido não é curto de mais para este tempo?
Mercedes olhou para o vestido e alisou-o com as mãos antes de falar no seu tom de criança que sabe tudo:
- Não me importa!
Cecília que tinha estado este tempo todo de olhos fechados, olhou a irmã de alto a baixo e sorriu. Fechou os olhos e voltou a virar a cabeça para o sol.
- Hoje está um bom dia.
Mercedes foi até à água, só para sentir que estava demasiado fria, nem a Cecília ia ser capaz de tomar banho assim e no entanto o cabelo de Cecília estava molhado. A irmã mais nova sentiu um arrepio e foi para casa.
- Já de volta? - a Dona Maria estava na cozinha a pôr as bolachas num prato.
- Sim!
- E a senhora Cecília?
- Está ali na praia, este ano começou cedo! Está um frio terrível!
Dona Maria ignorou a contradição da jovem Mercedes e continuou com o que queria dizer :
- Podia ir chamá-la?
- Eu? Mas porquê? - Apesar de já ter idade para não fazer birras, Marcedes comportav-se sempre de forma infatil, talvez devido à educação e ao facto de ser a irmã mais nova.
- Hoje temos visitas… – disse com um sorriso.
Mercedes correu para a sala, sentados um ao lado do outro como os casais se sentam, Teresa e Duarte esperavam o chá das 5h25.
- Mercedes! Estás tão grande! - A voz de Teresa era fina, talvez demasiado fina e portanto um pouco irritante, pelo menos na opinião honesta de Cecília. Mercedes não pensava o mesmo, muito pelo contrário, para ela a Teresa era o exemplo de tudo o que ela queria ser: magra e com um marido muito bem parecido. A opinião de Mercedes podia ser infantil mas era a verdade de forma simplificada, a Teresa não era mais que isso.
-Teresa! Pensava que nunca mais nos vinhas visitar! - Mercedes abraçou a irmã mais velha, ignorando Duarte.
- Bem já tinha algumas saudades das minhas irmãs. - Teresa sorriu e penteou o cabelo castanho com os dedos de forma a que não lhe tapasse a cara, o que acontecia várias vezes.
- Olá Mercedes, está tudo bem? - a voz de Duarte era rouca, forte; da sua boca nunca saíam palavras sem propósito. Os olhos verdes, ainda mais verdes do que os de Mercedes, penetraram o olhar da jovem.
- Sim. – Mercedes respondeu calma e rapidamente, desviando o olhar. Não gostava de Duarte, para além da sua aparência física não conseguia ver qual era o interesse que Teresa tinha nele. Cecília via toda aquela situação de forma contrária e ao entrar na sala, apenas com um fino vestido de praia e a pele um pouco mais morena, a única coisa que disse ao ver a irmã primogénita com o marido foi:
- Olá, parece-me que estou um pouco atrasada, peço desculpa.
Já sentados à mesa, Duarte não tirava os olhos de Cecília e Mercedes não tirava o seu olhar desconfiado de Duarte, como sempre durante a infância das irmãs, Teresa parecia estar num mundo à parte, afinal a ignorância é uma bênção. Os olhos de Cecília estavam cravados no chá que bebia.
- Bem agora que já aqui estamos todos acho que podemos contar o que viemos contar, não é? – Teresa acariciou a perna de Duarte e olhou para as irmãs.
- Sim, acho que sim. Tu é que sabes Teresa.
- Estás grávida? – gritou Mercedes – É isso não é!
A cara de Teresa não mentia. – Sim! É isso mesmo irmãzinha.
Cecilia olhou para Duarte que desviou o olhar.
Quando a areia da praia quase chegava à grande casa, o chá era tomado à hora em que as jovens irmãs se encontrassem prontas, o que poderia demorar, visto que a mais nova tinha apenas 10 anos.
- Dona Maria, tal como ainda se deve lembrar, é hoje que vamos receber o filho do Banqueiro. Sabe? Aquele que estava a a estudar no estrangeiro.
- Já voltou?
- Sim! A Teresa vai fazer 18 anos, eu estou cada vez mais doente
- Não diga isso, Dona Magda.
- Mas é verdade, as minhas outras filhas precisam de alguém que as possa sustentar.
