À hora do chá
Quando as casas eram brancas e os homens usavam bigode, os habitantes da grande casa da vila bebiam chá sempre às 5h25. Nunca antes ou depois. A vila era pequena, nada mais do que uma longa rua com dois cafés, um restaurante e uma mercearia, para além das vivendas. Ao fim da rua a terra batida misturava-se com a areia da praia. A grande casa, por ser alta, tinha vista para o mar que era azul e calmo durante todo o ano, algo que fazia uma grande confusão à Dona Maria, que era do norte e não estava habituada. No Verão, a areia da praia quase não era visível, tantos eram os que ali se deitavam à espera que a sua palidez desaparecesse para dar lugar ao vermelho ardente. A Dona Maria nunca ia à praia, ela tinha de fazer o chá, e o chá tinha de estar pronto às 5h25 nem mais nem menos. A essa hora, o chá, a mesinha de madeira da sala e as bolachas de chocolate e caramelo (as preferidas da Mercedes) tinham de estar prontos. Portanto não havia tempo para ir queimar a pele ou molhar os pés. Se algo não estivesse pronto, pobre Dona Maria, seria como da outra vez, em que por causa da Mercedes, esteve a limpar os pedaços de chocolate do chão e não conseguiu ter o chá feito à hora certa, até já passavam das 5h32 quando a mesa ficou finalmente pronta. Nesse dia, a senhora Cecília não bebeu chá, saiu e foi para a praia. No parecer da Dona Maria, a senhora Cecília passava demasiado tempo na praia. E a necessidade de ter o chá às 5h25 era simplestemente ridícula.
Nestes dias de início de Primavera, a Mercedes saía à rua de vestido curto, mas voltava sempre a meio da tarde à procura de um casaco.
- Não, Maria! É aquele amarelo!
- Oh, menina Mercedes, mas esse não é de Verão?
Mercedes revirou os olhos da maneira que tantas vezes fazia (mas nunca na presença de Cecília) - Maria, não quero saber se é de Verão ou não! Quero esse!
- Eu também não quero saber! É a menina que depois fica com frio, não sou eu! Mas de qualquer maneira esse casaco não está aqui, se calhar é a senhora Cecília que o tem no quarto.
Mercedes murmurou qualquer coisa que a senhora do norte não percebeu e saiu do quarto depois de vestir um casaco azul marinho que tinha em cima da cama.
Lá fora já estava a ficar frio e vento e a vontade de ir comprar um gelado rapidamente desapareceu. Foi até à praia, descalçou os sapatos, que eram amarelos tal como o casaco que queria vestir. Cecília estava deitada na areia um pouco mais à frente. Ainda não era Verão e ela já ali estava, pensou Mercedes. Realmente Cecília parecia não sentir o vento. Na verdade as duas irmãs pouco tinham em comum, tanto na aparência como na maneira de ser. Cecília era também mais velha, a Maria e todos os da vila dirigiam-se a ela como senhora Cecília porque a outra senhora da casa já tinha morrido.
Mercedes decidiu ir ter com ela… também gostava do mar e da praia, talvez não tanto como a irmã. A única coisa de que não gostava era de sentir a areia nos pés ou de ficar com areia nos sapatos e na roupa, Cecília não se importava com isso.
- Não tens frio?
- Não… a areia está quente.
Mercedes riu-se de forma infantil
- Só se for aí onde tu estas deitada!
- Talvez. E tu? Não tens frio? Esse vestido não é curto de mais para este tempo?
Mercedes olhou para o vestido e alisou-o com as mãos antes de falar no seu tom de criança que sabe tudo:
- Não me importa!
Cecília que tinha estado este tempo todo de olhos fechados, olhou a irmã de alto a baixo e sorriu. Fechou os olhos e voltou a virar a cabeça para o sol.
- Hoje está um bom dia.
Mercedes foi até à água, só para sentir que estava demasiado fria, nem a Cecília ia ser capaz de tomar banho assim e no entanto o cabelo de Cecília estava molhado. A irmã mais nova sentiu um arrepio e foi para casa.
- Já de volta? - a Dona Maria estava na cozinha a pôr as bolachas num prato.
- Sim!
- E a senhora Cecília?
- Está ali na praia, este ano começou cedo! Está um frio terrível!
Dona Maria ignorou a contradição da jovem Mercedes e continuou com o que queria dizer :
- Podia ir chamá-la?
- Eu? Mas porquê? - Apesar de já ter idade para não fazer birras, Marcedes comportav-se sempre de forma infatil, talvez devido à educação e ao facto de ser a irmã mais nova.
- Hoje temos visitas… – disse com um sorriso.
Mercedes correu para a sala, sentados um ao lado do outro como os casais se sentam, Teresa e Duarte esperavam o chá das 5h25.
- Mercedes! Estás tão grande! - A voz de Teresa era fina, talvez demasiado fina e portanto um pouco irritante, pelo menos na opinião honesta de Cecília. Mercedes não pensava o mesmo, muito pelo contrário, para ela a Teresa era o exemplo de tudo o que ela queria ser: magra e com um marido muito bem parecido. A opinião de Mercedes podia ser infantil mas era a verdade de forma simplificada, a Teresa não era mais que isso.
