09/06/11

Prólogo

A 8 de Julho de 1497, parte do Restelo, em Lisboa, uma expedição que tem como principais objectivos encontrar o reino do rei cristão Preste João e chegar à Índia por via marítima. A Expedição é comandada pelo Almirante Vasco da Gama e com ele partem outros 159 homens, incluindo o seu irmão Paulo da Gama. A armada do almirante era constituída por quatro navios: a nau São Gabriel, capitaneada por Vasco da Gama; a nau São Rafael, chefiada por Paulo da Gama; a caravela Bérrio, comandada por Nicolau Coelho; e uma naveta destinada ao transporte de mantimentos, liderada por Gonçalo Nunes.

A missão era arriscada e ninguém tinha ideia de quanto tempo iria durar a viagem ou mesmo se tal região existia. Havia mitos, mas nada de concreto. A única informação disponível fora dada por Bartolomeu Dias, havia dobrado o cabo da Boa Esperança em 1488.

A armada de Vasco da Gama chega finalmente a Calecute a 20 de Maio de 1498 e regressa a Lisboa em Julho do mesmo ano. Das naus envolvidas, apenas a São Rafael não regressou, pois teve de ser queimada fase à incapacidade de a manobrar. Apenas 55 dos 160 homens que integravam a armada sobreviveram a este grande feito. Mais de metade da tripulação tombou devido ao escorbuto.

Álvaro Velho foi quem relatou toda a viagem. No entanto, apenas narrou até ao dia 25 de Abril de 1499, quando a frota, ao regressar da Índia, chega à ilha de Santiago, em Cabo Verde. Não se sabe se o cronista faleceu, se ficou em terra, se apenas perdeu a última parte do diário da viagem, ou se teria ficado doente. O documento que narra a viagem tem o nome de “Roteiro de Álvaro Velho”. Este conto relata precisamente a parte final da primeira viagem dos portugueses ao oriente.

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Aos vinte e cinco dias de Abril de mil quatrocentos e noventa e nove, a S. Gabriel e a Bérrio avistam, finalmente, a ilha de Santiago. Para trás e sem retorno possível ficaram noventa e um homens, a São Rafael (que repousa no Indico) e mais de seiscentos dias de viagem. Aqueles companheiros, que também foram irmãos, deixaram as suas almas entregues ao grande Senhor dos Mares e ao criador de todas distâncias.

Ontem ao início da noite, o Capitão Paulo da Gama mandou reunir toda a tripulação e deu aquela que pode bem ter sido a sua última demanda, bradando apenas, já sem a força de outros meses: “Façam história com os vossos nomes”. Sem entender o porquê e o significado daquelas palavras, limitei-me a transcrever e a repetir silêncio, na calma da noite as mesmas falas. Os homens, já cansados do dia e da aventura, que há muito perdurava, prestaram atenção a cada palavra, sem chegarem a nenhuma conclusão, mirando para uns e outros, procurando obter de alguém uma explicação, sem resultado. Depois de ver tantos outros enfraquecerem daquela mesma forma, já todos imaginam o que em breve poderá ocorrer. O capitão deixou de conseguir absorver o desespero e o desânimo de todos aqueles que o admiram. Talvez por isso, também ele deixasse de lutar com a pior de todas a doenças: a descrença.

O dia vinte e cinco de Abril foi, de facto, o dia mais importante daqueles últimos dois meses. Depois de oito semanas em alto mar, finalmente chegamos a Santiago. Os homens que restavam tinham por fim a possibilidade de se vingarem daqueles cinquenta e seis dias seguidos de amargura, da monotonia azul da paisagem longínqua, dos afazeres fincados e, o mais importante, podiam-se desforrar da incerteza do amanhã.

Entre o céu e o mar, tanto a São Gabriel, como a Bérrio, mesmo aceitando os desígnios do Todo-Poderoso através da mãe natureza, são apenas duas jangadas flutuantes e apesar da sua robustez, a determinação do ondear serpentino, que os faz deslizar entre e sobre seu manto líquido e salgado, é quem dita as normas e decide quem pode e deve ver o amanhã.

A neblina matinal de outros dias não compareceu e aos primeiros raios da manhã ouve-se do alto dos mastros a voz do grumete Sancho Mexia, bradando com a alegria ressuscitada e com toda a energia de que dispunha: “Terra à vista, terra à vista…”

Com a beleza daquela vista desimpedida, aquele que ainda era um pequeno ponto no horizonte, mais parecia o último e o único paraíso do mundo. Finalmente as ilhas de Cabo Verde. Ao fim de quase dois anos, sabíamos que iríamos encontrar súbditos de El Rei D. Manuel, ouvir a língua da amada terra, comer carne fresca, beber um bom vinho ou tomar um banho sentindo o íntimo das moças.

