08/04/11
1ª versão do conto individual
Não se sabe bem o ano, apenas que era e que foi. Foi num amontoado de gente vivente numa terra lambida pelo mar. Não se sabe como é que foram lá parar, crêem-se sempre nascidos daquele areal. O mar ia e vinha e era dele que aquela gente vinha e partia. Os homens iam pela madrugada adentro, penetravam o mar adentro. Se o mar não gozasse, escarrava-os contra as pedras, fundava-os no seu fundo. As pedras eram montanhas polidas que os matavam contra o mar. Os homens só iriam e viriam se as mulheres ali estivessem a criar as crias, a bordar e a rebordar as redes, a semear e a florir toda a vida e toda a eternidade para além do mar. Como em toda a noite antes das madrugadas de pesca, as pedras estremeciam. A fertilidade daquela gente fervia pela sagrada perpetuação da espécie. O carinho daquela gente flutuava pelo encanto da espécie. A felicidade era amarfanhada pela angústia da madrugada. Era mais um dia sem saber do próximo. Nesses dias, depois da ternura vincada, depois dos homens irem ver o nascer do Sol no alto do mar, a alvorada alumiava a figura das mulheres a bordar com os seus menininhos acocorados nos seus colos, a contar as lágrimas caídas e os nós feitos. Passava-se o dia, chegavam ou nunca mais voltavam. Fazia-se, criava-se, acarinhava-se o menininho para se afundar no mar. Nunca se soube de um de barbas brancas que tivesse sobrado, nenhum que tivesse a pele curtida de quem tem a grandeza do seu pequeno mundo para contar. A avó viúva e a mãe dos filhos emudecidos crêem que o mar encerra a vida e a morte. Tinham que encontrar uma verdade que legitimasse o sofrimento do desaparecimento dos seus e que justificasse o conformismo viciado de vidas que tão bem conhecem os ritmos, os desafios e a dor aos quais se têm de prestar. Imaginava-se então que o verde cerrado, que nos fecha os braços, nos aperta os passos e nos cega o céu, não poderia ser atravessado. Vivia-se entre a escuridão da mata e o sem fim do mar. Num alvorecer desses, em que a lua se firmava ao canto do céu, as mulheres que baloiçavam e bordavam viram surgir lá longe no mar uma concha. Esfregaram os olhos orvalhados. Poisaram as redes bordadas, deitaram os menininhos na areia. A concha era colossal, pensaram no telhado que aquela concha poderia dar para uma casinha de viúva. As mulheres andavam no silêncio húmido do amanhecer. Avistaram um volume vivo aconchegado na concavidade da concha. Um bicho. Um bicho mais branco que a carne do peixe afogado em água quente. Era um polvo encolhido e morto. Ora, um polvo não teria um tufo de fios da cor de fogo. Fios que lembravam os fios da rede a serem queimados. As ondas traziam a concha para mais perto da praia e as mulheres, já de joelhos dentro da água, apercebiam-se das suas parecenças com o bicho, ou a bicha. Lembrava uma menininha nascida há pouco tempo. Ainda gorda do leite da mãe e do peixe mastigado. Aquilo não era polvo, nem menininha enroscada em linhas de bordado. Parecia ser uma mulher gorda como os bebés, cabeluda como um ouriço-do-mar que ataca, de carne tenra como um peixe bom e branca como morta. As mulheres amontoaram-se a volta daquilo. Cochichavam. É, é um corpo de gente. Alguém palpitou a possibilidade de ser mais um dos corpos inchados e crus que de vez em quando atracavam na praia. Nunca se tinha visto uma pele de morto tão brilhante, tão polida. A sombra e o murmúrio das mulheres levaram o corpo a mexer-se. O movimento do corpo afastou as mulheres de espanto. Mexia-se tão vagarosamente. A cabeleira ajeitava-se e desvendava a humanidade da bicha. É, é mulher. Uma mulher nua a dormitar numa concha. As pálpebras, atordoadas pela primeira claridade, abriam-se com preguiça. Que assombro que foi olhar naqueles olhos de mar raso. Não, não era como nós. Os seus pés e as suas mãos pareciam ser macios, as coxas