20/05/11



Eternidade provisória









Cansado de inventar silêncios na boca dos outros, pegou na vassoura. Varreu os pensamentos fora da validade. Esfregou as manchas de insónia, cor de sol, coladas à página onde dormira. Abriu as janelas na ânsia de se arejar por dentro. Lá fora, ruídos. Motores à velocidade de engarrafamento. Dirige-se para o quarto, afim de verificar se ela ainda estava deitada. Fotografou, do percurso, os passos que foi largando. Ao chegar, reparou que continuava deitada… a espreguiçar restos de sono por entre os lençóis.




Soergue-se, tentando afastar o sono do rosto com as mãos, dizendo: “Hoje vou procurar o meu lugar noutra página em branco. Se conseguires fotografar a minha ausência, deixa os fragmentos deste amor no cesto da roupa suja. Irei corrigir os dias em que escondi as palavras debaixo da língua – ter coragem para ler o teu fado em voz alta, sem receio de deixar cair as cordas vocais pela garganta a dentro. Sim, hei-de vestir-me de novo, limpa e lavada da cabeça aos sentimentos, nem que seja à força de tanto esperar. Tal como ontem, voltei a estar ausente. Não dormi apenas contigo. Todos os homens, que me amaram, estiveram connosco, enquanto fazíamos do amor um palco de diversão. Porque, acredita, a distância é a maior proximidade que tenho de ti. Desejo tanto estar longe, noutra página!”




Aquela revelação atingiu-o de forma abrupta. Demorou alguns segundos até recuperar o fôlego.
Sem saber exactamente o que responder, num tom desengonçado mas determinado: “Vai! Quero lá saber! Ando há dias para te propor isso. Pega nas tuas coisas e faz-te desaparição! Inventei o esquecimento para não trazer de volta os teus gestos, a tua boca sempre à beira do silêncio, as curvas onde o teu corpo é mais veloz. Vai! Não vou regatear nem mais um beijo! Os que te dei, alguém há-de roubá-los da tua boca. E quando um dia te lembrares de mim, verás que todos os parágrafos desta existência foram encontrados por alguém. De que te servirá, em frente às folhas em branco, tentar preencher a lápis os teus olhos cheios de vazio? Não me apetece fotografar a tua ausência. Fazer de conta que o passado não foi mais do que rascunhos interrompidos por falta de inspiração. Sabes, amor, não me importo de repetir diferentes versões do mesmo sentimento desde que a última versão me traga palavras que nos conduzam a uma história de verdade. Esta é apenas uma tentativa. Tem calma!”




“Tem calma?! É o que tens para me dizer? Desde quando a última versão traz mais verdade?” Descalçou o tapete por baixo dos pés. Afastou-se. Andou de um lado para o outro, parecia querer fintar o tempo com passos sem direcção. Por fim, tombou o corpo sobre a cama como se fosse uma mala carregada de cansaços. Voltou à carga:
“Muda de página, homem, muda! Há dias em que distribuo as minhas próprias ilusões por toda a casa. Nas gavetas da cómoda, nos retratos que enfeitam as paredes, nas toalhas, nos pires e nas chávenas penduradas nas prateleiras. Por todo o lado. Ouviste? Por todo o lado! Até mesmo aqui. Porque quando te escrevo, dos teus braços apenas recebo um abraço eternamente devedor. Nada mais. Portanto, não contes comigo para encobrir os teus lapsos de imaginação. Faz o que quiseres, não me dês poesia para curar o silêncio. Há sons que nada podem em certos dias. Apetece-me qualquer coisa além de nós. Quem sabe não haverá uma eternidade diferente. Hoje é um daqueles dias em que, aconteça o que acontecer, estou disposta a passar a noite em claro, envolta em lençóis de insónias. Podes não acreditar, mas estou inclinada a empanturrar-me de mimos, seja de quem for. Haverá outro modo de atear fôlego à tua respiração sem ser boca a boca? Vá! Responde! Se não tiveres nada a dizer, pelo menos saberei que não fomos feitos um para o outro e muito menos para os outros que habitaram connosco nesta cama.”




“Sossega… às vezes, também me pedem para manter os pés na realidade. É por isso que os mantenho, há anos, assentes no sonho. E, confesso-te, não gosto de ilusões… salvo quando o arrebatamento nelas contido nos ensina o caminho de volta à lucidez. Há muito que me tentei esconder da realidade, na tentativa de ser feliz. Deixa-me ser feliz em qualquer lugar, apaga este esboço! Risca-o. Reescreve-o, se necessário for. Mas não te esqueças de voltar ao princípio – é insuportável imaginar que poderei acordar sem ti ao meu lado.”




