Numa fria sala de jantar inundada de sol, Marcela dobra cuidadosamente o jornal e fita-me, pensativa; com o queixo apoiado na mão, observa-me a tomar café. Olho-a, franzindo a testa, mas a sua expressão não se altera. Suspiro e pouso a chávena.
“Que tens?” pergunto, demasiado ensonada para me lembrar que Marcela nunca responde a uma pergunta directa.
Ela sorri levemente e, sem desviar os olhos, estende a mão para afastar a garrafa de whisky de Jaime, que a fita resignado.
“Já leste o jornal?” pergunta-lhe, desviando o olhar de mim.
Jaime grunhe algo vagamente humano.
“A Marta morreu.”
A mente é um lugar estranho. Estou em pânico, claro, o que é, que sabes, porquê, como é que o mundo desaparece quando fechamos os olhos, mas não, «A Marta morreu». Ao mesmo tempo, a quilómetros de distância da minha chávena de café, do jornal dobrado, do reflexo do sol nos talheres, registo o efeito da causa. Jaime a sacudir a flacidez bêbada com um esgar de receio. Marcela a estreitar os olhos como um gato ronronante, à medida que analisa os efeitos destas suas palavras em mim.
Ergo as sobrancelhas e levo de novo a chávena à boca, cautelosa para que a mão não me trema.
“Isso não veio no jornal de hoje” arrisco.
Marcela continua a sorrir.
“C-como?” balbucia Jaime.
“Afogada” responde-lhe Marcela, serenamente.
Suicida – sinto-o agora como nunca, pois Marcela sempre me intimidou, mas não assim –, corrijo-a:
“Com o pescoço partido. Atiraram-na para a água... depois.”
A cabeça de Marcela volta-se para mim tão depressa que me sinto zonza, mas não é de bom-tom vomitar à mesa do pequeno-almoço.
“Como é que soubeste?”
“Foram dois polícias a minha casa, anteontem. Fizeram-me perguntas sobre a Marta.”
Marcela faz um estalido com a língua, aborrecida.
“Porquê a ti?”
Encolho os ombros e faço uma careta. Os meus joelhos batem um contra o outro.
“Encontraram a minha morada e o meu nome na agenda em casa dela, como contacto de emergência.”
“Que burra!“ exclama Marcela, divertida, sobressaltando Jaime.
Encolho os ombros de novo e levanto-me. O Jaime olha para mim; os seus olhos remelosos e injectados de sangue alternam entre fitar-me e fixar um qualquer ponto da sala. Geme. O rosto de Marcela ilumina-se; comprime os lábios num trejeito juvenil e pede-me o telefone com um gesto.
“Crisântemos ou gladíolos?”pergunta, enquanto marca um número. “Não, lírios, não é? Lírios brancos. Tão vulgar. Enfim, é o costume, não?”
Como Marta fora vulgar; nunca ouvira de Marcela uma palavra contra ela – Marcela fala por silêncios. O meu estômago crispa-se; uma película de suor cobre-me a nuca.
“Para quê?” pergunto, a minha voz sumida de medo. Jaime solta um ganido patético.
“Para que havia de ser, tonta? O funeral. Está aí, na secção de óbitos” disse Marcela, empurrando o jornal na minha direcção. Levantei-me da mesa com um safanão e corri para fora de casa, uma voz polida e distante a seguir-me, encomendando coroas e ramos.
Com a testa encostada ao rebordo do lavatório e uma mão debaixo da torrente de água fria conto-me uma história, Era uma vez um trio de abutres que apreciava carne humana.
O mundo foi gentil para comigo. Nunca trabalhei porque não precisava e, se estudei, de nada me lembro. Marcela foi um achado; é uma líder nata e eu nunca quis ser mais que seguidora. Funciona. Tem tudo um pouco mais do que eu, seja dinheiro, beleza ou inteligência; isso também funciona. Jaime apareceu pouco depois, mais uma traça, como tantos outros. Marcela achou-lhe graça; ficou.
Quando encontrei a Marta pela primeira vez ela ainda não despira aquele olhar arregalado de rato do campo; acho que foi isso que me chamou a atenção. Apresentei-me sem lhe dar tempo de pensar porque é que uma desconhecida lhe falava com tanto à vontade; empurrei-a para a frente da Marcela e do Jaime que a olharam de alto a baixo, franzindo o sobrolho. Marcela soltou uma gargalhada que fez com que Marta corasse, e não lhe prestou mais atenção.
Os seus olhos arregalavam-se na ânsia de devorar o mundo que eu lhe apresentava: nunca percebeu ser ela a devorada. Eu e os meus amigos não passamos de sanguessugas. Pegamos nestes pedaços de almas de anjos, essa partícula que brilha nos olhos de pessoas como a Marta, fazemo-los girar, e girar e girar ao ritmo hipnótico daquilo a que chamamos vida, mas que é apenas uma morte adiada. Quando estamos fartos, quando a Marcela começa a bocejar e eu sinto aquele formigueiro familiar, a música cessa e amanhã é outro dia, todos os dias.
