26/03/11

1ª versão do conto individual

À hora do chá

Quando as casas eram brancas e os homens usavam bigode, os habitantes da grande casa da vila bebiam chá sempre às 5h25. Nunca antes ou depois. A vila era pequena, nada mais que uma longa rua com dois cafés, um restaurante e uma mercearia, para além das vivendas. Ao fim da rua a terra batida misturava-se com a areia da praia. A grande casa, por ser alta, tinha vista para o mar que era azul e calmo durante todo o ano, algo que fazia uma grande confusão à Dona Maria, que era do norte e não estava habituada. No Verão, a areia da praia quase que não era visível, tantos eram os que ali se deitavam à espera que a sua palidez desaparecesse para dar lugar ao vermelho ardente. A Dona Maria, nunca ia à praia, ela tinha de fazer o chá, e o chá tinha de estar pronto às 5h25 nem mais nem menos. A essa hora, o chá, a mesinha de madeira da sala e as bolachas de chocolate e caramelo (as preferidas da Mercedes) tinham de estar prontos. Portanto não havia tempo para ir queimar a pele ou molhar os pés. Se algo não estivesse pronto, pobre Dona Maria, seria como da outra vez, em que por causa da Mercedes, esteve a limpar os pedaços de chocolate do chão e não conseguiu ter o chá feito à hora certa, até já passavam das 5h32 quando a mesa ficou finalmente pronta. Nesse dia, a senhora Cecília não bebeu chá, saiu e foi para a praia. No parecer da Dona Maria, a senhora Cecília passava demasiado tempo na praia. E a necessidade de ter o chá às 5h25 era simplestemente ridícula.
Nestes dias de início de Primavera, a Mercedes ia para a rua de vestido curto, mas voltava sempre a meio da tarde à procura de um casaco.
- Não, Maria! É aquele amarelo!
- Oh menina Mercedes, mas esse não de Verão?
Mercedes rolou os olhos da maneira que tantas vezes fazia (mas nunca na presença de Cecília) - Maria, não quero saber se é de Verão ou não! Quero esse!
- Eu também não quero saber! É a menina que depois fica com frio, não sou eu! Mas de qualquer maneira esse casaco não está aqui, se calhar é a senhora Cecília que o tem no quarto.
Mercedes murmurou qualquer coisa que a senhora do norte não percebeu e saiu do quarto depois de vestir um casaco azul marinha que tinha em cima da cama.
Lá fora já estava a ficar frio e vento e a vontade de ir comprar um gelado rapidamente desapareceu. Foi até à praia, descalçou os sapatos, que era amarelos tal como o casaco que queria vestir. Cecília estava deitada na areia um pouco mais à frente. Ainda não era Verão e ela já ali estava, pensou Mercedes. Realmente Cecília parecia não sentir o vento, tinha um fato de banho verde menta, ficava bem na sua pele que era mais escura que a pele de Mercedes. Na verdade as duas irmãs pouco tinham em comum, tanto na aparência como na maneira de ser. Mercedes era ruiva, o seu cabelo era longo e muito encaracolado, todo o seu corpo estava coberto de sardas, os grandes olhos eram muito verdes. Era muito magra e de altura média para a sua idade. Pintava as unhas de vermelho todos os dias mas tirava no Verão, nessa altura pintava de azul claro (a sua cor preferida).
Cecília, por outro lado, era morena. Os cabelos eram lisos e longos, normalmente usava uma trança. Não tinha os olhos nem castanhos nem verdes, no entanto tinha. Era mais alta que a irmã, mas também era mais velha, (já tinha passado os vinte). A Maria e todos os da vila dirigiam-se a ela como senhora Cecília porque a outra senhora da casa já não vivia lá.
Mercedes decidiu ir ter com ela… também gostava do mar e da praia, talvez não tanto como a irmã. A única coisa que não gostava era de sentir a areia nos pés ou de ficar com areia nos sapatos e na roupa, Cecília não se importava com isso.
- Não tens frio?
- Não… a areia está quente.
Mercedes riu-se de forma infantil - Só se for aí onde tu estas deitada!
- Talvez. E tu? Não tens frio? Esse vestido não é curto demais para este tempo?
Mercedes olhou para o vestido e alisou-o com as mãos antes de falar no seu tom de criança que sabe tudo:
- Não me importa!
Cecília que tinha estado este tempo todo de olhos fechados, olhou a irmã de alto a baixo e sorriu. Fechou os olhos e voltou a virar a cabeça para o sol. - Hoje está um bom dia.
Mercedes foi até à água, só para sentir que estava demasiado fria, nem a Cecília ia ser capaz de tomar banho assim e no entanto o cabelo de Cecília estava molhado. A irmã mais nova sentiu um arrepio e foi para casa.
- Já de volta? - a Dona Maria estava na cozinha a pôr as bolachas num prato.
- Sim!
- E a senhora Cecília?
- Está ali na praia, este ano começou cedo! Está um frio terrível!
Dona Maria ignorou a contradição da pequena Mercedes e continuou com o que queria dizer - Podia ir chamá-la?
- Eu? Mas porquê? - Mercedes não gostava de fazer coisas porque as tinha de fazer.
- Hoje temos visitas. – disse com um sorriso.
Mercedes correu para a sala, sentados um ao lado do outro como os casais se sentam, Teresa e Duarte esperavam o chá das 5h25.
- Mercedes! Estás tão grande! - A voz de Teresa era fina, talvez demasiado fina e portanto um pouco irritante, pelo menos na opinião honesta de Cecília. Mercedes não pensava o mesmo, muito pelo contrário, para ela a Teresa era o exemplo de tudo o que ela queria ser: magra e com um marido muito bem parecido. A opinião de Mercedes podia ser infantil mas era a verdade de forma simplificada, a Teresa não era mais que isso.
-Teresa! Pensava que nunca mais nos vinhas visitar! - Mercedes abraçou a irmã mais velha, ignorando Duarte.
- Bem já tinha algumas saudades das minhas irmãs. - Teresa sorriu e penteou o cabelo castanho com os dedos de forma a que não lhe tapasse a cara, o que acontecia várias vezes.
- Olá Mercedes, está tudo bem? - a voz de Duarte era rouca, forte; da sua boca nunca saiam palavras sem propósito. Os olhos verdes, ainda mais verdes que os de Mercedes, penetraram o olhar da jovem criança.
- Sim. – a criança respondeu calma e rapidamente, desviando o olhar. Ela não gostava de Duarte, para além da sua aparência física não conseguia ver qual era o interesse que Teresa tinha nele. Cecília via toda aquela situação de forma contrária e ao entrar na sala, apenas com um fino vestido de praia e a pele um pouco mais morena, a única coisa que disse ao ver a irmã primogénita com o marido foi - Olá, parece-me que estou um pouco atrasada, peço desculpa.
Já sentados à mesa, Duarte não tirava os olhos de Cecília e Mercedes não tirava o seu olhar desconfiado de Duarte, como sempre durante a infância das irmãs, Teresa parecia estar num mundo à parte, afinal a ignorância é uma bênção. Os olhos de Cecilia estavam cravados no chá que bebia.
- Bem agora que já aqui estamos todos acho que podemos contar o que viemos contar, não é? – Teresa acariciou a perna de Duarte e olhou para as irmãs.
- Sim, acho que sim. Tu é que sabes Teresa.
- Estás grávida? – gritou Mercedes – É isso não é!
A cara de Teresa não mentia. – Sim! É isso mesmo irmãzinha.
Cecilia olhou para Duarte que desviou o olhar.