-Teresa! Pensava que nunca mais nos vinhas visitar! - Mercedes abraçou a irmã mais velha, ignorando Duarte.
- Bem já tinha algumas saudades das minhas irmãs. - Teresa sorriu e penteou o cabelo castanho com os dedos de forma a que não lhe tapasse a cara, o que acontecia várias vezes.
- Olá Mercedes, está tudo bem? - a voz de Duarte era rouca, forte; da sua boca nunca saíam palavras sem propósito. Os olhos verdes, ainda mais verdes do que os de Mercedes, penetraram o olhar da jovem.
- Sim. – Mercedes respondeu calma e rapidamente, desviando o olhar. Não gostava de Duarte, para além da sua aparência física não conseguia ver qual era o interesse que Teresa tinha nele. Cecília via toda aquela situação de forma contrária e ao entrar na sala, apenas com um fino vestido de praia e a pele um pouco mais morena, a única coisa que disse ao ver a irmã primogénita com o marido foi:
- Olá, parece-me que estou um pouco atrasada, peço desculpa.
Já sentados à mesa, Duarte não tirava os olhos de Cecília e Mercedes não tirava o seu olhar desconfiado de Duarte, como sempre durante a infância das irmãs, Teresa parecia estar num mundo à parte, afinal a ignorância é uma bênção. Os olhos de Cecília estavam cravados no chá que bebia.
- Bem agora que já aqui estamos todos acho que podemos contar o que viemos contar, não é? – Teresa acariciou a perna de Duarte e olhou para as irmãs.
- Sim, acho que sim. Tu é que sabes Teresa.
- Estás grávida? – gritou Mercedes – É isso não é!
A cara de Teresa não mentia. – Sim! É isso mesmo irmãzinha.
Cecilia olhou para Duarte que desviou o olhar.
Quando a areia da praia quase chegava à grande casa, o chá era tomado à hora em que as jovens irmãs se encontrassem prontas, o que poderia demorar, visto que a mais nova tinha apenas 10 anos.
- Dona Maria, tal como ainda se deve lembrar, é hoje que vamos receber o filho do Banqueiro. Sabe? Aquele que estava a a estudar no estrangeiro.
- Já voltou?
- Sim! A Teresa vai fazer 18 anos, eu estou cada vez mais doente
- Não diga isso, Dona Magda.
- Mas é verdade, as minhas outras filhas precisam de alguém que as possa sustentar.
Magda virou as costas e subiu até ao quarto da filha do meio. Cecília estava a preparar-se para sair.
- Hoje não podes ir à praia. Nem respondas Cecília, ainda nem estamos em Abril. Para além disso, talvez seja hoje o dia em que a Teresa arranja um marido. Portanto não quero que a trates mal em frente ao pretendente.
Cecilia não respondeu, quando a mãe saiu do quarto tirou o vestido de praia e o fato de banho e trocou-os por um vestido azul escuro demasiado curto para a ocasião.
Quando a campainha tocou, às 5h25, as três irmãs (cada uma com um vestido mais curto) desceram a correr as escadas e foram-se sentar entre risadas no sofá da sala de estar. O jovem que entrou na grande casa era alto e muito bem parecido, com uns olhos verdes intensos que rapidamente se dirigiram para Cecília. Duarte não poderia ser responsabilizado, ao lado da irmã do meio, Teresa parecia uma criança ainda em formação.
- Boa tarde Duarte, espero que tenha feito uma boa viagem até aqui.
- Sim, obrigado, Dona Magda.
Magda apresentou as filhas dizendo apenas o nome e não apontando, nunca pensado que Duarte achava que a mais velha era Cecília.
- Bem agora vou deixar-vos aqui para se conhecerem melhor, mas a Teresa não deve ficar na presença de um rapaz sem estar acompanhada, portanto assim fica já a conhecer as irmãs.
Magda saiu e os jovens ficaram a falar enquanto bebiam chá e comiam bolachas.
- Eu adorava viver numa casa ao pé da praia, – Duarte estava completamente apaixonado, nunca esperaria gostar assim tanto de uma rapariga que nunca tinha visto. Só queria que aquele encontro acabasse para ter outro e outro.
- Sim, é maravilhoso… – respondeu Cecília com um sorriso que poucas vezes se via.
- É um bocadinho irritante quando a casa começa a ficar cheia de areia. – disse Teresa na sua voz fina soltando uma risada.
- Eu também acho. – respondeu Mercedes.
Quando Magda voltou à sala poucas horas depois Duarte levantou-se e em voz alta disse que não queria esperar mais, pois não havia quaisquer dúvidas no seu coração, Teresa era a rapariga para si e visto que o pai já não estava presente era então a Magda que ele pedia a mão da filha mais velha. O coração de Cecília caiu, como é que ele poderia querer casar com a Teresa? Sem querer abriu a boca e arqueou as sobrancelhas, quando Teresa se levantou em êxtase, o mesmo aconteceu a Duarte, não era esta a filha mais velha que ele afinal queria.