Magda virou as costas e subiu até ao quarto da filha do meio. Cecília estava a preparar-se para sair.
- Hoje não podes ir à praia. Nem respondas Cecília, ainda nem estamos em Abril. Para além disso, talvez seja hoje o dia em que a Teresa arranja um marido. Portanto não quero que a trates mal em frente ao pretendente.
Cecilia não respondeu, quando a mãe saiu do quarto tirou o vestido de praia e o fato de banho e trocou-os por um vestido azul escuro demasiado curto para a ocasião.
Quando a campainha tocou, às 5h25, as três irmãs (cada uma com um vestido mais curto) desceram a correr as escadas e foram-se sentar entre risadas no sofá da sala de estar. O jovem que entrou na grande casa era alto e muito bem parecido, com uns olhos verdes intensos que rapidamente se dirigiram para Cecília. Duarte não poderia ser responsabilizado, ao lado da irmã do meio, Teresa parecia uma criança ainda em formação.
- Boa tarde Duarte, espero que tenha feito uma boa viagem até aqui.
- Sim, obrigado, Dona Magda.
Magda apresentou as filhas dizendo apenas o nome e não apontando, nunca pensado que Duarte achava que a mais velha era Cecília.
- Bem agora vou deixar-vos aqui para se conhecerem melhor, mas a Teresa não deve ficar na presença de um rapaz sem estar acompanhada, portanto assim fica já a conhecer as irmãs.
Magda saiu e os jovens ficaram a falar enquanto bebiam chá e comiam bolachas.
- Eu adorava viver numa casa ao pé da praia, – Duarte estava completamente apaixonado, nunca esperaria gostar assim tanto de uma rapariga que nunca tinha visto. Só queria que aquele encontro acabasse para ter outro e outro.
- Sim, é maravilhoso… – respondeu Cecília com um sorriso que poucas vezes se via.
- É um bocadinho irritante quando a casa começa a ficar cheia de areia. – disse Teresa na sua voz fina soltando uma risada.
- Eu também acho. – respondeu Mercedes.
Quando Magda voltou à sala poucas horas depois Duarte levantou-se e em voz alta disse que não queria esperar mais, pois não havia quaisquer dúvidas no seu coração, Teresa era a rapariga para si e visto que o pai já não estava presente era então a Magda que ele pedia a mão da filha mais velha. O coração de Cecília caiu, como é que ele poderia querer casar com a Teresa? Sem querer abriu a boca e arqueou as sobrancelhas, quando Teresa se levantou em êxtase, o mesmo aconteceu a Duarte, não era esta a filha mais velha que ele afinal queria.
- Estou tão feliz! Nem acredito que sentes o mesmo que eu sinto.
Após o chá e as novidades as irmãs despediram-se à porta, Duarte e Cecília apenas apertaram as mãos mas foi o bastante para que os seus corações batessem mais rapidamente, mesmo que só por alguns segundos. Teresa entrou no carro, já Cecília entrara em casa. Mercedes puxou o casaco de Duarte e disse-lhe ao ouvido:
- Se tu fosses uma rapariga e a Teresa e a Cecília fossem rapazes eu diria que o filho não era da Teresa.
aluna 37958
Conto individual (2ª versão) - António Seabra
Não me deram qualquer justificação para me levarem ao Psicólogo. Começaram por dizer que tinha de ser, que tinha mesmo de ser. Depois evoluíram para um motivo mais racional: não sabemos. E tanto o não saber como o ter de ser não me pareciam razões válidas. Fiz então um esforço para descobrir os motivos que estavam por detrás da marcação de uma consulta caríssima com um caríssimo salvador de tristezas. Ainda por cima para mim que nunca me senti sozinha nem deprimida nem nada dessas coisas. Estou sempre bem-disposta, a vida não me parece assim tão difícil, e independentemente do significado do adjectivo que vou usar a seguir, considero-me uma rapariga feliz. Então agora imagine-se a pergunta dentro de mim, o ruminar incansável à volta das razões que levariam uma rapariga boa de saúde como eu a frequentar um médico da cabeça. Quereria ele perguntar-me alguma coisa que só eu soubesse? Juntar a Santo Agostinho, Rousseau e Tolstói as Confissões de uma adolescente? Pensando bem, não seria má ideia: sempre gostei de ler e se fizessem da minha vida uma obra de arte não me importava nada. Por falar em livros vem-me à cabeça um conto de um escritor moçambicano em que a personagem principal é internada por gostar de declamar poesia. Será esse o medo dos meus pais?
