DESCOBERTA
Ana refugiou-se em casa e imediatamente escrevinhou o que acabara de acontecer.
Valera a pena o coração aos saltos, o receio de ser surpreendida. A seu ver, não cometera exactamente um crime… mas não deixara de ser uma intrusão em casa alheia. O que descobrira confirmava as suas suspeitas!
Releu cuidadosamente tudo o que anotara desde que tivera a sensação estranha de que algo estava errado com o vizinho. Era o mesmo velho de roupas escuras, casaco coçado e chapéu fora de moda que, agora, usava sempre. Mas algo estava diferente… ou talvez estivesse a ficar paranóica! A sensação era tão forte que lhe causava desconforto físico, agravado pelo facto de não conseguir descortinar a razão das suas desconfianças. Algumas vezes acordava com barulhos estranhos provindos da casa ao lado e já não conseguia adormecer. De vez em quando, de livros abertos sobre a secretária, o olhar desviava-se para a janela, espiando a rua…
Naquele fim de tarde, viu-o sair e, num impulso, resolveu tentar entrar em casa dele. Esperava que atrás dos estores corridos, alguma janela estivesse aberta para arejar o interior abafado. Saiu pelas traseiras e saltando o pequeno muro que separava os dois quintais, investigou porta e janelas. Tudo fechado! Usando a agilidade que sempre possuíra, subiu para a pequena varanda do primeiro andar. Preparada para a desculpa de lhe ter parecido ouvir um pedido de socorro vindo do interior, levantou o estore e entrou pelas portas abertas.
O quarto ascético, com uma cama e móveis antigos, não a surpreendeu e para além da imagem do quadro que a olhava acusadoramente, nada havia que lhe chamasse a atenção. Fora na casa de banho ao lado que fizera a descoberta. Barbas brancas postiças! De repente, percebera. Não era a barba, que parecia autêntica, era o andar! O que estranhara era o andar flexível, diferente do habitual caminhar cansado e lento.
Agora, em casa, as interrogações sucediam-se. Seria alguém a fazer-se passar pelo velhote? Teria ele feito algum tratamento milagroso? Mas, nesse caso, o que o levaria a fingir-se mais velho? Não seria sensato contar as suas suspeitas baseadas em meras impressões, não poderia aludir às barbas postiças sem revelar como as descobrira e, de qualquer modo, não é proibido usá-las…
Ana acordou assustada. Não tinham sido os ruídos estranhos que já tinham parado. Tivera um pesadelo com o quadro do vizinho. Não recordava bem o sonho, mas a gravura, aparecia nítida, com todos os pormenores. Num cenário que se desenvolvia em três níveis de altura mas também em profundidade, o personagem central, de braços cruzados, ladeado por duas figuras angélicas, afinal não a olhava, como lhe parecera, olhava através dela, através de si próprio. Perturbada, procurou na internet, depois em livros de arte mas nada descobriu.
Tinha de voltar àquela casa!
Atenta aos movimentos do vizinho, depressa se lhe deparou uma oportunidade que não perdeu. Desta vez arriscou descer ao andar de baixo. Nem as roupas gastas, nem o exterior modesto da casa semelhante às do bairro, nem mesmo o quarto que investigara, nada a preparara para o que presenciou. Mobiliário requintado, tapeçarias persas, estatuetas, quadros antigos, tudo reluzindo numa limpeza meticulosa. Numa vitrina cheia de cristais, destacava-se um ovo dourado decorado com gemas brilhantes numa pequena carruagem puxada por um anjo. Não devia ser, não podia ser um ovo Fabergé…
Havia apenas mais uma sala, a biblioteca. Diversas gravuras alquímicas esclareceram-na acerca da natureza da que vira no quarto. Para além de alguns livros clássicos nas línguas originais, havia sobretudo livros e tratados de alquimia. Mas onde estava a escada para a cave? Ela sabia que todas aquelas casas tinham cave. Só lhe restava procurar na cozinha. Lá estava, disfarçada num painel no fundo da despensa! Começou a descer as escadas e vislumbrou na obscuridade uma espécie de laboratório com bancadas, retortas, bicos de Bunsen. Quase imaginou o velho sentado no banco de tripé, à luz bruxuleante das velas e do fogo que aquecia as retortas. Hesitou em continuar devido ao cheiro desagradável misturado com os incensos que impregnavam o resto da casa. Um barulho na entrada da casa, fê-la correr de volta à cozinha. Sem tempo para sair por onde entrara, experimentou a porta da cozinha que dava para as traseiras. Trancada! Correu para a despensa.
