ÀS ESCURAS
“É hoje!” pensou, enquanto abria a gaveta que ficara fechada durante cinco anos. Num ápice, encontrou o tão incómodo passado que lhe trazia à memória recordações demasiado emocionantes. “Vamos lá recomeçar do princípio”, abriu o álbum e com as mãos a tremer folheou a primeira página. A primeira fotografia espelhava a moldura de uma família perfeita, os seus pais ladeavam-no no abraço gigantesco. Deu voltas e mais voltas àquela história, e passado algum tempo, com a luz do quarto ainda acesa, fechou os olhos e adormeceu. O dia que tivera deitou-o abaixo e as maravilhas do escuro encerravam um novo capítulo da sua história.
A sua mente transportou-o para outras vidas, uma vida retratada pelas suas próprias mãos. Há muito que Miguel imaginava uma tela ofuscante pela quantidade de cores que continha. : Roxo, azul, rosa, vermelho, amarelo, laranja; era toda uma miscelânea de traços que fazia qualquer um acordar para a vida. Vida que ele queria esquecer, pois o enredo da sua teia contrariava aquela expressividade de cores e texturas. Ainda assim, Miguel não podia fugir à realidade e teria que enfrentar o seu destino. Após a escuridão da noite teria que piscar os olhos, enfrentar a triste luz do dia e voltar à terra.
Tanto tempo tornado e Miguel continuava sem se dedicar à paixão que desde sempre o encantara: a pintura. Para ele já não tinha o mesmo sentido passar dia e noite sentado em frente a uma tela, sem a presença do seu progenitor. Aquele que lhe ensinara a mais bela das artes fugira, encontrou um novo rumo deixando Miguel num mundo à parte. A adolescência não fora um episódio feliz, e quando aos treze anos o pai desapareceu, Miguel perdeu a confiança no seu talento passando a viver revoltado com a mãe pelo abandono do progenitor.
Sem ânimo, aterrou na terra no momento em que o despertador fez ecoar uma melodia demasiado irritante para os seus ouvidos.
Nunca fora um rapaz socialmente activo, e agora nos seus dezoito anos continuava sem vontade de procurar um novo alento para alterar o passado terrível que tivera. O recinto das aulas era para ele um drama, basta entrar que todo o corpo enfraquecia e aqueles que passavam por ele olhavam-no de lado, segredando: “volta para casa”, “não pertences aqui”. No meio daquele reboliço, Miguel foi capaz de vislumbrar o seu maior medo, Pedro, o rufia mais popular da escola. Cabisbaixo, dirigiu-se para o cacifo e assim que o abriu alguém tornou a fechá-lo com brutidão. “Tu saíste-me cá uma personagem, fecha-te na tua masmorra e encara apenas as aberrações que pintas!”.
Sem reacção, Miguel limitou-se a encolher os ombros e a abrir de novo o cacifo, na esperança de que o marginal desistisse de o atormentar. Pedro porém voltou a insistir “Ainda não conseguiste perceber que ninguém aqui ficaria triste com o teu desaparecimento? Só farias bem a todos se evaporasses de uma vez por todas!”. No instante em que ouviu a dureza daquelas palavras, Miguel fugiu da multidão e correu desesperado tentando encontrar um sítio onde se pudesse refugiar daquele terror. Pedro aproveitou a oportunidade para vasculhar o cacifo do rapaz, encontrando várias pinturas repletas de simbolismo, mas que para ele não passavam de gatafunhos horríveis. Qual era então para Miguel o lugar mais tranquilizador do mundo senão o sótão? Chegou a casa com o coração na boca e foi ter directamente à cozinha para se enfrascar em dois litros de água gelada, foi então que a mãe apareceu ainda de pijama vestido. “Então voltaste a faltar às aulas? É por isso que não consegues ter amigos, tu não sais desse teu mundo perdido e solitário em que ninguém pode entrar senão tu!” Aquelas palavras não fugiam à verdade total, mas Miguel não sabia dar mais de si aos outros e tinha medo de sair magoado novamente, depois daquilo que o pai o tinha feito passar. “Nunca me soubeste entender e eu não te condeno por isso, mas ao menos deixa-me viver à minha maneira. Tu podes ter saído magoada com o abandono do pai, mas eu também sofri bastante porque passei pouco tempo com ele, e ele comigo.”
Ao ouvir aquele discurso, a mãe de Miguel lembrou-se do pesadelo que viveu quando o seu grande amor decidiu abandoná-la, ainda Miguel era adolescente, mas não queria discutir mais com o filho e resolveu deixar para trás das costas o passado ausente.
Já a Miguel, aquela discussão deu-lhe vontade de transpor toda a angústia do passado para a tela, as pinturas tinham ficado para trás, viveram muito tempo apenas na memória e, como tal, tinha imensa coisa que queria descrever por entre cores e pincéis, numa tela que iria ficar para sempre marcada no seu olhar.