Depois de aportar, o Capitão-mor, solicitou a comparência de todos os mareantes junto à proa, muito preocupado com o estado de saúde do seu irmão, o nosso querido capitão Paulo da Gama e também de outros três marinheiros tomados pelo escorbuto e decidiu que a tripulação ficaria na ilha somente oito dias. De acordo com a indicação do almirante, a nau São Gabriel e a caravela Bérrio iriam partir no dia três de Maio, logo ao nascer do sol.

Ao chegar à cidade da Ribeira Grande não pudemos deixar de notar que aquela que era apenas uma pequena aldeia há apenas dois anos se transformou numa bela povoação, mais preenchida e colorida. Havia mais negros de África, moças muito vistosas, que mais pareciam belas encantadas, saídas de uma bela canção forjada por um trovador.

Fomos muito bem recebidos na ilha e ao anoitecer foi oferecido um manjar em nossa honra, por ordem do Regente Leonardo de Barros. Segundo aquele Administrador todo o reino estava receoso quanto ao nosso paradeiro, visto que não havia notícias; e ele acredita que iríamos ser muito bem recompensados por tal feito e que a Europa iria cair a nossos pés.

Os sacrifícios, as lágrimas, as perdas e privações ficaram olvidados por instantes. Todos os membros da tripulação (aqueles que podiam) tiveram direito a regalos para todos os gostos: vinho da terra, moças formosas, comida do melhor, aguardente e um canto para dormir com aconchego. Foi farra a noite inteira…

Em nome de Deus, ámen[1].

Depois de a noite, tornava a dura tarefa de voltar à realidade. Dei por mim na praia de Santa Maria com vários companheiros a ladear a minha pessoa e naquele momento só pensei no meu querido Barreiro. Por instantes alembrei-me do doce Tejo…

… e de repente tudo muda. Tento olvidar aquele momento em que alterei a minha vida por causa de um amor que não era o meu. Já fiz de tudo para o esquecer mas Deus, que me protege, não o permite. Em mim jaz a culpa que é grandiosa e viverei para o todo sempre na desvirtude. Nem mesmo dois anos de afazeres forçados perdoaram tal acto. Ao doce Tejo, que era meu, não poderei tornar. As águas tranquilas do grande rio não voltarão a passar pela janela da minha retina, nem por esta pele queimada pelo sol abrasador destes mares do sul.

Todos os marujos tornaram a casa, para junto das suas esposas e familiares e eu que posso fazer? El Rei prometeu que se a minha pessoa voltasse a pisar as terras do reino seria enforcado. Talvez esse seja o castigo merecido. Desta forma cessava o pecado e morria ao menos com os olhos postos na terra que me viu nascer, calmo e sereno, como o Tejo quando se converte em oceano nas manhãs tranquilas de Junho. Talvez por falta de coragem ou por não ter cumprido o pedido do respeitoso e querido capitão Paulo da Gama, não poderei entregar o meu destino ao desconhecido e improvável. Como prometido, terei de fazer história com o meu nome e porque não, eternizá-lo num feito.

Três dias antes de o nosso pouso nesta ilha, chegara a Santiago um navio proveniente de Cadiz, da Andaluzia de Castela, capitaneado por Vicente Yáñez Pinzón[2], que, de acordo com elementos da tripulação se dirigia para a ilha de São Domingos, no Novo Mundo. Talvez se encontre um afazer para mim no navio. Mas não será traição passar a carreira ao serviço do maior rival de El Rei de Portugal? Não, voltarei a ser alguém entre as ondas e as marés.

Mesmo um degredado pode ter direito a uma segunda vida, se a misericórdia de Deus assim o permitir. Talvez o meu estimado amigo e capitão Paulo da Gama me possa salvar nessa decisão.

Assim que cheguei aos aposentos do nosso querido capitão senti um misto de alegria e ansiedade. Alegria por saber que a pessoa que tornou aquela viagem possível estava com melhor aspecto. A sua pele ganhara o tom natural de um marinheiro e os seus olhos tinham agora o brilho da coragem. A ansiedade apoderou-se de mim no momento em que Paulo da Gama, reparou nos meus gestos comprometidos e disse: “conheço os sinais do teu rosto e sei que não vais embarcar connosco para o reino. Quero apenas dizer que não aceito despedidas, muito menos lágrimas, pois a memórias que guardo das nossas aventuras iram prevalecer nos melhores momentos que guardo comigo. Escrevi uma pequena carta para ti, como sinal do meu respeito e admiração, mas tens de prometer que só irás ler depois de eu partir”.

Sem outra saída possível, limitei-me a garantir que o seu desejo seria cumprido. Já sem palavras, abracei o meu grande amigo pela última vez. A força daquele aperto ajudou a traduzir o respeito, a afeição e a admiração que sentia de em relação à aquela pessoa magnífica.