Quando a areia da praia quase chegava à grande casa, o chá era tomado à hora em que as jovens irmãs se encontrassem prontas, o que poderia demorar visto que a mais nova tinha apenas 10 anos.
- Dona Maria, hoje vamos ter a visita de um jovem. A Teresa já vai fazer 18 anos e ainda me parece que esteja longe de sair de casa. Se não fosse aquela sua voz tão fina…
Magda virou as costas e subiu até ao quarto da filha do meio. Cecília estava a preparar-se para sair.
- Hoje não podes ir à praia. Nem respondas Cecília, ainda nem estamos em Abril. Para além disso, talvez seja hoje o dia em que a Teresa arranja um marido. Portanto não quero que a trates mal em frente ao pretendente.
Cecilia não respondeu, quando a mãe saiu do quarto tirou o vestido de praia e o fato de banho e trocou-os por um vestido azul escuro demasiado curto para a ocasião.
Quando a campainha tocou, às 5h25, as três irmãs (cada uma com um vestido mais curto) desceram a correr as escadas e foram-se sentar entre risadas no sofá da sala de estar. O jovem que entrou na grande casa era alto e muito bem parecido, com uns olhos verdes intensos que rapidamente se dirigiram para Cecília. Duarte não poderia ser responsabilizado, ao lado da irmã do meio, Teresa parecia uma criança ainda em formação.
- Boa tarde Duarte, espero que tenha feito uma boa viagem até aqui.
- Sim, obrigada Dona Magda.
Magda apresentou as filhas dizendo apenas o nome e não apontando, nunca pensado que Duarte achava que a mais velha era Cecília.
- Bem agora vou deixar-vos aqui para se conhecerem melhor, mas a Teresa não deve ficar na presença de um rapaz sem estar acompanhada, portanto assim fica já a conhecer as irmãs.
Magda saiu e os jovens ficaram a falar enquanto bebiam chá e comiam bolachas.
- Eu adorava viver numa casa ao pé da praia. – Duarte estava completamente apaixonado, nunca esperaria gostar assim tanto de uma rapariga que nunca tinha visto. Só queria que aquele encontro acabasse para ter outro e outro.
- Sim, é maravilhoso. – respondeu Cecília com um sorriso que poucas vezes se via.
- É um bocadinho irritante quando a casa começa a ficar cheia de areia. – disse Teresa na sua voz fina soltando um riso.
- Eu também acho. – respondeu Mercedes.
Quando Magda voltou à sala poucas horas depois Duarte levantou-se e em voz alta disse que não queria esperar mais, pois não havia quaisquer dúvidas no seu coração, Teresa era a rapariga para si e visto que o pai já não estava presente era então a Magda que ele pedia a mão da filha mais velha. O coração de Cecília caiu até ao estômago e sem querer abriu a boca e arqueou as sobrancelhas, quando Teresa se levantou-em êxtase, o mesmo aconteceu a Duarte.
- Eu estou tão feliz! Nem acredito que sentes o mesmo que eu sinto.