Com o entardecer a aproximar-se, as pinturas triplicaram-se e a imaginação de Miguel continuava tempestuosa tal e qual a noite lá fora. O seu sonho nunca deixou de ser o mesmo, desde que aprendeu a pintar com o pai, realmente aquilo de que melhor se lembrava quando lhe vinha à memória a imagem do pai era o seu lado mais ternurento na atenção dedicada à pintura.
Decidira permanecer toda a noite naquelas andanças, atingir a perfeição através do pensamento era o horizonte de uma realidade muito longínqua. “Este merece um nome, vou ter que o apelidar”, pensou, ao terminar uma obra extremamente colorida e brilhante, repleta de esquemas contraditórios e peças incompletas, mas que no total criavam uma moldura única com paixão, emoção e vibração. “A reviravolta, porque tudo gira em torno de uma só peça”.
O relógio já marcava três da madrugada quando um forte estrondo irrompeu pela porta do sótão, mas Miguel nem se apercebeu da fumaçada que estava a emergir à sua volta. “Acorda Miguel, não podes adormecer”, este pensamento foi o último antes de perder os sentidos e desmaiar por cima das telas que ainda estavam frescas com tinta. A sua salvação entrou pela porta naquele instante, tentou reanimá-lo e soube que ele conseguiria sobreviver, mas de imediato decidiu levá-lo para o hospital mais próximo.
“Não, eu consigo. Sempre consegui!”. Naquela madrugada cinzenta, Miguel não foi capaz de apreciar aquilo que estava à sua volta, mas sabia que havia alguém, para além dele, que preenchia aquele mesmo espaço silencioso e tenso. “Olá filho, como é que te sentes?”; “Mãe? O que fazes aqui?”; “Eu sei que não esperavas a minha presença, mas fui eu quem te tirou do sótão em chamas, lembras-te?”; “Não me lembro de nada, só sei que estava entretido com as minhas criações e de repente tudo ficou às escuras”; “Já deves ter percebido que a tua visão ficou afectada, mas não te preocupes que juntos vamos superar tudo isto”; “Isso significa que me vais ajudar? Eu tenho que voltar a pintar, as tintas são como água para mim, sem elas nada faz sentido”; “Não tens com que te preocupar, sabes que, pela primeira vez, fiquei admirada com a beleza das tuas telas, tens um talento dentro de ti e eu nunca quis ver isso”.
A conversa durou longas horas e proporcionou a Miguel um momento de pura cumplicidade, o suficiente para o deixar tranquilizado e com pensamento positivo apesar das consequências que aquela noite lhe trouxera. O destino não estava nas suas mãos e o tempo tardava em abrandar, mas Miguel não se conseguia lembrar da garrafa que, por pequena que fosse, endereçada por Pedro provocou aquela tragédia irreversível.
Nunca pensou poder sentir-se ainda mais desintegrado do mundo exterior, e o facto de depender dos outros para prosseguir com a sua vida preocupava-o bastante. Os dias foram passando e Miguel nunca deixou de pintar, sempre sob o olhar atento da mãe que tinha o poder de o incentivar nas horas mais desanimadoras. Na escola, a mudança gerou-se rapidamente com todos os colegas a darem-lhe a mão para o apoiarem nos momentos mais complicados e até Pedro, com remorsos do sucedido, tentou apaziguar a dor que sentia ao pedir-lhe “Desculpa”.
Depressa os seus quadros começaram a ser divulgados e tiveram uma projecção gigantesca no mercado das artes, e quando chegou o momento da sua apresentação perante o público, Miguel disse: “Não quero que tenham pena da minha condição física, porque, na realidade, eu sempre vivi às escuras e vou saber enfrentar o meu destino por mais terrível ou assombroso que ele possa vir a ser”.
Tânia Almeida, nº 38063
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarExistem alguns momentos confusos na história. Era um incêncio? Se sim, porque é que o fumo o cegou? Qual é a natureza da garrafa que o Pedro enviou? Acho que estas questões precisam de ser abordadas.
ResponderEliminarFora isso, está um excelente conto.
-Filipe Gomes
Tantos Miguéis! É no conto colectivo, é no conto do "Principezinho" e é neste. É um nome bem sucedido na cadeira de Escrita Criativa.
ResponderEliminarPassando ao conto propriamente dito: a história é interessante,a escrita é clara, e a ideia do final (a relação que estabeleces entre o "viver às escuras" e a "condição física" da personagem), dá um ponto extra ao teu conto.
Talvez precisasses, em vez de quatro páginas, de dez ou vinte. Para nos poderes dar o contexto do passado do Miguel de forma mais gradual, e não abrupta.
À parte deste pormenor, é um conto agradável.
Saudações académicas,
António Seabra