O conto aproximava-se do fim. Faltavam poucas linhas. Ambos o sabiam: por mais que tentassem adiar a eternidade, nas folhas, ficarão sempre alguns restos de tempo para viver. Vírgulas fora do lugar, frases inconclusivas, parágrafos mal escritos, rasurados e emendados. Na maior parte da vezes, rasurados, amachucados e atirados ao caixote do lixo como rascunhos. Tentativas.



Disfarçadamente, ela saiu do conto pela metáfora mais próxima. Consta que entrou na realidade. Nunca mais ninguém a viu, nem eu… Ele ainda sacudiu a folha com o intuito de ver cair uma palavra de despedida. Mas era demasiado tarde. Foi atingido por um ponto final, provisório.



2º versão – Pacheco Eduardo
Nº41314

13 comentários:

  1. Um ponto final provisório é bom. Deixa espaço em aberto, não termina. Sabes, já to disse, que gosto muito do teu conto. A maneira como ligas gestos físicos a sentimentos a sensações, brincas com as palavras. Parece fácil, parece um jogo. Adoro o título, foi muito bem escolhido! 1 beijinho colega, continuação de bom trabalho :)

    ResponderEliminar
  2. Meu caro, os meus parabéns. Sou um fã do teu modo de escrever, da tua liberdade. Adorei o modo como consegues levar o leitor ao colo, na medida em que o vais informando dos limites do conto, limites que são também a existência do conto, o seu alimento. Não sei se foi premeditado, mas gostei dos espaços em branco que deixaste em cada parágrafo, cria uma certa ironia com as folhas em branco em que a personagem masculina deixava rascunhos...
    40834

    ResponderEliminar
  3. Eduardo,
    Venho comentar esta segunda versão do teu conto, na tentativa de apresentar-te um comentário mais consistente e, espero eu, mais construtivo do que aquele escrito pela reacção à primeira versão. Espero que esta minha reflexão chegue a tempo e venha ajudar-te na terceira reescrita do conto.
    Permito-me a reconsideração: o teu gingado de metáforas é fonte de inspiração!
    A leitura desta versão fez-me reparar em algo que poderá ser-te precioso ou que, por outro lado, poderá banalizar a tua escrita. Entrelaças as tuas metáforas, comparações, catacreses e prosopopeias em frases habituais, frases que todos nós reconhecemos dos códigos informais e familiares da comunicação oral. Por exemplo: “Ao chegar, reparou que ela continuava deitada, desperta, porém deitada, a espreguiçar restos de sono por entre os lençóis.”, “reparou que ela continuava deitada” é uma oração usual, que qualquer um reconhece, mas a oração “a espreguiçar restos de sono por entre os lençóis.” inspira mais encanto pela impressão poética que nos deixa. Esta mescla de registos diversos, entre o familiar e o poético, poderá ser tomada como forma democrática de evocar todo e qualquer leitor, seja aquele pouco habituado a leitura, seja o literato, criando um elo comunicacional com a realidade concreta e, simultaneamente, um lirismo quase onírico que pode provocar no leitor um desejo maior de leitura e uma apreciação mais atenta. Por outro lado, a introdução de algumas frases como “Por falar nisso, deixa-me perguntar só mais uma coisa.” pode banalizar este cariz poético com o qual conseguiste desenhar o teu conto. Noto uma diferença na primeira metade e na segunda do texto: na primeira pareces mais embalado na possibilidade de brincar com analogias várias, de ir tecendo assim a tua narrativa, na segunda, por mais que consigas manter a trama activa, esta tecedura parece dissolver-se em frases mais triviais, impressão que, ao meu ver, tira alguma preciosidade ao conto.
    Para além deste apontamento, tenho também a anotar duas palavras e uma expressão que parecem destoar do campo semântico essencial do conto: “certificar”, “diversão”, “com intuito de”. Proponho, respectivamente: “Voltou ao quarto para ver se ela ainda estava deitada”; “enquanto fazíamos do amor entretenimento”; “ele ainda sacudiu a folha querendo ver cair uma palavra de despedida”. Claro, não precisas concordar comigo, somente peço que penses comigo. O ritmo de todo conto é rápido, galopante, porém, existem alturas em que utilizas a exclamação e de repente aparece-nos o sóbrio ponto final. Por exemplo: “Quero acordar ao teu lado! Espero.”, é como se contrariasses uma dinâmica que tu próprio incitaste. Talvez, se achares prudente, possas equilibrar o ritmo do conto de outro modo. Na penúltima linha, atenção a concordância de género: “era demasiado tarde”. Lemos o conto vezes sem conta e volta e meia aparecem-nos lapsos destes. O segundo leitor serve também para isso, avisar acerca da existência de lapsos.
    Aprecio muito o teu conto e a sua complexidade simulada em simplicidade e jogos de palavras. Compreendo que as duas páginas sejam suficientes e certas para este conto. Porém, penso que terás que cumprir as quatro páginas na versão final. Este meu último alerta deve parecer-te um eco daquilo que a professora provavelmente já deve ter comentado. Talvez possas ser uma excepção. Como é que pensas resolver esta situação? Propor-te como excepção ou incrementar mais o conto? Fico a espera para ver na publicação da tua última versão.
    Foi um prazer ler o teu conto, obrigada.
    Espero ter-te ajudado de alguma forma.
    Um abraço,
    Cristina, nº37959