Há que entender: neste mundo em que vivo, no mundo que é de Marcela e nunca foi de Marta, ter uma consciência não tem utilidade prática. É uma desculpa e uma razão, embora estas sejam apenas remendos em trapos sujos.
Marta engolia as luzes da cidade e erguia o copo para mais; rodopiava nos vestidos brilhantes que eu lhe arranjava, criando redemoinhos de cores violentas no néon a preto e branco das nossas vidas mudas. Estendia a mão como uma criança para qualquer coisa com potencial de a divertir e isso era tudo.
Esmagámo-la. E rimos e rolámos pelo chão sufocados no nosso histerismo, como hienas humanóides – como abutres. Ela queria sugar a vida até à medula – morreu numa noite sem nuvens: um corpo anónimo, lançado ao mar. O pescoço partido. O caso arrastou-se e acabou por ser arquivado por falta de provas.
Semanas depois daquela manhã em casa de Marcela, o Jaime evaporou-se. Marcela ainda é a mesma. Que cinco gerações depois de mim murchem e se desfaçam em cinzas e pó e nada, antes que da sua cabeça brote um único cabelo branco.
Passo as noites na varanda a contar estrelas. Compro todos os dias um novo maço de cigarros para não os fumar; eram o vício de estimação de Marta. Guardo-os na segunda gaveta da cómoda grande; estou a ficar sem espaço mas seria um desperdício deitá-los fora. Na noite em que morreu, Marta fumou meio maço à minha frente, enquanto esperávamos que a Marcela se arranjasse. Marcela chama à cómoda «o altar».
Não falamos sobre Marta. A suspeita é um cancro ulceroso e eu sou apenas humana; as pessoas que, como a Marcela, se habituam a ser adoradas, dificilmente deixam que coisinhas vulgares como a Marta afastem os seus idólatras. No entanto, penso. E quanto mais penso, mais se adensa o nevoeiro que é a memória daquela noite, porque eu vi a Marta, falei-lhe, deixei que a Marcela me servisse champanhe, empurrei o Jaime quando se encostou a mim no sofá. Estática. Um apagão e, de repente, o dia seguinte. Três dias depois, «A Marta morreu».
De dia durmo as horas que me fogem de noite. Talvez por isso tenha visto a Marta na montra de uma loja, no faiscar do Sol numa poça de água, no espelho da minha casa de banho. Talvez sejam pesadelos. Talvez não; talvez as estrelas sejam o sonho e a Marta a realidade. Devia deixar de dormir de dia mas não consigo, há tantas estrelas por contar. Marta gostava de estrelas, era uma tola romântica. Tinha um perfil desinteressante. Vulgar. Ainda tenho o seu lenço favorito, o vermelho, estendido em cima da cómoda. Marcela não gosta.
Fez anteontem quatro anos e sete meses desde que «A Marta morreu». Não conto os dias; falta pouco para que deixe de contar os meses também. O nevoeiro daquela noite espalhou-se. As alucinações ganharam som. Contam-me todos os dias uma versão nova para preencher os espaços brancos na minha mente.
A Marcela decidiu levar-me para a casa do lago; disse que devia antes internar-me num hospício, mas ia fazer uma última tentativa. A Marcela adora o lago – é fácil perceber quanto ela gosta de algo ou alguém pelo tempo que gasta a insultá-los. Como quando lhe peço a bóia vermelha grande: diz que sou uma tonta preguiçosa e que se a encher de limos nem preciso de voltar para casa, mas empresta-me sempre. É uma mulher magnífica, a Marcela. Marta era tão subtil quanto uma pedra a cair num charco.
Devo ter adormecido, deitada na borracha quente da bóia, com o Sol a queimar-me os ombros e a água a morder-me a ponta dos dedos; a Marcela diz que sim. Devo ter adormecido porque a cara da Marta a olhar-me fixamente do fundo do lago é um absurdo. Ou talvez não. O que é o sonho? O que é a verdade?
“O que aconteceu naquela noite, Marcela?”
A Marcela diz que estou a começar a enervá-la.
Hoje à noite o Jaime bateu à porta. Tinha os olhos vermelhos, barba de uma semana e cheirava como se não visse água e sabão há ainda mais tempo. Olhou para mim a fungar e começou a carpir como uma velha desdentada; a Marcela bateu-lhe. A marca ficou, vermelho-raiva naquele rosto apatetado. A Marcela é muito forte para uma mulher tão sofisticada; acreditei que era uma deusa quando pela primeira vez a vi.
O rosto da Marta fitou-me do lume da lareira.
Perguntei-lhe. Perguntei-lhe, Marta, perguntei-lhe se te tinha morto. O Jaime tremeu e olhou para Marcela, como que a implorar, mudo. A lenha rangeu e, aos meus ouvidos, soou como ossos a quebrarem.
O céu estava cheio de estrelas nessa noite.
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* O título é inspirado num jogo para crianças (equivalente em português a "O rei manda") em que o escolhido como "Simon" ditará tudo o que os outros têm de fazer. Pensei no título do jogo em inglês como mais adequado ao que queria transmitir, fazendo a ligação com a personagem da Marcela.
Diana Paulo, nº 41211
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