06/06/11

2ª versão do conto individual

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E revelou-me ao ouvido: [sic]

“Quando entreviu que tudo era demasiado real, saiu de casa porque lhe apeteceu. Tratava-se de uma madrugada igual às outras; a diferença residia no singular interior, logo acima da consciência, que concedia um inadvertido lugar à exacerbada paixão por todos os elementos que permitiam a estrutura saudável da comum existência. Escolheu apanhar o autocarro e depressa verificou que a conformidade da rotina se mantinha fiel. A força com que o solo empurrava o seu corpo, o ar que perscrutava as células do casal de pulmões, combinado com as invisíveis partículas oxigenadas de hidrogénio ao quadrado, bem como a saída e o regresso aos pontos de equilíbrio, do acto de caminhar, participavam nas reformadas sensações, agora conscientes, daquele estado. A mancha informe que é olhar para o exterior de um transporte em movimento dissipou-se e a visão deixou de ser totalitária, permitindo dar conta de componentes que perderam a surdez provocada pelo ruído visual da cidade. Era possível enquadrar se na realidade; como se de uma fotografia, a grafia de luz que escreve sobre o tempo embalsamado, se tratasse, potenciando a contemplação dos fragmentos. A máquina, desequilibrada, movia-se tão velozmente que a paisagem se lhe apresentava ao som da primeira Gnossienne, acabando por dar razão a Satie quando a compôs. Apertou o botão que indicava o seu desejo de sair e ficou pelo centro. Apercebeu-se, quando voltou a olhar, que não havia ninguém dentro do autocarro. O despoletar desta paixão levou-@ até ao local onde se encontram todos os estados de concentração: a franja contextual; caiu no alheamento e nem se apercebeu da saída de quem conduzia. Foi o intenso amarelo de um grupo de narcisos semi-abertos que @ fez caminhar a passo largo até a uma florista encontrada num dos cantos daquela praça. Estava fechada, o céu apresentava, ainda, as tonalidades de azul mais escuras, mas ficou a observar as míticas flores no pequeno vaso que fora útero, através do vidro, esse que nos engana quanto à liberdade. Pelo tamanho das flores constatou que eram antigas, que o bolbo, enterrado, já tinha despertado várias florações, num círculo sazonal que tivera começo noutro bolbo, e assim por diante. Afinal, para além de meros narcisos, eram histórias da natureza que ficam por contar. Poder apreciar o esplendor, ver como as coisas são e que linhas as tecem, estava agora no seu horizonte. Apercebeu-se de que alguém dobrara a esquina, pois sentiu na pele uma intensidade diferente da brisa, mas foi tão rápido que não houve tempo para @ poder cumprimentar. Há sempre uma estranha cumplicidade para com o outro quando nos encontramos sozinhos e este dá um sentido à nossa existência; quase nos mesmos moldes de um encontro com alguém desconhecido que fala a mesma língua que nós, mas numa terra estrangeira. Regressados, não vemos esse estranho. Os momentos de suspensão da normatividade estão cheios de fissuras onde é possível encontrar respostas que matam perguntas. Foi então que se deu conta do enorme graffiti que habitava na parede lateral de um edifício abandonado. Era transparente. Foi escrito na sujidade da parede, formando uma zona limpa, e incolor para todos os efeitos. Sem tinta, podia-se ler: ‘Morre enquanto amas’. Que estranho, pensou, tinha a certeza de que aquilo não estava ali ainda há pouco. Decidiu, então, atravessar a praça na diagonal, tendo o cuidado de pisar a fronteira entre o branco e o preto das pedras, e já se podia ver a ofuscante estrela do dia. Repetiu o percurso, uma vez que se desequilibrara várias vezes, e voltando à posição inicial tentou verificar se tudo estava no mesmo lugar – pois, só o tempo passara. Ali perto havia um chafariz de curioso aparato, mas longe das formas aquáticas habituais. De todo o modo, não conseguia descrevê-lo para além da semelhança com o interior de uma rocha. Aproximou-se para se poder acalmar com o refrescante olhar da água e pousada no fundo do chafariz estava uma pedra negra. Arregaçou a manga e, imergindo o braço na água, conseguiu apanhá-la, deixando-a secar ao sol na palma da mão. De superfície espelhada, muito polida, a pedra absorvia toda a luz em seu redor. Nunca vi uma pedra tão bela quanto esta, disse, guardando-a no bolso esquerdo, enquanto olhava em seu redor para confirmar que ninguém via o que estava a fazer. Por não dar atenção suficiente às leis, não poderia saber se cometia alguma infracção. Mas ainda não avistava ninguém. As pequenas ondas provocadas pelo seu braço perdiam força, até não formar mais distúrbio na superfície da água e foi aí que deteve a sua atenção. Inclinou-se para poder observar o seu reflexo e, suspirando, ali ficou. O reflexo na água era lindíssimo: vestindo apenas céu, nuvens, e azul profundo.”

N.º 37966

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