    ResponderEliminar
  4. Colegas, quero agradecer os vossos comentários e sugestões ao meu conto. Tem graça, agora de repente, lembrei-me que poderia ter-lhe dado o título de “Desconto” ou, talvez mais sugestivo: “Descontinuidade”, mas pronto, isso são outros “gingados” como diria a Cristina. Agora a sério, Este exercício foi muito importante, fez com que deixássemos de ser os primeiros e últimos leitores daquilo que temos vindo a colocar na gaveta. Ouvir outras opiniões ajuda-nos a amadurecer e a corrigir certas fragilidades, sem dúvida!
    É verdade, Cristina, por teres falado em “gingar” direi que a escrita é uma dança que implica a existência de uma par. É fácil dançarmos bem sozinhos, os lapsos aparecem na presença do “outro” e é precisamente esse “outro” que nos vai alertar e despertar para a mudança.
    (eheheheh :-) não era para rimar, mas, olha saiu-me!)

    grato pelo “des-conto” às gralhas que se querem gargalhadas!

    Eduardo - 41315

    ps. O lapso da concordância de género é posterior a correcção colectiva, devo tê-lo cometido ao editar o texto, não sei, obrigado mais uma vez!

    ResponderEliminar
  5. Eduardo,
    o título "desconto" também me parece muito convidativo e sonante! Parabéns pelos títulos, tanto "eternidade provisória" como "desconto", ou "descontinuidade", são título óptimos para o teu conto! Será que tens alguma sugestão para o título do meu conto? Tem sido difícil para mim descobrir um.
    Um abraço,
    Cristina 37959

    ResponderEliminar
  6. Fala a experiência, fala a poesia.
    Mas, Eduardo, em vez da insegurança na parte final, gostaria de ver o mistério velado ou... o salto para o futuro.

    Muito êxito!

    Isabel (41435)

    ResponderEliminar
  7. De todos os contos, este é aquele onde a metáfora tem mais força. Nota-se um bom trabalho à volta desta figura de estilo, tão importante na nossa língua e tantas vezes mal aproveitada.

    Partindo logo da primeira, “inventar silêncios na boca dos outros”, o leitor abre os olhos a uma escrita singular, onde os jogos de palavras, na sua maioria, não têm um papel singular mas de conjunto. Funcionando, alguns deles, como leitmotiv (por exemplo, a relação entre a cama e a página em branco), é interessante a construção de binómios que vais fazendo, por vezes através do contraste, que aliás começa logo no título “eternidade provisória”. Um dos jogos que mais me chamou a atenção foi a questão do silêncio versus som, principalmente por causa de uma frase que não me larga desde que acabei de ler o conto: “Há sons que nada podem em certos dias.”