eram rechonchudas, o ventre e os peitos pareciam virgens, os braços finos e moles e aqueles cabelos que nunca mais acabavam. Quem borda redes, cozinha peixe e cria filho não pode ter o cabelo desse jeito, se não um dia borda com cabelo, enforca o peixe e engasga o filho. Quem trabalha não tem braço e perna mole. Quem faz e tem menino não tem o peito assim. Não, a bicha não era como as mulheres. O corpo desenrolava-se e desequilibrava-se em cima da concha. Com um sorriso olhou para o seu público. As mulheres não tiveram como não retribuir a cordialidade, acenaram com a cabeça e com um rasgar da boca incrédula. Era uma jovem tão estranha, era uma mulher outra. A estranheza não as enojava, nem lhes metia medo. Primeiro pensaram no quão feia era ela, tiveram pena da sua fragilidade, da sua inutilidade. Umas ajudavam-na a pisar na areia molhada, outras traziam a concha na cabeça. Os menininhos já acordados, amassados pelo sono, olhavam-na com a curiosidade de quem vê um bicho novo, nunca antes visto. Podia ser uma irmã, ou até uma mãe. Teria um homem. Mas não, ela não é daqui. Depois de olhar a prainha, as casinhas a margem do mato, coradas pela manhã, a lentidão da bicha mergulhou o olhar de mar raso na escuridão verde. As mulheres viam a estranha a aproximar-se do proibido, sem qualquer hesitação, como se o seu corpo fosse fantasticamente atraído para a profundeza húmida da mata. Talvez fosse bicho-do-mato retornado. Ninguém impediu a mulher de desaparecer. Os cabelos se iam prendendo aos galhos, os pés brancos afundavam-se na lama de folhas nunca antes alumiadas pela luz. Aos poucos, a mulher era cativa da mata. As mulheres só lhe viam as pontas dos cabelos claros presos pelos ramos floridos e pesados. Nunca mais lhe viram mais nada. Sumira. Quando os homens voltaram não puderam acreditar no que lhes contavam, na bicha-do-mato gorda e meio morta entrando pela mata a dentro. A curiosidade fê-los cortar algumas árvores, fê-los atrever-se a penetrar a mata. Não voltaram a ver a bicha, mas descobriram a jabuticaba, a cereja, a pitanga, a manga, descobriram a sombra boa da árvore imensa, descobriram mais bichos-do-mato. Viram os vermelhos, os amarelos e os azuis da plumagem daquele pássaro. O roxo e branco daquela flor abraçada ao tronco da árvore. O verde já não era só escuridão, era as folhas das árvores altas a sombrearem as folhas das árvores baixas, a criação de tantos verdes. O verde podia ser cintilante. E tudo era grandioso e minucioso. Aquela árvore ali deve ser do tamanho de cinco mulheres em pé, umas sobre as outras. Nem sequer um homem dos grandes conseguiria abraça-la inteira. A grandiosidade da mata correspondia com a enormidade das pedras que limitavam a praia e com a imensidão do mar. Desde então, iam descobrindo o além-mato.
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Que delícia de conto! É simplesmente maravilhoso o facto de conseguir visualizar todas as imagens que pretendes fazer passar. As descrições estão óptimas e nada excessivas. A harmonia das palavras e a própria narrativa tornam o teu texto único. Os meus mais sinceros parabéns, colega!
ResponderEliminarP.s: talvez possas melhorar a repetição da palavra "menininhos".
41149
Colega 41119,
ResponderEliminarsinto-me satisfeita por teres sentido tanto pelas minhas palavras!
Sabes, tenho um problema com o final do conto, sabe-me a pouco. Encanta-me e desafia-me a imagem da vénus europeia de brunelleschi nascida de uma conxa aparecendo numa praia de pescadores que nunca viram mais nada além deles próprios. Penso que a descoberta do verde também tem os seus potenciais. De qualquer modo, sabe-me a pouco. Tenho que dar uma volta a isto.
Obrigada pela dica sobre os "menininhos", repensarei nisto nesta segunda versão do conto.
um abraço,
37959
(somos números e ao mesmo tempo partilhamos textos tão íntimos)