25/05/11

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E revelou-me ao ouvido: [sic]

“Quando entreviu que tudo era demasiado real, saiu de casa porque lhe apeteceu. Tratava-se de uma madrugada igual às outras; a diferença residia no singular interior, logo acima da consciência, que concedia um inadvertido lugar à exacerbada paixão por todos os elementos que permitiam a estrutura saudável da comum existência. Escolheu apanhar o autocarro e depressa verificou que a conformidade da rotina mantinha-se fiel. A força com que o solo empurrava o seu corpo, o ar que perscrutava as células do casal de pulmões, combinado com as invisíveis partículas oxigenadas de hidrogénio ao quadrado, bem como a saída e o regresso aos pontos de equilíbrio, do acto de caminhar, participavam nas reformadas sensações, agora conscientes, daquele estado. A mancha informe que é olhar para o exterior de um transporte em movimento dissipou-se e a visão deixara de ser totalitária, permitindo dar conta de componentes que perderam a surdez provocada pelo ruído visual da cidade. Era possível enquadrar na realidade; como se de uma fotografia, a grafia de luz que escreve sobre o tempo embalsamado, tratasse, potenciando a contemplação dos fragmentos. A máquina, desequilibrada, movia-se tão velozmente que a paisagem se lhe apresentava ao som da primeira Gnossienne, acabando por dar razão a Satie quando a compôs. Apertou o botão que dava significado ao abrandamento e saiu no centro, apercebendo-se, quando voltou a olhar, de que não havia ninguém dentro do autocarro. O despoletar desta paixão levou-lhe até ao local onde se encontram todos os estados de concentração: a marginalidade contextual; caiu no alheamento e nem se apercebeu da saída de quem conduzia. Foi o intenso amarelo de um grupo de narcisos semi-abertos que lhe fez caminhar a passo largo até a uma florista encontrada num dos cantos daquela praça. Estava fechada, o céu dispunha, ainda, as tonalidades de azul mais escuras, mas ficou a observar as míticas flores no pequeno vaso que fora útero, através do vidro, esse que nos engana quanto à liberdade. Pelo tamanho das flores constatou que eram antigas, que o bolbo, enterrado, já tinha despertado várias florações, num círculo sazonal que teve começo noutro bolbo, e assim por diante. Afinal, para além de meros narcisos, eram histórias da natureza que ficam por contar. Poder apreciar o esplendor, ver como as coisas são e que linhas as tecem, estava agora no seu horizonte. Apercebeu-se de que alguém dobrara a esquina, pois sentiu na pele uma intensidade diferente da brisa, mas foi tão rápido que não houve tempo para lhe poder cumprimentar. Há sempre uma estranha cumplicidade para com o outro quando nos encontramos sozinhos e este dá um sentido à nossa existência; quase nos mesmos moldes de um encontro com alguém desconhecido que fala a mesma língua que nós, mas numa terra estrangeira. Regressados, não vemos esse estranho. Os momentos de suspensão da normatividade estão cheios de fissuras onde é possível encontrar respostas que matam perguntas. Foi então que se deu conta do enorme graffiti que habitava na parede lateral de um edifício abandonado. Era transparente. Foi escrito na sujidade da parede, formando uma zona limpa, e incolor para todos os efeitos. Sem tinta, podia ler-se: ‘Morre enquanto amas.’. Que estranho, pensou, tinha a certeza que aquilo não estava ali ainda há pouco. Decidiu, então, atravessar a praça na diagonal, tendo o cuidado de pisar a fronteira entre o branco e o preto das pedras, e já se podia ver a ofuscante estrela do dia. Repetiu o percurso, uma vez que se desequilibrara várias vezes, e voltando à posição inicial tentou verificar se tudo estava no mesmo lugar – pois, só o tempo passara. Ali perto havia um chafariz de curioso aparato, mas longe da semântica aquática. De todo o modo, não conseguia descrevê-lo para além da semelhança com o interior de uma rocha. Aproximou-se para se poder acalmar com o refrescante olhar em direcção à água e pousada no fundo do chafariz estava uma pedra negra. Arregaçou a manga e, imergindo o braço na água, conseguiu apanhá-la, deixando-a secar ao sol na palma da sua mão. De superfície espelhada, muito polida, a pedra absorvia toda a luz em seu redor. Nunca vi uma pedra tão bela quanto esta, disse, guardando-a no bolso esquerdo enquanto olhava em seu redor para ter a certeza que ninguém visse o que estava a fazer; por não dar atenção suficiente às leis, não poderia saber se cometia alguma infracção. Mas ainda não avistava ninguém. As pequenas ondas provocadas pelo seu braço perdiam força até não formar mais distúrbio na superfície da água e foi aí que deteve a sua atenção. Inclinou-se para poder observar o seu reflexo e, suspirando, ali ficou. O reflexo na água era lindíssimo: vestindo apenas céu, nuvens, e azul profundo.”


1ª versão - n.º37966.

4 comentários:

  1. 'Se recuasse até duas décadas atrás e tivesse de dar um único conselho a um eu mais novo, diria «Não te preocupes tanto.» Mas como as pessoas mais novas nunca acreditam nas mais velhas era provável que ignorasse o meu próprio conselho.' Este excerto, de uma das obras cómico/satíricas de Douglas Coupland, ilustra bem este estado de quase mumificação do tempo, da impossibilidade de fuga aos estados naturais. Senti que a frase 'pois, só o tempo passara', a meio do conto, atrai uma enorme força e valia ao texto, na medida em que transporta a personagem a uma sensação menos vazia e com mais vivacidade, que culminará à observação do seu reflexo a um talvez auto-conhecimento. Entretanto, a forma como inicias a escrita é, quiça, surpreendente... a certa medida senti-me tão absorvido que parecia sonhar dentro do sonho. Estilo Matrix.
    40834

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. O uso da sigla sic, comummente utilizada na revisão de textos, é recuperado no teu conto e é-lhe dada uma nova força. Há algumas partes que realmente não sei se são propositadas, uma vez que colocaste [sic] ao início, o que condiciona toda a leitura do teu conto, nunca se sabendo se os erros que encontramos são reais ou intencionais. “Como se de uma fotografia, a grafia de luz que escreve sobre o tempo embalsamado, tratasse”, não querias dizer “como se de uma fotografia [...] se tratasse”? E quando dizes “O despoletar desta paixão levou-lhe até ao local”, não querias antes dizer “levou-o”?
    Na minha opinião, a maneira como nos aninhas nas tuas palavras torna o teu conto fantástico. A forma com que dás vida ao teu conto é bastante poética mas, ainda assim, acessível ao leitor. “Morre enquanto amas” é, decididamente, a melhor frase do teu conto, dando uma dica subtil à sua leitura. Também achei bastante curioso o facto de não existir ninguém no mundo da personagem. Pois não é a ele que a existência é negada. Apenas ele existe, tudo o resto são brisas e sombras.

    Susana Correia
    N.º37786

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  4. Pegas no leitor pela mão e indicas o caminho, por entre uma atmosfera sensual, plena de movimento. Movimento dos corpos, da natureza, dos fenómenos, das "ondas". Esculpes elegantemente a personagem principal, sem revelar demasiado, mesmo assim dás-lhe densidade, atribuindo-lhe um sentido de urgênia com o qual empatizamos.
    Estamos perante um trabalho pensado, onde o uso das palavras, ditas "caras",forma uma música dissonante que constitui um elemento que ora actua dentro do espírito do conto, ora subverte-o, apontando novas direcções.

    aluno nº 37965

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