08/04/11

Eternidade provisória



Cansado de inventar silêncios na boca dos outros, pegou na vassoura. Varreu os pensamentos fora do prazo de validade, limpou a voz rouca que vinha de baixo da folha ainda em branco. Ruídos. Motores à velocidade de engarrafamento. Esfregou as manchas de insónia, cor de sol, coladas à página onde dormira. Abriu as janelas na ânsia de se arejar por dentro.



Voltou ao quarto para se certificar de que ela ainda estava deitada. Pelo caminho, fotografou os passos que foi largando pelo chão. Ao chegar, reparou que ela continuava deitada, desperta, porém deitada, a espreguiçar restos de sono por entre os lençóis. Soergueu-se tentando afastar o sono da cara com as mãos e disse: Hoje vou procurar o meu lugar noutro corpo em solidão, quando conseguires fotografar a minha ausência, deixa os fragmentos de luz em cima da mesa da cozinha. Nesse retrato, irei corrigir os dias em que não te amei. Irei buscar coragem para te ler um poema em voz alta sem receio de deixar cair as cordas vocais pela garganta adentro. Tal como hoje, não estive aqui. Não dormi apenas contigo. Todos os homens que provisoriamente me amaram para sempre, estiveram connosco neste quarto, hoje, enquanto fazíamos do amor uma sala de convívio para as nossas ilusões. Porque afinal, acredita, a distância é o momento mais perto de ti. E quero tanto estar longe!



Aquela declaração entrou-lhe pelos tímpanos de uma forma abrupta, demorou alguns segundos até encontrar fôlego e sentido para a ausência de sentido daquelas palavras. Sem saber exactamente o que responder, num tom desengonçado mas determinado: Vai! Quero lá saber! Ando há uns dias para te propor isso mesmo. Pega nas tuas coisas e faz-te desaparição! Inventei o esquecimento para não trazer de volta os teus gestos, a tua boca sempre à beira do silêncio, as curvas onde o teu corpo é mais veloz, é mais isto que agora me negas. Vai! Não vou regatear nem mais um beijo! Os que te dei, alguém há-de roubá-los da tua boca e quando um dia, tarde, te lembrares de mim, verás que todos os corpos em solidão foram encontrados por alguém. De que te vai servir, em frente ao espelho, tentar preencher a lápis os teus olhos cheios de vazio? Não me apetece fotografar a tua ausência. Os dias em que não amaste, alguém viveu no teu lugar, alguém sorriu com os teus lábios, escreveu com os teus dedos, amou com toda a força, os pássaros batendo asas no lado esquerdo do teu peito. Sabes, não me importo de repetir diferentes versões do mesmo sentimento desde que, a última versão me traga palavras que me conduzam a um conto de verdade. Isto é o rascunho, tem calma, por favor!





2ª versão


- conto individual -


Pacheco Eduardo



4 comentários:

  1. Que lindo! Já dei a minha opinião na aula, mas nunca é de mais reforçar a beleza deste conto! Muito ao estilo de Mia Couto, que adoro de perdição Adorei, Eduardo! A começar pelo título, muito bem escolhido; prende logo a atenção do leitor que fica "baralhado" com o trocadilho, o para sempre por agora...
    Adorei ler na aula, é um texto delicioso. As letras juntam-se em harmonia e os sons são agradáveis e dá mesmo aquela sensação que nada poderia ser de outra maneira, está óptimo assim! Gosto especialmente da passagem "Abriu as janelas na ânsia de se arejar por dentro."
    É um texto muito visual, que aproveita movimentos e acções do quotidiano banal e as transpõe para o metafórico (exemplo: varrer pensamentos fora do prazo de validade, ...). Gosto do facto dos diálogos não se encontrarem feitos, graficamente, à moda tradicional, com travessão e mudança de linha. Faz muito sentido como está.

    Parabéns,
    continua a escrever!
    Tens aqui uma futura leitora :)

    1 beijinho,
    Joana Maria, nº 40580

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  2. Olá Eduardo!

    Assim como a Joana, também eu fiquei encantada quando ouvi pela primeira vez este conto. É um conto repleto de expressividade e movimento, consegue proporcionar no leitor uma imagem real da história destes dois amantes. Acho extraordinária a forma como tu consegues enquadrar as palavras e sabes sempre quais os adjectivos a utilizar em casa situação de acção, como nesta frase: "Esfregou as manchas de insónia, cor de sol, coladas à página onde dormira".
    Tens uma facilidade óbvia em escrever e é recorrente apercebermos-nos da forma poética como criaste este texto!

    Os meus sinceros parabéns ;)

    Tânia Almeida, nº38063

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  3. Eduardo,
    Que continues a gingar e que consigas dar maior consistência às acções dos seus personagens numa segunda versão do conto. Seria interessante acrescentares mais acontecimentos e que os soubesse entrelaçar em metáforas, tornando-os quase contíguos e intermitentes, diluindo-os num ritmo quente e frenético.
    Fico atenta à segunda versão. Aí sim farei um verdadeiro comentário, uma reflexão sobre a tua escrita e sobre as rédeas que lhe tomaste ou as asas que lhe deste ao escrever este conto. Por agora, confesso-te que o teu gingado de metáforas é fonte de inspiração!
    Um Abraço,
    Cristina Branco, nº37959

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  4. adorei o texto, tão leve e tão lindo. parabéns, procurarei me atualizar nos teus escritos. um grande e fraterno abraço de terras amazônicas.
    Mercia

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