Após o chá e as novidades as irmãs despediram-se à porta, Duarte e Cecília apenas apertaram as mãos mas foi o bastante para que os seus corações batessem mais rapidamente, mesmo que só por alguns segundos. Teresa entrou no carro, já Cecília estava de volta em casa. Mercedes puxou o casaco de Duarte e disse-lhe ao ouvido:
- Se tu fosses uma rapariga e a Teresa e a Cecília fossem rapazes eu diria que o filho não era da Teresa.



aluno 37958

1 comentário:

  1. Um conto muito interessante e agradável de ler. Gostei especialmente da forma realista como está retratada a classe social e a educação das três irmãs, sem que estas se tornem clichés ou estereótipos, cada uma com uma personalidade muito individual.

    Adorei o pormenor das águas do Sul fazerem confusão à D. Maria, não só porque as minhas costelas nortenhas se identificam com esta atitude, mas sobretudo porque sendo um pequeno detalhe caracteriza e dá vida à Maria.

    Tenho apenas alguns pequenos reparos a fazer:

    -Magda não me parece um nome consistente com a classe daquela família (talvez um nome mais ‘tradicional’, ou o nome da filha mais velha, que herda muitas vezes o nome da mãe.)

    .“mas a Teresa não deve ficar na presença de um rapaz sem estar acompanhada, portanto assim fica já a conhecer as irmãs.” Mesmo estando de pleno acordo com a atitude da mãe, acho que é desnecessário (e mostra falta de tacto) ela anunciar tal em voz alta. Além de que sendo uma atitude óbvia não precisa de ser apontada. Mas se achares que os leitores precisam desta informação procura que seja o narrador a comentar.

    -Podias desenvolver mais o encontro entre o rapaz e as três irmãs. Assim como está não me parece evidente o porquê do engano nos nomes não se desfazer logo.

    Saudações académicas

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