25/04/11

a menina do adeus-soraia gonçalves

Acordei num daqueles dias que queremos que perdure durante todo o ano. O Sol brilhava, o dia era claro, como sempre fui ate à janela, contemplar o dia e fumar o meu cigarro. Lá estava ela, não sei ao certo o seu nome, para mim será sempre a menina do adeus.

A menina do adeus é figura presente na minha vida. Na verdade se a minha vida fosse narrada, ela tomaria o lugar de narrador omnisciente. Sabe a que horas me levanto, a que horas regresso do trabalho, a que horas saio de casa, quem recebo em casa, ela está sempre presente. A sua janela abre para a minha. Por todas as vezes que ela me sorriu do outro lado e me disse adeus, eu retribuí. Esta manhã nada foi diferente, contudo não sei se terá sido o documentário a que assisti ontem, ou os sonhos sem cessar que sobrevoaram o meu sono. Hoje o adeus da menina remeteu a minha alma para um adeus que ficou perdido, no passado, nas memórias mais profundas, naquelas que enterramos por baixo de outras. O curso da história não pode ser apagado para aqueles que nele viram as suas vidas envolvidas. A doçura da infância perdida, em prol de ideologias e de guerras que não nos pertencem. A paisagem de Lorch assemelhava-se, pela sua cristalinidade, pela sua pureza, a uma tela projectada no irreal, no imaginário. Na tela, era possível ver duas crianças, que juntas corriam entre as árvores. Tínhamos nove anos, e brincávamos juntas nas margens do Reno. A envolvência das corridas em salto, dos jogos, das gargalhadas, não fazia prever os dias que se seguiram. Sonhavas ser médica, e eu professora, por vezes voávamos, ora para o teu consultório, ora para a minha sala de aula. Criámos nas traseiras do meu quintal, a casa dos sonhos, onde tudo era permitido. Eu criei esboços subtis de flores, árvores e corações, imagens normais para a minha idade, mas tu não. A tua sede de criar, tornavam o teu traço firme. O teu primeiro desenho ocupou a parede do teu consultório O céu pintado de todas as tonalidades possíveis, contrastavam com uma muralha, que dizias ser um castelo. Eu então desenhei mais árvores, uma porção de árvores que cercavam o castelo. No fim do dia, quando voltaste para casa eu permaneci a olhar para o desenho, faltava o mais importante, eu e tu. Então num traço tremule e branco desenhei-nos às duas de mãos dádas à porta do castelo. A aura de um viver inspirador, a casa dos sonhos. No ano seguinte viajei, inicialmente não entendi porque tive de vir para Portugal. A minha mãe apenas me explicou que viria passar umas férias com a tia Matilde. Na altura lembro-me de não ter gostado da decisão, mas não me foram dadas grandes alternativas. Passei aproximadamente quatro meses sem os meus pais e depois também eles vieram para cá. A ideia de que, na verdade, as férias seriam eternas, e não voltaríamos a casa foi surgindo pouca a pouco, sem grandes questões. Contudo com o passar dos anos, a idade dos «porquês» esmiuçados parece que assombra qualquer mente que incessantemente procura o seu lugar na terra. Acho que todas as crianças que começam a dar as primeiras passadas na chamada adolescência envolvem-se nesse processo. E nessa incessante procura de respostas, os meus pais contaram-me o verdadeiro motivo da nossa partida da Alemanha. Acho que nesse dia, de alguma forma a minha interpretação do mundo foi quebrada. Os dias que se seguiram foram marcados por uma profunda desconfiança da vida. As recordações da minha casa, do meu quintal, do rio, dos pássaros e inevitavelmente de ti, ainda se encontravam bastante presentes. Continuava a viver numa moradia, e procurava ainda no voar do baloiço sentir-me liberta, acho que desde sempre os baloiços me acalmam. Numa dessas tardes, enquanto me baloiçava a pensar nas informações que me tinham sido omitidas, como sendo peças de um puzzle, ocorreu-me que talvez tu e a tua família fossem os tais judeus perseguidos de que o meu pai me falara. Na verdade eu não percebia nada de religião, os meus pais já eram ateus quando nasci. Mas tinha consciência de que a tua educação não era igual à minha. Saltei do baloiço e fui ter com o meu pai, acreditei que ele me explicaria os factos de forma mais explícita. A minha mãe procurava sempre adulterar qualquer história, por ela, como se tal fosse possível, ainda hoje não saberia nada sobre “a mais irracional, tenebrosa e desumana acção daquele que insiste em denominar-se ser racional - o homem” (como diria anos mais tarde). Como calculava, o meu pai explicou-me o que na verdade significava ser judeu, e confirmou a minha suspeita, tu e a tua família eram judeus. Percebi finalmente a razão para nunca me responderes às cartas que te enviei. Nos primeiros tempos em Portugal, lembro-me de que te enviei dois desenhos do meu quarto: queria que soubesses onde eu dormia, quando na verdade também tu te encontravas a dormir noutro local, provavelmente no campo de Dachau, enquanto eu permanecia num completo desconhecimento. Desde essa altura decidi que seria médica, na época decidi por ti, anos mais tarde decidi por mim. O meu pai nunca me confirmou se terias sido deportada para algum campo de concentração, mas acabei por descobrir sozinha, que a maioria dos judeus de toda a área envolvente tinham sido deportados para Dachau. Na manhã em que abandonei Lorch, foste-te despedir de mim. Assim, a última vez que te vi lá estavas tu, de cabelo entraçado, vestido azul, e ficaste parada a acenar-me até o carro desaparecer. Também eu te acenava, sem saber que aquela era a última vez que me despediria de ti. Se existe justiça? É inútil responder. A desumanidade toma contornos tão eloquentes, que o utópico humanismo é na realidade uma fantasia na qual o homem necessita de acreditar.

Não voltei à Alemanha, acho que inconscientemente criei uma certa aversão à minha terra natal. Lorch, tu, a minha velha casa, a minha infância, tudo ficou nesse tempo, no refúgio das minhas memórias. Terminei o cigarro e lá continuava ela a contemplar-me. O palco das minhas lembranças, contrastou com o Sol que emanava um calor agradável. Respirei fundo, para aliviar a sensação de vazio. Enrolei outro cigarro, enquanto observava os miúdos na rua, abraçados a tentarem deslizar unidos, apenas com um par de patins, cada um com um patim, unidos para provavelmente em conjunto caírem. Uma ingenuidade tão genuína. Acabei o segundo cigarro, e fiquei mais uns minutos a contemplar a menina do adeus, que agora se encontrava mais interessada nos dois miúdos de patins.

Soraia Gonçalves nº39034

1 comentário:

  1. Gosto do conto, especialmente da parte em que a protagonista recorda a despedida entre ela e a amiga de infância. A ideia de nos separarmos de alguém, que nos é chegado, é deveras triste e creio que, com as palavras utilizadas, conseguiste mostrar o sentimento. Contudo, reparei que ao longo do teu conto faltam vírgulas em certas ocasiões e noutras puseste vírgulas que não eram necessárias. Ainda assim, o teu conto continua no meu "Top Favoritos".


    estudante 37878

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