- Estou tão feliz! Nem acredito que sentes o mesmo que eu sinto.
Após o chá e as novidades as irmãs despediram-se à porta, Duarte e Cecília apenas apertaram as mãos mas foi o bastante para que os seus corações batessem mais rapidamente, mesmo que só por alguns segundos. Teresa entrou no carro, já Cecília entrara em casa. Mercedes puxou o casaco de Duarte e disse-lhe ao ouvido:
- Se tu fosses uma rapariga e a Teresa e a Cecília fossem rapazes eu diria que o filho não era da Teresa.
aluna 37958
A ideia de mostrar que uma rapariga nova tem uma percepção correcta do que se passa à sua volta é interessante. Alias, quanto mais nova Mercedes for, mais intrigante este ponto de vista se tornará. Não desenvolvo mais esta ideia pois fiquei sem a certeza de quantos anos este personagem tem.
ResponderEliminarSe o facto de ela ser uma criança for realmente importante para a ideia principal do conto,talvez fosse melhor colocar a idade exacta. Isto, na minha opinião, vai dar mais segurança ao leitor.
O mesmo se passa com os restantes personagens. Fiquei com a sensação de que os detalhes sobre a sua idade e o parentesco entre eles é revelado um pouco tarde demais.
Quanto ao resto, notei uma tendência para juntar muitas orações com vírgulas, quando penso que ficariam melhor divididas com pontos finais. Por exemplo:
"Não gostava de Duarte, para além da sua aparência física não conseguia ver qual era o interesse que Teresa tinha nele."
Penso que soaria melhor da seguinte forma:
"Não gostava de Duarte. Para além da sua aparência física, não conseguia ver qual era o interesse que Teresa tinha nele."
Também existe um uso excessivo dos nomes próprios. Mercedes, na primeira parte do texto (antes da analepse), aparece escrito 21 vezes. Nisto também poderia ajudar revelar informações sobre os personagens mais cedo, de modo a que se pudesse, desde o início, substituir os nomes por expressões como "a mais nova", "a mais velha", etc.
Existe alguma atenção dada a pormenores talvez desnecessários, por exemplo a cor do casaco, do vestido e sapatos da mais nova.
Por fim, existe por vezes a repetição de palavras, como na frase: "...acho que podemos contar o que viemos contar, não é?"
Aluna nº42416
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarAcho muito interessante o início do conto com o detalhe da hora precisa do chá, da mesa de madeira e do tipo específico de bolachas. Não é apenas a hora do chá em geral; trata-se do chá daquela família, àquela hora precisa e naquela mesa. O que ao princípio parecem ser apenas detalhes usados para conferir realismo, revestem-se de grande importância no final, com a descrição de outro chá no passado que despoletou toda a acção. O início principalmente recordou-me vivamente o estilo da Alice Vieira, com a sua mistura subtil de personagens infantis e temas caracteristicamente adultos.
ResponderEliminarA personagem da Mercedes parece-me muito real, assim como a sua relação com as duas irmãs. A Cecília, principalmente, interessou-me por um certo mistério que transmite, um sentimento de que ela é diferente e que foi isso que Duarte sentiu e o levou a apaixonar-se. Gostei muito do contraste implícito entre as três irmãs, mas fiquei confusa quanto às idades da Cecília (que me parecia ser a mais velha) e da Teresa. Penso que o conto ganharia em clareza se fosse introduzida logo de princípio uma menção às suas idades.
Considero que o conto perdeu subtileza na passagem do tempo presente para a memória do passado. Se no início os sentimentos e desejos das personagens são apenas insinuados, na segunda metade são demasiado explícitos. Por exemplo: a frase “Cecília olhou para Duarte que desviou o olhar.” é muito mais complexa do que o que se pensaria. O salto lógico é óbvio (existem sentimentos românticos entre os dois que a notícia da gravidez de Teresa vem abalar) mas exige que o leitor faça a sua interpretação. Com “Duarte estava completamente apaixonado, nunca esperaria gostar assim tanto de uma rapariga que nunca tinha visto.” e “O coração de Cecília caiu, como é que ele poderia querer casar com a Teresa?”, estes sentimentos caem no cliché.
Concordo com a colega do comentário acima no que toca à repetição de nomes próprios, por exemplo na frase “(…) nem a Cecília ia ser capaz de tomar banho assim e no entanto o cabelo de Cecília estava molhado.”, em que a repetição poderia ser substituída por “o seu cabelo” ou “o cabelo dela”.
Em “Dona Maria, tal como ainda se deve lembrar, é hoje que vamos receber o filho do Banqueiro.” penso que poderias eliminar “tal” e “ainda” pois quebram o ritmo da frase e não são absolutamente necessários. Quanto ao uso de banqueiro com letra maiúscula, penso ser intencional, mas não percebo a razão para tal.
Para finalizar devo dizer que apreciei bastante este conto, principalmente a primeira metade.