Tentei convocar uma reunião familiar envolta em chá preto e torradas com marmelada mas o convite foi negado, tanto pelo meu pai como pela minha mãe, por ser o número de membros da família demasiado grande para o conhecimento do motivo. Como se houvesse ali alguém a mais com quem não se pudesse partilhar a informação. Em primeiro lugar achei que estavam a brincar com a minha cara porque a nossa família é composta por quatro elementos: além de mim e dos meus pais existe só o meu irmão Pedro. Em segundo lugar o Pedro sabe tudo acerca de mim e é uma pessoa com quem não tenho problemas de partilhar seja o que for. À falta de vontade dos meus pais para tomar chá e falar da vida acabei por desistir. E como sobretudo gosto de os ver satisfeitos lá acedi ao pedido, e ao fim de algumas semanas houve um dia em que o despertador do telemóvel me acordou com o seguinte lembrete: Psicólogo.
Então o dia chegou e lá fui eu. Bem-disposta como quase sempre, sorridente como quase sempre, acordei, tomei banho e arranjei-me. (Quando ia a sair de casa o arranjo foi quase todo pelo ar porque fiquei com os cabelos entrelaçados na minha fita porta-chaves que estava pendurada no candeeiro da entrada, um lustre velhíssimo que não serve para nada e que os meus pais teimam em manter ali. Penteei-me no espelho do elevador e não fiquei tão gira, então o ódio ao maldito lustre cresceu. Que importa isso. Bati a porta do prédio e apanhei o metro.)
Cheguei à estação, subi as escadas que nos elevam à superfície, atravessei meia dúzia de ruas e estava lá. Dois andares sem elevador que não custaram a subir. Incomodava-me, isso sim, a ideia de ter de esperar horas para que chegasse a minha vez numa sala cheia de cadeiras podres com velhas a queixar-se das costas e dos netos mal comportados.
Vá lá que não tive de esperar muito, a sala de espera vazia para espanto meu, as revistas da sala de espera ainda mais vazias de tão antigas, um ecrã onde alternava uma jornalista muito feia com a chuva esquisita que ocupa os televisores antigos. A jornalista falava de suicídio na adolescência, a chuva esquisita não falava de nada e agradava-me.
De maneira que ao sentar-me para esperar não esperei grande coisa e fui logo chamada. Entrei para o interrogatório espiritual e mesmo antes de começar a falar reparei no tique deveras engraçado que o doente, quer dizer, que o médico tinha no olho esquerdo, que piscava e piscava sem parar. Se calhar não era tique nenhum e estava apenas nervoso, mas sinceramente não vejo razão para a minha presença enervar alguém. Para juntar ao olho esquerdo que piscava sem parar uma das abas do nariz mexia-se a uma velocidade que por pouco não me fez desatar às gargalhadas. Mas contive-me, como sempre faço nestas alturas, e assim se deu início à sessão de perguntas.
Era quase capaz de apostar que a primeira pergunta iria ser aquele cliché tenebroso que ocupa as cabeças das empregadas domésticas quando os filhos não vão à escola: porque te sentes triste. As minhas expectativas não foram concretizadas e como não me sinto triste nem sozinha nem deprimida nem nada dessas coisas tirei um cigarro do maço e pedi isqueiro ao médico. Como ele é médico e não doente recusou-se a dar-me o isqueiro e então guardei o cilindro na caixinha.