Suada, o coração acelerado, sentou-se no chão, esperando, a cada momento, o abrir da porta do compartimento. Quem entrara, subiu as escadas e a casa ficou silenciosa. Ana acalmou-se gradualmente. Ainda sem coragem para sair dali, ficou a pensar no que diria o irmão se fosse apanhada e entregue às autoridades. O irmão era o único familiar que lhe restava e, embora longe, continuava a proporcionar-lhe a possibilidade de prosseguir os estudos. Desde que tinham perdido os pais, assumira a responsabilidade da sua educação. Agora, na faculdade, as despesas tinham aumentado sobretudo devido à necessidade de se mudar para a capital e ter de alugar uma casa.
Desejou estar em casa… A casa ainda tão vazia! Queria comprar, pelo menos, um sofá e uma televisão… Talvez arranjando uma colega com que partilhasse as despesas... Mas tinha de ter cuidado com quem escolhia … A maior parte dos amigos da faculdade viviam com os pais e não viam muitas perspectivas de mudarem a sua situação nos tempos mais próximos. Na verdade não tinha muito amigos a não ser que contasse com os da net.
Pensando nisso, seria espectacular contar-lhes toda a aventura que estava a viver. A aventura não era assim tão perigosa, o susto é que não a deixara lembrar-se da desculpa já elaborada, caso fosse surpreendida. No entanto, não seria necessária. Há muito que não se ouviam ruídos, o vizinho decerto já estava a dormir. A questão é que não poderia sair pela varanda por onde entrara. Experimentaria a porta principal e se também estivesse trancada sairia por uma janela.
Levantou-se disposta a sair imediatamente. Notou que tinha parte do corpo dormente devido à prolongada imobilização. Procurando não fazer ruído, começou a abrir a porta da despensa, mas hesitou. Afinal ainda não tinha resposta para as suas dúvidas. As mais diversas fantasias atravessavam a sua mente. Talvez a resposta estivesse mesmo ali perto, na cave… E se o vizinho tivesse inventado algum remédio milagroso de rejuvenescimento? Não seria obrigação dele compartilhar a sua descoberta com o mundo? Também tudo poderia ser produto da sua imaginação… Quem sabe não teria sido actor e por isso tinha as barbas falsas que encontrara… Mas o que vislumbrara na cave não deixava de ser misterioso… E todas os objectos caríssimos que evidenciavam uma riqueza nada consonante com a vida que aparentava fazer? Mais, o que responderia, no chat, quando lhe perguntassem por que não investigara?
Decidida, abriu o painel e desceu as escadas. Pensou abrir a luz mas não se atreveu. Após se habituar ao lusco-fusco proporcionado pelas pequenas janelas colocadas na parte superior da parede que dava para as traseiras, começou a ver tudo distintamente. Chamou-lhe a atenção, numa parte mais recôndita, o chão destruído e vários sacos e volumes encostados a um canto. Dirigiu-se para lá.
Um ruído de passos fê-la estacar. Não tinha onde se esconder! Voltou-se.
À sua frente estava um desconhecido, ou melhor, o vizinho. Só que, em vez de ter a idade indefinida do idoso, aparentava cerca de quarenta anos. Viu a expressão carregada no rosto bem barbeado…
O desconhecido olhou-a pensando no velho tio, rico e excêntrico cuja morte já desistira de esperar. Agora, iria ter mais um corpo para enterrar! Ainda bem que ainda não remendara o cimento que partira no chão. Mais uns tempos a fazer-se passar pelo tio, depois bastaria mudar de casa e ninguém estranharia a ausência deste. Jamais seria descoberto!
Maria Isabel M. S. de Burgo nº41435
Logo desde o início do teu conto a primeira coisa de que me recordei foi do filme Rear Window do Hitchcock, em que também há desconfianças reais entre vizinhos. Dito isto, acho que o teu conto conseguiu dar alguns momentos de suspense aos leitores e acaba por ser completamente diferente do filme, o que é bom. No entanto, acho que o que não gostei assim tanto foi dos momentos de "divagação" da personagem principal em relação ao que os "amigos do chat" (os únicos amigos com quem comunicava)iam pensar; acho que essa parte da vida da personagem só serve para mostrar que a sua morte poderia ser facilmente esquecida.
ResponderEliminaraluno 37958
Obrigada pelo comentário.
ResponderEliminarO excerto que referes está inserido num conjunto de raciocínios encadeados que pretendem dar coesão ao texto; constituem ainda um período de actividade mental durante a forçada imobilidade física. Mas, tens razão! A escolha de uma personagem com poucos amigos e apenas com um irmão deve-se ao desejo de fazer sofrer o menor número daqueles “que ficam”. No entanto, repara que o desfecho é aberto: pode não se ter concretizado o pensamento do “vizinho”; no caso de mais este crime ser cometido, a última frase remete directamente para a primeira do texto (por isso era necessário existir alguém próximo da Ana), todavia há indicações de que ele era meticuloso…