“As palavras nem sempre dizem tudo, mas os gestos não enganam. Ficarei eternamente grato”. Esta foi a última mensagem dirigida ao meu eterno capitão.

A uma quarta-feira, que foram os vinte e sete dias do mês de Abril, a nau Esperanza levantou a âncora em direcção ao Novo Mundo. Aceitei o meu passado e agora irei edificar o meu próprio destino. Não poderei voltar ao Tejo, mas irei fazer história com o meu nome, dedicando a minha vida ao princípio da felicidade. Sendo feliz, serei quem sempre ansiei ser…

A luz da manhã que nascera ganhara força à noite, que passou pacífica, e reclamou para si o calor daquele dia. Finalmente iria ler a carta que o estimado capitão escrevera.

“Filho, a vida é um instante preso a vários momentos e um conjunto de viagens que se vão abrindo com os nossos sentidos. Como um rio, também tivemos um local de nascimento, onde iniciamos a nossa aventura. Porém, o ponto de chegada é uma incógnita. A nossa existência é pautada com as consequências das nossas decisões. Podemos até querer parar e talvez voltar atrás, no entanto, a força maior do futuro, que não espera, jamais o permite.

Vai e onde quer que o destino te leve, segue o teu rumo bem firme e sê apenas feliz…

Paulo da Gama

Epilogo

Álvaro Velho embarcou na Esperanza, nau comandada por Vicente Yáñez Pinzón. Este navegador andaluz veio a descobrir o actual Brasil em 1499, no entanto, esta terra apenas seria descoberta de forma oficial e reclamada para Portugal por Pedro Alvares Cabral em 1500.

Depois desta viagem, Álvaro Velho regressou a África, onde viveu até aos seus últimos dias, nas margens do Rio Grande, actual Serra Leoa, como professor, pai e marido. Consta apenas que morreu feliz.

Paulo da Gama veio a falecer em Junho de 1499, na ilha da Terceira, nos Açores. Apesar de a história não ter sido generosa com este que foi provavelmente um dos maiores navegadores portugueses, para a eternidade ficam a coragem e a generosidade de um homem que trocou tudo pela dignidade da vida simples e afortunada de boas memórias ("eternidade provisória").

Este conto é dedicado à memória de Francisco Rodrigues.

Paulo Rodrigues

35626



[1] Forma como inicia o verdadeiro “Roteiro da Primeira Viagem de Vasco da Gama”

[2] Este capitão acompanhou Cristóvão Colombo na descoberta da América

2 comentários:

  1. Paulo, perante a qualidade do teu conto, depurado, seguro e escrito com uma linguagem rigorosa e precisa, percebi logo o quão difícil seria comentar/corrigir ou sugerir pormenores relativos à um trabalho que rasa a perfeição no âmbito do que nos foi pedido – a criação de um conto. Sim, Paulo, é isso mesmo, para mim o teu conto é um dos melhores. Porque digo isso? Porque, além de teres evoluído ao longo das diferentes versões e inversões conseguiste um texto/conto exemplar que se nos impõe sobretudo pela técnica, pela densidade, pela consistência, pelas metáforas que não tentam disfarçar a vulgaridade, exactamente por não terem nada a disfarçar. As qualidades que referi residem, no domínio que tiveste/tens sobre as tuas personagens, sobre a cronologia, sobre o espaço, sobretudo, sobre tudo e não é uma redundância.
    O teu conto está ao mesmo nível do conto do António Seabra: “Razão sombria”. Um dos aspectos que no meu ponto de leitura (leia-se, no meu ponto de vista) impressiona, é a conjugação do sentido real com o sentido poético. “Realidade” e subjectividade juntas na mesma panela/texto só podia resultar num óptimo refogado! Haja apetite para a leitura! Estarei a ser hiperbólico? Não. A verdade é para ser escrita, de preferência com criatividade! E mais não escrevo! Vou apenas destacar alguns excertos para servirem de “bengala” ao que acima ficou exposto. Repara nisto:

    “são apenas duas jangadas flutuantes e apesar da sua robustez, a determinação do ondear serpentino, que os faz deslizar entre e sobre seu manto líquido e salgado, é quem dita as normas e decide quem pode e deve ver o amanhã.”

    Percebe-se perfeitamente a segurança e a fluência com que manejas as palavras!

    Outro exemplo:

    “As águas tranquilas do grande rio não voltarão a passar pela janela da minha retina” – gostaria de ter sido eu a escrever esta frase! (risos)

    Obrigado pela viagem!

    Abraço academicamente fraterno



    Nº 41314

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  2. Muito obrigado mesmo. Fiquei simplesmente maravilhado com as tuas palavras. Irei continuar a escrever e a crescer na escrita.
    Obrigado

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