Depois de muito piscar os olhos e contorcer as narinas lá começou a falar. E em vez de fazer perguntas sobre a minha pessoa preferiu saber como estavam as coisas lá em casa. Pelos vistos a consulta devia ter sido marcada para as coisas lá de casa dado que as perguntas não eram pessoais. Respondi que estava tudo bem, que todos éramos felizes e nada havia a temer. Depois de lhe explicar este facto óbvio, e de ficar indignadíssima com a sua expressão de estranheza perante a segurança da minha resposta, o médico pegou numa caneta e começou a desenhar pequenos círculos perfeitos numa folha em branco. Ficámos os dois em silêncio, cinco minutos, dez, quinze, vinte, até sermos interrompidos por um doente que começou a bater à porta do consultório com murros pesados. O mundo vai acabar, anunciava ele, enquanto os punhos alternavam de encontro à janelinha que estavas prestes a partir-se. O médico levantou-se e saiu do consultório, envolvendo o profeta com o braço, e encaminhou-o para outra sala. Entretanto o telefone estava a tocar há horas, fartei-me de o ouvir ganir e atendi. Carreguei no botão do sistema mãos-livres, na esperança de que o médico o ouvisse no corredor e voltasse para a minha frente, e a voz que vinha do outro lado não me soou muito agradável. A princípio pareceu-me familiar, o que me assustou, mas logo percebi que estava a alucinar. É o que dá vir a estes sítios, pensei. Aquela voz podia ser de um maluco qualquer, e há tantos por aí. Era também um anúncio, tal como o doido que esmurrava a porta, mas agora em forma de despedida. Ia-se pendurar numa corda mas não queria deixar de agradecer ao psicólogo toda a ajuda. Obrigado, doutor, do fundo do meu coração, já que não posso agradecer do fundo da minha mente. Achei esta despedida engraçada mas nestes momentos, não é verdade, a gente não se pode rir. O médico, esbaforido, entrou no consultório aos tropeções e assustou-me. Já só ouviu as últimas palavras, talvez ainda tenha tido tempo para reconhecer voz, pois voltou a sair do consultório. Se calhar para socorrer o rapaz, telefonar aos pais, sei lá.
Eu, agora sozinha, pela primeira vez na vida sozinha, pela primeira vez na vida sozinha e logo num consultório psiquiátrico ou psicológico ou seja lá o que for, afinal que diferenças separam comprimidos de conselhos, abri uma das gavetas da secretária do médico e encontrei um isqueiro. Tirei outra vez o cigarro do maço para finalmente sujar um bocadinho os pulmões quando descubro que o isqueiro não tem gás. E ao reparar que o isqueiro não tem gás, e ao analisar que estou numa sala de malucos para explicar a alguém porque é que me sinto triste, que não sinto, e ao acrescentar a esta análise que para além de estar numa sala de malucos estou sozinha numa sala de malucos, eu que nunca estive sozinha nem sei o que é isso de solidão, e ao ouvir aquela chamada digna do sítio onde estou mas não digna de mim, de facto não digna de mim, tudo isto me pesou, como diria um dos amigos do Fernando Pessoa, acho que o Álvaro de Campos, tudo isto me pesou como uma condenação ao degredo.
Para acentuar o degredo o médico voltou, de lágrimas a correr pela cara. Não se sentou, dirigindo-se directamente a mim, agarrando-me na cara e dizendo-me, a chorar: por favor finge que não ouviste aquela conversa. Outro cliché tenebroso e, para fazer a rima, pavoroso. Assustada, sem saber o que dizer, mas sabendo à partida que a resposta era óbvia, positiva, peguei-lhe nas mãos suadas do desespero e descolei-as da minha cara. O homem sentou-se no lugar mas não conseguia conter os nervos, não conseguia falar. Só as abas do nariz a tremelicar, os olhos a piscar e os círculos perfeitos a aumentar. Como eu não sabia o que havia de dizer, e como o médico não fazia perguntas, e visto que já eram quase três horas da tarde, voltei para casa.
E ao entrar em casa, como se explicará isto por palavras sem parecer mentira, os meus sentidos bloquearam. O meu irmão Pedro, logo à entrada, pendurado pelo pescoço. Sob o lustre que não servia para nada. Devo ter ficado uns dez minutos a olhar para ele, os dez minutos mais demorados da minha vida. Depois reparei que no chão, na linha dos seus pés, um telemóvel. Por instinto peguei nele e vi a última chamada efectuada. Psicólogo.
