Velocidade
Não consigo explicar o que senti: raiva, stress, vontade de espairecer, enfim… só sei que a única ideia que me veio à cabeça foi pegar nas chaves do carro e desaparecer. O meu carro não é o que se pode chamar luxuoso, não tem ar condicionado, airbag, leitor de CD, jantes de liga leve. Tem um volante rijo, uma manete das mudanças lassa e muito pouco prática, uns bancos pouco confortáveis e uma suspensão… bem é melhor nem falar na suspensão.
É como eu lhe costumo chamar uma caixa de fósforos, mas até um carro assim dá para sentir liberdade, a liberdade que só a velocidade traz. Pus a chave na porta já enferrujada e abri a fechadura, sentei-me no banco e liguei o motor. Nesse momento senti uma enorme tristeza ao ouvir o motor trabalhar, não se assemelhava nada ao motor dos carros super desportivos (um som tão divinal que eu não tenho palavras para o descrever).
Pus o carro em ponto morto, acelerei o máximo que pude, respirei profundamente e sorri. Estava na altura de sair dali, levantei o travão de mão, pus a primeira e comecei a minha perigosa viagem. Não parava no sinal stop, na luz vermelha, na passadeira, não podia parar. Guiei até um local ermo, sítio de armazéns e fábricas, sem movimento, ideal para uma pequena brincadeira.
Acelerei a fundo, o carro ganhou velocidade e ao mesmo tempo que travava virei o volante. O carro inclinou para um lado e fez barulho. Soltei uma gargalhada, tinha feito um peão.
Abri a janela e senti o cheiro a borracha queimada. Os subúrbios já não eram suficientes. Decidi ir para a auto estrada. Liguei o rádio; um anúncio sobre pasta de dentes, mudei, outro anúncio sobre sabonete, mudei, um padre falava sobre a sociedade e a falta de fé das pessoas, era um programa religioso, deixei ficar.
A auto estrada estava quase vazia, comecei a conduzir ainda mais rápido. No meu horizonte surgiu outro carro que ultrapassei, não sem antes lhe bater na traseira. Um dos faróis partiu. O outro condutor começou a gritar comigo, mesmo sem o poder ouvir eu sabia que ele não estava contente e não dizia coisas agradáveis. Buzinou. Agarrado ao volante acelerei ainda mais sem prestar a mínima atenção ao que acontecera.
Uns quilómetros há frente um carro da Polícia mandava parar os condutores. Se não parasse cometia um crime, o meu primeiro crime na vida.
Senti um longo arrepio na espinha. O programa na rádio interveio, alguém disse que a religião era a salvação. Tenho que admitir que não sou religioso no sentido tradicional do termo se bem que goste da ideia de uma vida para além da morte. Acelerei ainda mais, cada vez mais decidido.
Estava um polícia estacionado à beira da estrada com um radar a controlar a velocidade a que seguiam os condutores. Estava de pé encostado ao carro quando passei por ele a toda a velocidade. Quase caiu quando passei por ele. Achei piada. Este entrou no carro de imediato, ligou a sirene e seguiu atrás de mim. Era mais rápido que eu, o seu carro era mais potente. Em dois tempos estávamos lado a lado. Para me tentar parar, ia contra o meu carro e cada vez que isso acontecia eu tremia no assento. Eu fazia o mesmo se bem que o resultado fosse pouco eficaz.
O outro carro era mais largo e mais estável, o meu não ia aguentar aquilo muito mais tempo. Felizmente, ao longe surgiu uma portagem e na minha cabeça uma ideia. A passagem era demasiado estreita, só havia espaço para um carro. Travei bruscamente! O polícia seguiu em frente, travou também e fez marcha-atrás, nessa altura passei por ele a toda a velocidade em direcção à portagem. O homem que estava na cabine abriu a porta e fugiu há medida que me aproximava. A cancela partiu com uma facilidade incrível. Soltei uma grande gargalhada pois aquilo lembrava um palito a estalar.
Respirei profundamente e olhei para o espelho reflector, o carro da Polícia estava de novo no meu alcance. Reparei também que isso era um problema menor: ao longe a Polícia tinha formado uma barreira com carros. Tinha chegado ao fim, não havia saída.
Peguei no telemóvel e escrevi uma mensagem: “Querida Mãe, como vais? Espero que esta mensagem vos encontre bem. Não me sinto muito bem, há algum tempo que sinto dificuldade em mexer-me. Decidi hoje, finalmente ir ao médico. O diagnóstico não foi muito animador. Tenho uma doença degenerativa na coluna e é só uma questão de tempo até deixar de poder andar. Fui dar uma volta de carro e aproveitar até deixar de poder conduzir. Dá um abraço meu ao Pai. Beijos, Miguel”.
Na rádio, a conversa era sobre a vontade divina que controla tudo. Concordei, naquele momento a decisão de viver ou não já não me pertencia. Acelerei ainda mais, estava cada vez mais próximo da barreira, os polícias estavam assustados, conseguia ver os seus olhos cada vez mais abertos e a sua expressão de incrédulos. No último segundo fiz uma viragem brusca para a berma da estrada onde estava um pequeno canal para a água da chuva. O carro capotou e enquanto eu sorria uma lágrima escorreu pela minha face.
Mais um conto em que a personagem principal se chama Miguel... Já vamos em quatro!
ResponderEliminarHá uma coisa de que gosto muito no teu conto. É a profundidade da personagem que nos surge como surpresa. Na aula em que o conto foi apresentado falou-se nisso: no facto de ele "deixar ficar" a estação de rádio em que um padre fala. Da mesma maneira, no final, a atitude não é a mais óbvia, e o leitor tem alguma vontade de segurar o carro e não o deixar seguir pelo canal.
Um abraço,
António Seabra