    Como não podia deixar de ser, tenho algumas críticas a fazer-te. Começo por uma pequena: no teu primeiro parágrafo quebras bastante o ritmo com a última frase. Talvez ficasse melhor assim: “Ao chegar, reparou que ela continuava deitada, embora desperta, a espreguiçar restos de sono por entre os lençóis.” Depois, quando no quarto parágrafo a personagem feminina diz “Tem calma?! É só isso que tens para me dizer?”, soa esquisito porque a personagem masculina acabara de fazer um discurso de doze linhas. É propositado? Se sim, o erro é meu. Mas como não é um conto onde o humor predomine, não me parece que esta incongruência faça sentido. Também neste parágrafo, eu tiraria “Por todo o lado. Ouviste? Por todo o lado!”, bem como o ponto de exclamação a seguir a “eternidade diferente”. São pormenores que cortam com o estilo a que estás a habituar o leitor. Parece-me que foi a Cristina a falar também deste aspecto, que devias rever.

    E agora, para acabar, queria fazer-te uma sugestão. Na leitura do teu conto, reparo num pormenor onde a tua qualidade como escritor sobressai: uma oralidade muito própria dos diálogos. De facto, ninguém, na vida “real”, fala como as tuas personagens. Dá ideia que estás a criar uma forma singular de comunicar, se é que me entendes. Então a minha sugestão, o desafio que te coloco, se é que não o fizeste já, é que escrevas uma peça de teatro. Estou certo de que seria uma óptima experiência para ti, como escritor. E, é claro, também para mim, como leitor.


    Um grande abraço académico,

    António Seabra
    Nº 41106

    ResponderEliminar
  8. O teu conto, inicialmente enigmático vai envolvendo e entrelaçando-se com o leitor. Como referes no teu conto, fez-me nos 5min em que o li “experimentar uma eternidade diferente”. Será que descreve uma relação entre pessoas ou uma relação entre o escritor e a sua escrita que nem sempre fluí por falta de inspiração? As relações pessoais são sempre uma eternidade provisória tal como a escrita. Ambas necessitam de inspiração e o sentir do eterno para ter continuidade, e quando há que colocar o ponto final ,fica a sensação de algo que faltou, que há um retorno que é um final provisório.
    Parabéns, o teu conto leva-nos a divagar contigo entre o que diz e o que realmente diz.
    nº39034

    ResponderEliminar
  9. Obrigado a todos pelos vossos comentários!

    a palavra seja convosco!


    um abraço




    Edu-ardo em lume brando
    leve
    quando
    quero eduardar palavras ao vento

    ResponderEliminar
  10. Está aqui um óptimo conto em potência. Digo isto porque a forma da tua escrita, quando em descrição, é demasiado boa quando comparada com os diálogos que escreves, esforçados contudo. A prosódia das tuas orações, muito pensada e bem conseguida, desvirtua-se pela fraqueza dos diálogos - que sabemos difíceis. Para além disso, o "topos" amoroso é sempre um dos mais complicados; ainda assim, conseguiste não o agrilhoar em hipóteses conclusivas, mas sim em tentativas.
    É muito interessante a inclusão meta-literária como laço criativo e meta-criativo. Em conjunto com a inclusão da fotografia, apresentas as dificuldades entre o original e a cópia, parafernália da representação.
    Não queria deixar de referir que já li: "Todos os homens, que me amaram, estiveram connosco, enquanto fazíamos do amor um palco de diversão." em algum lado, poema ou prosa - não necessariamente por esta forma. Mas a paráfrase é tua aliada, claro.

    N.º 37966

    ResponderEliminar
  11. Tens uma voz poderosa, burilada pelo tempo, madura. Nestas duas personagens consegues captar a solidão e frustração modernas, sobretudo através do uso da palavra, da fala, que mais do que aproximar, parece criar uma fronteira onde essas almas se fecham.
    Na fúria das personagens há uma melancolia que sendo violenta não deixa de se destacar pela sua doçura, no momento de explosão procuras deixar a porta aberta à revelação e criação.
    Poderia elaborar a questão meta-textual, mas prefiro destacar o movimento que fazes de abrir o texto à vida, querendo dizer que escrever é viver e viver é escrever.

    ResponderEliminar
  12. Um dos principais objectivos da escrita deve ser “Despertar Emoções” no leitor que absorve as palavras e as toma como suas. Do meu ponto de vista este conto é muito mais que uma visão poética de um momento da própria vida. É, acima de tudo, a descrição muito graciosa e bem conseguida de um momento congelado roubado à memória. O texto tem muitas palavras e expressões que nos prendem e transportam para o mundo mágico das palavras e de sentimentos figurados. Sem dúvida, um excelente exercício de escrita. Muitos parabéns Eduardo!

    ResponderEliminar
  13. Parabéns Eduardo, gostei muito do teu conto. :)

    ResponderEliminar