06/06/11
2ª versão do conto individual
E revelou-me ao ouvido: [sic]
“Quando entreviu que tudo era demasiado real, saiu de casa porque lhe apeteceu. Tratava-se de uma madrugada igual às outras; a diferença residia no singular interior, logo acima da consciência, que concedia um inadvertido lugar à exacerbada paixão por todos os elementos que permitiam a estrutura saudável da comum existência. Escolheu apanhar o autocarro e depressa verificou que a conformidade da rotina se mantinha fiel. A força com que o solo empurrava o seu corpo, o ar que perscrutava as células do casal de pulmões, combinado com as invisíveis partículas oxigenadas de hidrogénio ao quadrado, bem como a saída e o regresso aos pontos de equilíbrio, do acto de caminhar, participavam nas reformadas sensações, agora conscientes, daquele estado. A mancha informe que é olhar para o exterior de um transporte em movimento dissipou-se e a visão deixou de ser totalitária, permitindo dar conta de componentes que perderam a surdez provocada pelo ruído visual da cidade. Era possível enquadrar se na realidade; como se de uma fotografia, a grafia de luz que escreve sobre o tempo embalsamado, se tratasse, potenciando a contemplação dos fragmentos. A máquina, desequilibrada, movia-se tão velozmente que a paisagem se lhe apresentava ao som da primeira Gnossienne, acabando por dar razão a Satie quando a compôs. Apertou o botão que indicava o seu desejo de sair e ficou pelo centro. Apercebeu-se, quando voltou a olhar, que não havia ninguém dentro do autocarro. O despoletar desta paixão levou-@ até ao local onde se encontram todos os estados de concentração: a franja contextual; caiu no alheamento e nem se apercebeu da saída de quem conduzia. Foi o intenso amarelo de um grupo de narcisos semi-abertos que @ fez caminhar a passo largo até a uma florista encontrada num dos cantos daquela praça. Estava fechada, o céu apresentava, ainda, as tonalidades de azul mais escuras, mas ficou a observar as míticas flores no pequeno vaso que fora útero, através do vidro, esse que nos engana quanto à liberdade. Pelo tamanho das flores constatou que eram antigas, que o bolbo, enterrado, já tinha despertado várias florações, num círculo sazonal que tivera começo noutro bolbo, e assim por diante. Afinal, para além de meros narcisos, eram histórias da natureza que ficam por contar. Poder apreciar o esplendor, ver como as coisas são e que linhas as tecem, estava agora no seu horizonte. Apercebeu-se de que alguém dobrara a esquina, pois sentiu na pele uma intensidade diferente da brisa, mas foi tão rápido que não houve tempo para @ poder cumprimentar. Há sempre uma estranha cumplicidade para com o outro quando nos encontramos sozinhos e este dá um sentido à nossa existência; quase nos mesmos moldes de um encontro com alguém desconhecido que fala a mesma língua que nós, mas numa terra estrangeira. Regressados, não vemos esse estranho. Os momentos de suspensão da normatividade estão cheios de fissuras onde é possível encontrar respostas que matam perguntas. Foi então que se deu conta do enorme graffiti que habitava na parede lateral de um edifício abandonado. Era transparente. Foi escrito na sujidade da parede, formando uma zona limpa, e incolor para todos os efeitos. Sem tinta, podia-se ler: ‘Morre enquanto amas’. Que estranho, pensou, tinha a certeza de que aquilo não estava ali ainda há pouco. Decidiu, então, atravessar a praça na diagonal, tendo o cuidado de pisar a fronteira entre o branco e o preto das pedras, e já se podia ver a ofuscante estrela do dia. Repetiu o percurso, uma vez que se desequilibrara várias vezes, e voltando à posição inicial tentou verificar se tudo estava no mesmo lugar – pois, só o tempo passara. Ali perto havia um chafariz de curioso aparato, mas longe das formas aquáticas habituais. De todo o modo, não conseguia descrevê-lo para além da semelhança com o interior de uma rocha. Aproximou-se para se poder acalmar com o refrescante olhar da água e pousada no fundo do chafariz estava uma pedra negra. Arregaçou a manga e, imergindo o braço na água, conseguiu apanhá-la, deixando-a secar ao sol na palma da mão. De superfície espelhada, muito polida, a pedra absorvia toda a luz em seu redor. Nunca vi uma pedra tão bela quanto esta, disse, guardando-a no bolso esquerdo, enquanto olhava em seu redor para confirmar que ninguém via o que estava a fazer. Por não dar atenção suficiente às leis, não poderia saber se cometia alguma infracção. Mas ainda não avistava ninguém. As pequenas ondas provocadas pelo seu braço perdiam força, até não formar mais distúrbio na superfície da água e foi aí que deteve a sua atenção. Inclinou-se para poder observar o seu reflexo e, suspirando, ali ficou. O reflexo na água era lindíssimo: vestindo apenas céu, nuvens, e azul profundo.”
N.º 37966
Versão dois de “Descoberta”
PIRITES
Fátima refugiou-se em casa, com o coração aos saltos. Mal acreditava ter-se atrevido a introduzir-se em casa alheia, mas as suas suspeitas confirmavam-se.
Sabia que alguma coisa estava errada com o vizinho. Era o mesmo velho de roupas escuras, casaco coçado e chapéu fora de moda. Todavia algo estava diferente, ou talvez estivesse a ficar paranóica! A sensação era tão forte que lhe causava desconforto físico, agravado pelo facto de não conseguir descortinar a razão das suas desconfianças. De vez em quando, de livros abertos sobre a secretária, a atenção desviava-se-lhe para a janela, espreitando a rua.
Naquele fim de tarde, viu-o sair e, num impulso, resolveu entrar em casa dele. Saiu pelas traseiras, saltou o pequeno muro que separava os dois quintais, investigou porta e janelas. Tudo fechado! Trepou para a pequena varanda do primeiro andar. Levantou o estore… as portas estavam abertas.
O quarto ascético não a surpreendeu. Uma cama vitoriana em mogno, um guarda-
-fatos e mesas-de-cabeceira a condizerem. Para além da imagem no quadro, olhando-a acusadoramente, nada havia que lhe chamasse a atenção. Foi na casa de banho ao lado que descobriu as barbas brancas postiças! De repente, percebeu. Não era a barba, que parecia autêntica, era o andar! O que estranhara era o andar flexível, diferente do habitual caminhar cansado e lento.
Agora, em casa, as interrogações sucediam-se. Não seria sensato contar as suas suspeitas e não poderia aludir às barbas postiças sem revelar como as descobrira…
Fátima acordou assustada. Não recordava bem o pesadelo, mas o quadro aparecia nítido e perturbador. Tinha de voltar àquela casa!
Naquela tarde quente, Fátima cabeceava enquanto lia o calhamaço de Psicologia. As letras do livro dançavam perante os seus olhos sonolentos quando, de súbito, se sentiu alerta e desperta ao avistar, através da janela, o vizinho a sair de casa. Decide aproveitar a oportunidade.
Desta vez, arrisca descer ao andar de baixo. Nem as roupas gastas, nem o exterior modesto da casa, semelhante às do bairro, nem mesmo o quarto que investigara, nada indiciava o que presencia. Mobiliário requintado, tapeçarias persas, estatuetas, quadros antigos, tudo reluzindo numa limpeza meticulosa. Numa vitrina cheia de cristais, um ovo dourado decorado com gemas brilhantes numa pequena carruagem puxada por um anjo. Não devia ser, não podia ser um ovo Fabergé…
Entra na outra sala, a biblioteca. Gravuras alquímicas, idênticas à do quarto, decoram as paredes. Além de alguns livros clássicos escritos nas línguas originais, há sobretudo tratados de alquimia. Estranha também não encontrar aqui a escada para a cave; sabe que todas aquelas casas têm cave. Só lhe resta procurar na cozinha. Lá está, disfarçada num painel no fundo da despensa! Começa a descer as escadas e vislumbra, na obscuridade, um laboratório com bancadas, retortas, bicos de Bunsen. Imagina o velho sentado no banco de tripé, à luz bruxuleante do fogo que aquece as retortas. Um barulho na entrada da casa fá-la correr de volta à cozinha. Sem tempo para sair por onde entrou, experimenta a porta que dá para as traseiras. Trancada! Precipita-se para a despensa.
Suada, o coração acelerado, senta-se no chão, esperando, a cada momento, o abrir da porta do compartimento. Quem entrou subiu as escadas e a casa fica silenciosa. Fátima acalma-se gradualmente. Durante muito tempo não se ouviram ruídos, o vizinho decerto já estava a dormir. Assim, não poderia sair pela varanda por onde entrara. Tentaria a porta principal e se também estivesse trancada usaria uma janela. Levanta-se disposta a sair dali. Procurando não fazer ruído, abre a porta da despensa, mas hesita. A cave é misteriosa e afinal ainda não tem resposta para as suas dúvidas.
Decidida, abre o painel e desce as escadas. Começa a ver tudo mais distintamente após se habituar ao lusco-fusco proporcionado pelas pequenas janelas superiores. Frascos de conteúdo estranho alinham-se em prateleiras numa parede onde estão também alguns armários fechados. Um alambique exala um cheiro alcoólico. Caixas albergam diversos minérios de diferentes colorações, esverdeados, cinzentos, avermelhados, dourados. Pega num cristal que lhe chama a atenção e observa o fulgor alaranjado que este emite.
Nesse preciso momento experimenta um abalo, tem a sensação de descer num elevador a alta velocidade, objectos e paredes parecem prestes a abater-se sobre si. Sobe com dificuldade a escada que sente oscilar a cada passo que dá. Com a visão toldada, abre o painel que lhe parece enorme, só pensando em sair dali. Ao procurar alcançar uma janela, assusta-se com o seu próprio vulto reflectido no espelho da entrada da casa. Larga o cristal que se estilhaça no chão. Na calma que se segue, vê a figura da criança que a olha do outro lado do espelho.
Isabel (41435)
05/06/11
site de escrita criativa
http://www.escritacriativa.net/escrita/home.html
aluna 39015
04/06/11
A menina do adeus - 3º versão
Acordei num daqueles dias que queremos que perdure durante todo o ano. O Sol brilhava, a luz era clara, como sempre fui ate à janela, contemplar a rua e fumar o meu cigarro. Lá estava ela, não sei ao certo o seu nome, para mim será sempre a menina do adeus.
A menina do adeus é figura presente na minha vida. Na verdade se a minha vida fosse narrada, ela tomaria o lugar de narrador omnisciente. Sabe a que horas me levanto, a que horas regresso do trabalho, a que horas saio de casa, quem recebo em casa, ela está sempre presente.
A sua janela abre para a minha. Por todas as vezes que ela me sorriu do outro lado e me disse adeus, eu retribuí. Esta manhã nada foi diferente, contudo não sei se terá sido o documentário a que assisti ontem, ou os sonhos sem cessar que me sobrevoaram o sono. Hoje o adeus da menina remeteu a minha alma para um adeus que ficou perdido no passado, nas memórias mais profundas, naquelas que enterramos por baixo de outras.
O curso da história não pode ser apagado para aqueles que nele viram as suas vidas envolvidas. A doçura da infância não pode ser perdida, em prol de ideologias e de guerras que não nos pertencem.
A paisagem de Lorch assemelhava-se, pela sua cristalinidade, pela sua pureza, a uma tela projectada no irreal, no imaginário. Na tela, era possível ver duas crianças, que juntas corriam entre as árvores. Tínhamos nove anos, e brincávamos juntas nas margens do Reno. A envolvência das corridas em salto, dos jogos, das gargalhadas, não fazia prever os dias que se seguiram. Sonhavas ser médica, e eu professora, por vezes voávamos, ora para o teu consultório, ora para a minha sala de aula. Criámos nas traseiras do meu quintal, a casa dos sonhos, onde tudo era permitido. Eu criei esboços subtis de flores, árvores e corações, imagens normais para a minha idade, mas tu não. A tua sede de criar tornava o teu traço firme. O teu primeiro desenho ocupou a parede do teu consultório O céu, pintado de todas as tonalidades possíveis contrastava com uma muralha, que dizias ser um castelo. Eu então desenhei mais árvores, uma porção de árvores que cercavam o castelo. No fim do dia, quando voltaste para casa eu permaneci a olhar para o desenho, faltava o mais importante, eu e tu. Então num traço trémulo e brando desenhei-nos às duas de mãos dadas à porta do castelo. A aura de um viver inspirador, a casa dos sonhos.
