14/05/11

2ª versão do conto individual

Não se sabe bem que ano era, só se sabe que era e que foi. Foi num amontoado de gente vivente numa terra lambida pelo mar. Não se sabe como é que foram lá parar, crêem-se sempre nascidos daquele areal. O mar ia e vinha e era dele que aquela gente vinha e partia. Os homens iam pela madrugada a dentro, penetravam o mar a dentro. Se o mar não gozasse, escarrava-os contra as pedras, fundava-os no seu fundo. As pedras eram as nuas montanhas que os matavam contra o mar. Os homens só iriam e viriam se as mulheres ali estivessem a criar as crias, a bordar e a rebordar as redes, a semear e a florir toda a vida e toda a eternidade para além do mar.

Como em toda a noite antes das madrugadas de pesca, as pedras estremeciam. A fertilidade daquela gente fervia pela sagrada perpetuação da espécie. O carinho daquela gente flutuava pelo encanto da espécie. A felicidade era amarfanhada pela angústia da madrugada. Era mais um dia sem saber do próximo. Nesses dias, depois da ternura vincada, depois dos homens irem ver o nascer do Sol no alto do mar, a alvorada alumiava a figura das mulheres a bordar com os seus meninos acocorados nos seus colos, a contar as lágrimas caídas e os nós feitos. Passava-se o dia, chegavam ou nunca mais voltavam. Fazia-se, criava-se, acarinhava-se o menino para se afundar no mar. Nunca se soube de um de barbas brancas que tivesse sobrado, nenhum que tivesse a pele curtida de quem tem a grandeza do seu pequeno mundo para contar.

A avó viúva e a mãe dos filhos emudecidos crêem que o mar encerra a vida e a morte. Tinham que encontrar uma verdade que legitimasse o sofrimento do desaparecimento dos seus e que justificasse o conformismo viciado de vidas que tão bem conhecem os ritmos, os desafios e a dor aos quais se têm de prestar. Imaginava-se então que o verde cerrado, que nos fecha os braços, nos aperta os passos e nos cega o céu, não poderia ser atravessado. Acreditava-se em algo que um dia viria para abrir-lhes novas vontades de vida, para além do mar, para além da mata.

Num alvorecer desses, em que a lua se firmava ao canto do céu, as mulheres que baloiçavam e bordavam viram surgir de lá longe do mar uma concha. Esfregaram os olhos orvalhados. Poisaram as redes bordadas, deitaram os menininhos na areia. A concha era colossal, pensaram no telhado que aquela concha poderia dar para uma casinha de viúva. As mulheres andavam no silêncio húmido do nascer do dia. Avistaram um volume vivo aconchegado na concavidade da concha. Um bicho. Um bicho mais branco que a carne do peixe afogado em água quente. Era um polvo encolhido e morto. Ora, um polvo não teria um tufo de fios da cor de fogo. Fios que lembravam os fios da rede a serem queimados. As ondas traziam a concha para mais perto da praia e as mulheres, já de joelhos dentro da água, apercebiam-se das suas parecenças com ele, ou ela. Lembrava uma menininha nascida há pouco tempo. Ainda gorda do leite da mãe e do peixe mastigado. Aquilo não era polvo, nem menininha enroscada em linhas de bordado. Parecia ser uma mulher gorda como os bebés, cabeluda como um ouriço-do-mar, de carne tenra como um peixe bom e branca como morta. As mulheres amontoaram-se a volta daquilo. Cochichavam. É, é um corpo de gente. Alguém palpitou a possibilidade de ser mais um dos corpos inchados e crus que de vez em quando atracavam na praia. Nunca se tinha visto uma pele de morto tão brilhante, tão polida. A sombra e o murmúrio das mulheres levaram o corpo a mexer-se. O movimento do corpo afastou as mulheres de espanto. Mexia-se tão lentamente. A cabeleira ajeitava-se e desvendava a humanidade da bicha. É, é mulher. Uma mulher nua a dormitar numa concha. As pálpebras, atordoadas pela primeira claridade, abriam-se com preguiça. Que assombro que foi olhar naqueles olhos de mar raso. Não, não era como nós. Os seus pés e as suas mãos pareciam ser macios, as coxas eram rechonchudas, o ventre e os peitos pareciam virgens, os braços finos e moles e aqueles cabelos que nunca mais acabavam. Quem borda redes, cozinha peixe e cria filho não pode ter o cabelo desse jeito, se não um dia borda com cabelo, enforca o peixe e engasga o filho. Quem trabalha não tem braço e perna mole. Quem faz e tem menino não tem o peito assim. Não, a bicha não podia ser como as mulheres.

O corpo desenrolava-se e desequilibrava-se em cima da concha. Com um sorriso olhou para o seu público. As mulheres não tiveram como não retribuir a cordialidade, acenaram com a cabeça e com um rasgar da boca incrédula. Era uma jovem tão estranha, era uma mulher outra. A estranheza não as enojava, nem lhes metia medo. Primeiro pensaram no quão desagradável era ela, tiveram pena da sua fragilidade, da sua inutilidade. Umas ajudavam-na a pisar na areia molhada, outras traziam a concha na cabeça. Os meninos já acordados, amassados pelo sono, olhavam-na com a curiosidade de quem vê um bicho novo, nunca antes visto. Podia ser uma irmã, ou até uma mãe. Teria um homem. Mas não, ela não é daqui. Vem sozinha, sem homem, nem criança.

O sol já se sentia no acalentar da pele. A bicha ria-se com graça ao pisar na areia grossa da praia. Entre olhares, decidiram deixa-la em chão firme a ver o que a criatura faria. Afastaram-se e sentaram nas suas cadeiras a baloiçar, a olharem-na. Mantendo os olhos mergulhados nos dela, as mulheres papagueavam e cantarolavam, tentando rever nela alguma humanidade. A bicha ia deixando de ser bicha. Não que começasse logo a falar feito papagaio e a cantar como as mulheres, ia murmurando. Não parecia olhar especificamente para nada, apenas olhava e murmurava. Uma senhora, grata pelo telhado que a moça lhe trouxera, foi buscar a cadeira do seu filho para que se sentasse ao lado das outras. Todas iam cantando em murmúrio para acompanha-la. Sentou-se nua em cima dos seus longos cabelos, postura que lhe asfixiava os movimentos. Uma mulher que baloiçava perto dela sacou da faca enfiada na areia e cortou-lhe o cabelo. Empurrou o seu menino para fazer-lhe uma trança. Não dá jeito algum bordar com os cabelos soltos. O rapaz aproveitou e sentou-se aos seus pés e, sem se importar com o entendimento da moça, desatou a contar-lhe uma série infinita de histórias que se entrelaçavam numa só grande história. As mulheres riam-se da inocência do pequeno e da tolice da moça que não ouvia nem desouvia. O menino contou a sua história do mundo, a história do mar, da areia, das pedras e daquela gente que ele só conhecia desde que nascera. Contou-lhe da vez em que o avô foi e não voltou, da vez em que a mãe dera-lhe uma palmada por ele querer entrar para além do pomar selvagem que separava o mato da praia. Não se percebia o que ela entendia ou deixava de entender. As mulheres iam voltando aos seus bordados e à canção do dia.

O Sol batia no cimo das cabeças, era já tempo de comer. A moça continuava sentada. Uma mulher vestiu-a e levou-a para perto da mesa aonde todas estavam. Perguntavam-se se saberia ela comer, se precisaria comer. A moça, como nada entendia, nem nada saberia responder, calou os olhos e a boca. Perante a maravilha das frutas e dos peixes dispostos, as mulheres cantavam mais alto. E a moça, na sua ignorância de si própria e na solidão de não ser realmente reconhecida, encobria-se de uma tristeza turva. O seu porte amolecia, os seus olhos embaciavam-se, os seus cabelos desafogavam-se. As outras, percebendo o enegrecer da moça, juntavam-se a ela. Umas traziam-na para deita-la ao colo das outras já sentadas na areia. Alguém lhe espremeu o sumo de uma fruta aguada na boca rosa. Ninguém entendia. A sua pele caiada parecia ainda mais morta e flácida. Ao verem-na assim, as crianças corriam e fugiam da morte, indo se esconder nos galhos das árvores de fruta do outro lado da praia. As mulheres tagarelavam aos gritos tentando perceber o que a fizera enfraquecer. Vagarosamente, a senhora desarmou o seu telhado e meteu-o a boiar na água. As mulheres deitaram a bicha no lugar donde viera. Deixaram-lhe frutas para que pudesse comer no seu regresso. Viram-na flutuar até um longe que se perdia no horizonte.

37959

9 comentários:

  1. Cristina

    Sem dúvida o conto mais bonito que li neste blogue, muitos parabéns! A transformação radical em relação à primeira versão foi muito corajosa, muitas vezes prendemo-nos demasiado às nossas ideias e palavras iniciais e não arriscamos melhorar (acontece-me muitas vezes), e tu não só o fizeste como o conseguiste sem perder nenhuma das qualidades e da beleza da primeira versão do conto. A maneira como trabalhaste a relação das mulheres e das crianças com a “Vénus” está muito bem conseguida, e era uma das coisas que se percebia faltar na versão inicial.

    A grande beleza do conto para mim está no facto de como devolveste a responsabilidade à povoação. Já não há uma deusa que chega e altera tudo, não há um D. Sebastião messiânico, nem um Prometeu que rouba o fogo aos deuses para o dar aos homens, o destino da aldeia está nas próprias mãos, não numa concha que vagueia ao sabor da corrente.

    No entanto, na minha opinião, um leitor desatento corre o risco de olhar para este conto como “um episódio estranho no dia-a-dia da aldeia” mas sem consequências. