Existem amores que duram vidas
Um arrepio! Um arrepio foi o que sentiu no momento em que olhou a fotografia publicada na Internet. Na pesquisa que fizera sobre catástrofes inexplicáveis, Luiggi não compreendia porque haveria de parar naquela foto tão aterrorizadora e muito menos entendia o porquê daquele calafrio que lhe provocou um tão mal-estar pelo corpo. Leu a notícia, mas esta apenas mencionava que quatro pessoas tinham morrido e que o choque frontal foi tão forte que era impossível a sobrevivência de qualquer um dos passageiros. O mesmo tinha ocorrido anos antes do seu nascimento. Aparentemente, nada tinha a ver com este acidente.
Eram duas da manhã, estava debruçado e concentrado no ecrã do computador, sobre a mesa da sala. Foi interrompido na sua pesquisa pela internet, quando a chuva batia violentamente na vidraça. Espreitou através dela, apenas presenciou uma rua deserta. Alguns segundos depois, ouviu alguém arranhar-lhe a porta de entrada. Sentiu um novo arrepio que o paralisou. O coração batia fortemente e os seus movimentos foram extintos, até chegar à conclusão de que tudo seria da sua cabeça e deveria deixar-se destas coisas assustadoras que tanto o atraíam. O barulho não cessou: pelo contrário, intensificou! Espreitou pela porta, mas não viu ninguém. Num acto de coragem abriu-a violentamente. Viu um vulto pequeno invadir‐lhe a casa e dois olhos aterrorizados fitavam‐no.
O pêlo pingava e estava magro. Era apenas um gato abandonado que lhe irrompera casa adentro. Tentou colocá‐lo na rua, mas sentiu uma enorme compaixão por estes olhos tristes e sem vida. Decidiu dar‐lhe abrigo. Seria a companhia ideal para um homem solteiro que se interessa por coisas que ninguém percebe. Havia qualquer coisa naquele gato que não conseguia descrever. Luiggi não sabia o quão importante este seria para algumas explicações.
Durante uma semana sucederam-se episódios um pouco inexplicáveis e, por vezes, quando fazia uma pausa no seu trabalho, recordava a fotografia que tinha encontrado na sua pesquisa.
Um dia, ao regressar a casa, viu um miúdo novo na rua. Nunca o vira por ali. Pensou que se teria mudado com a restante família, há pouco tempo. Durante duas semanas, exactamente no mesmo sítio, debaixo de uma árvore, este sorria-lhe aquando a sua entrada no pequeno apartamento que partilhava como o gato Speculus. Tinha sempre a mesma roupa, a mesma expressão e aparecia sempre no mesmo sítio. Estranho, bizarro e sem justificação era o que ocorria a Luiggi sobre aquele miúdo sem nome. Não percebia de onde surgia e porque nunca o tinha visto com nenhum membro da sua família ou sequer a brincar com os outros miúdos do largo. Apesar de todos estes miúdos de imaginação aguçada, que se entregavam a brincadeiras constantes pela areia do largo, chamarem o pequeno miúdo sem nome para junto deles.
Um dia, de madrugada, Luiggi acorda de um pesadelo onde ele mesmo aparecia com face a escorrer sangue, dentro do carro que surgia na fotografia que vira semanas antes. Não entendia porque é que a sua imaginação remetia incansavelmente para aquele carro desfeito. De certa forma, parecia que esta o perseguia sem qualquer explicação.
Acaba por se levantar e dirigir-se à cozinha com a intenção de beber água para acalmar o espírito, detém-se em Speculus. O gato estava sentado num braço do sofá, a olhar fixamente para a rua. Luiggi, espreita fugazmente, como que receando o que iria presenciar. Encontra apenas a uma rua iluminada e vazia. Respira fundo! Há semanas que sente um peso na alma. Assiste a acontecimentos que o transportam para algo sobrenatural. E relembra-se de que tudo começou logo após aquela fotografia.
Passaram semanas desde esse constatar de factos e Luiggi encontrou o seu gato Speculus durante todos estes dias no mesmo lugar, a qualquer hora da noite a que se levantasse. O mais estranho era que este fenómeno apenas era presenciável durante a noite, porque de dia Speculus nem se chegava junto da janela. Luiggi sentia-se cada vez mais angustiado e amedrontado com todo este conjunto de situações. Foi então que se relembrou do miúdo sem nome. Os encontros com esta criança à entrada do seu prédio revelavam-se os mais intrigantes e sem uma explicação plausível.
Luiggi saiu do trabalho por volta das 16h37min. E decidiu caminhar até à avenida principal, a fim de comprar alguns alimentos para si e ração para Speculus. No momento em que entrou no supermercado viu uma cena que preferia não ter presenciado: um barulho de latas a esmagarem-se e um travão bem afincado no asfalto da estrada; antecederam dois carros desfeitos de frente um contra o outro. Ouviram-se gritos, gemidos e pessoas em pânico. Luiggi olhou com toda a atenção e sentiu uma dor forte no braço e na cabeça, como se estivesse dentro de um daqueles carros.
As ambulâncias, ao fim de poucos minutos, chegaram. Olhou o relógio: eram 16h 57min. Dirigiu os seus olhos para o aglomerado de gente em redor das mesmas que queriam furar o caminho para avançarem com os acidentados. Foi aí que presenciou a pior das cenas, quando todos já iam tomando o seu caminho…
Chegou a casa, largou os sacos e ficou incrédulo. Não queria acreditar ao que assistiu. Agora tudo começava a ficar nítido diante dos seus olhos. O porquê da fotografia e do miúdo. Só não entendia a dor forte no braço e na cabeça, e como estes estavam ligados a todos factos que vivera. Foi interrompido no seu raciocínio pelo ar assanhado de Speculus. O gato comportava-se de uma forma estranha. Estava com o pêlo eriçado, no sofá em que passava toda a noite, a encarar a janela que dá acesso ao pátio, onde as crianças brincam. Luiggi, bastante assustado com tudo o que havia observado, espreita pelo vidro e vê o miúdo sem nome a dizer-lhe adeus, com um meio-sorriso e um fio grosso de sangue a escorrer-lhe pela face. Neste momento, Luiggi sente o coração bater aceleradamente, ficando atónito. Quando a imagem desaparece, tenta sair de casa. Abre a porta, mas Speculus impede-o, envolvendo-se nas suas pernas. Parou e sentou-se no sofá a tentar raciocinar. Pensou que a melhor solução seria pegar no computador e ver os contornos do acidente que envolviam aquela fotografia. Porque tinha a certeza de que aquele miúdo estava associado a ela.
Durante duas horas procurou toda a informação que havia sobre o tal acidente. Mas pouco se sabia. Apenas o que já havia lido. No entanto, ficou a contemplar a mesma foto. Viu um pequeno braço de criança desmaiado. De repente sentiu uma ventania na sua cara. Olha por cima do computador e vê o miúdo sem nome fitá-lo. Um momento passou, Luiggi não sabe dizer quanto tempo. Mas nem a criança proferiu palavra alguma, nem ele. Esta apenas fez surgir a cara ensanguentada e lhe estendeu a mão como um pedido de ajuda. Luiggi já não sentia medo mas um sentimento de compaixão. De súbito, após o desaparecimento do miúdo sem nome, sentiu uma breve saudade, não sabe do quê, apenas sabe que a sentiu quando olhou para a criança.
Os dias correram e nada de factos estranhos nem da criança. E já nem Speculus dormia em cima do sofá ou eriçava o pêlo. Apenas um papel escrito que lhe aparecera em cima da mesa, ao lado do computador, que antes de sair não estava lá. Apenas esse pequeno papel foi a mais estranha ocorrência que lhe sobreviera depois do seu encontro com o miúdo sem nome.
Abriu-o e leu-o. Não tinha remetente, não tinha destinatário. Apenas uma frase: “Tenho saudades dos tempos em que brincávamos juntos”. Luiggi sentiu uma lágrima a escorrer-lhe pela face. Teve uma breve recordação de onde conhecia aquele miúdo. E logo a fotografia fez sentido. Era o seu irmão, mas nessa altura em que ainda eram irmãos Luiggi, não era a pessoa que hoje é. Era o menino que viajava ao lado do miúdo sem nome, naquele dia em que partiu para a luz eterna, quebrando a promessa que haviam feito um ao outro, nesse mesmo dia: “Vou estar sempre contigo, sempre”. Mas aquele dia fatídico separou-os e o miúdo sem nome apenas procurava cumprir a promessa que havia feito ao irmão (naquela altura Francesco) de nunca o abandonar. Mesmo Francesco tendo seguido o seu caminho para a luz, o miúdo sem nome ficou na terra à espera de que o irmão o viesse buscar (até que ele próprio o encontrou).
- Agora já podes seguir o teu caminho, miúdo sem nome…E um dia irás novamente encontrar-te comigo, aqui bem na terra onde o sol se põe e o horizonte toca o mar. Irás viver novamente ao meu lado e iremos prometer nunca nos separarmos.
Existem amores que duram vidas…
Ana Faia 39015
Estudos Artísticos
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