No ano seguinte viajei e inicialmente não entendi porque tive de vir para Portugal. A minha mãe apenas me explicou que viria passar umas férias com a tia Matilde. Na altura lembro-me de não ter gostado da decisão, mas não me foram dadas grandes alternativas. Passei aproximadamente quatro meses sem os meus pais e depois também eles vieram para cá. A ideia de que, na verdade, as férias seriam eternas, e não voltaríamos a casa foi surgindo pouca a pouco, sem grandes questões.
Contudo com o passar dos anos, a idade dos «porquês» esmiuçados parece que assombra qualquer mente que incessantemente procura o seu lugar na terra. Acho que todas as crianças que começam a dar as primeiras passadas na chamada adolescência se envolvem nesse processo. E nessa incessante procura de respostas, os meus pais contaram-me o verdadeiro motivo da nossa partida da Alemanha. Acho que nesse dia de alguma forma a minha interpretação do mundo foi quebrada.
Os dias que se seguiram foram marcados por uma profunda desconfiança da vida. As recordações da minha casa, do meu quintal, do rio, dos pássaros e inevitavelmente de ti, ainda se encontravam bastante presentes. Continuava a viver numa moradia, e procurava ainda no voar do baloiço sentir-me liberta, acho que desde sempre os baloiços me acalmam. Numa dessas tardes, enquanto me baloiçava a pensar nas informações que me tinham sido omitidas, como sendo peças de um puzzle, ocorreu-me que talvez tu e a tua família fossem os tais judeus perseguidos de que o meu pai me falara. Na verdade eu não percebia nada de religião, os meus pais já eram ateus quando nasci. Mas tinha consciência de que a tua educação não era igual à minha.
Saltei do baloiço e fui ter com o meu pai, acreditei que ele me explicaria os factos de forma mais explícita. A minha mãe procurava sempre adulterar qualquer história: por ela, como se tal fosse possível, ainda hoje não saberia nada sobre “a mais irracional, tenebrosa e desumana acção daquele que insiste em denominar-se ser racional - o homem” (como diria anos mais tarde). Como calculava, o meu pai explicou-me o que na verdade significava ser judeu, e confirmou a minha suspeita, tu e a tua família eram judeus.
Percebi finalmente a razão para nunca me responderes às cartas que te enviei. Nos primeiros tempos em Portugal, lembro-me de que te enviei dois desenhos do meu quarto: queria que soubesses onde eu dormia, quando na verdade também tu te encontravas a dormir noutro local, provavelmente no campo de Dachau, enquanto eu permanecia num completo desconhecimento. Desde essa altura decidi que seria médica, na época decidi por ti, anos mais tarde por mim. O meu pai nunca me confirmou se terias sido deportada para algum campo de concentração, mas acabei por descobrir sozinha que a maioria dos judeus de toda a área envolvente tinham sido deportados para Dachau.
Na manhã em que abandonei Lorch, foste-te despedir de mim. A última vez que te vi estavas de cabelo entraçado, vestido azul, e ficaste parada a acenar-me até o carro desaparecer. Também eu te acenava, sem saber que aquela era a última vez que me despediria de ti.
Se existe justiça? É inútil responder. A desumanidade toma contornos tão eloquentes, que o utópico humanismo é na realidade uma fantasia na qual o homem necessita de acreditar.
Não voltei à Alemanha, acho que inconscientemente criei uma certa aversão à minha terra natal. Lorch, tu, a minha velha casa, a minha infância, tudo ficou nesse tempo, no refúgio das minhas memórias. Terminei o cigarro e lá continuava ela a contemplar-me. O palco das minhas lembranças contrastou com o Sol que emanava um calor agradável. Respirei fundo, para aliviar a sensação de vazio. Enrolei outro cigarro, enquanto observava os miúdos na rua, abraçados a tentarem deslizar unidos, apenas com um par de patins, unidos para provavelmente caírem juntos. Uma ingenuidade tão genuína. Acabei o segundo cigarro, e fiquei mais uns minutos a contemplar a menina do adeus, que agora se encontrava mais interessada nos dois miúdos de patins.
Soraia Gonçalves Nº39034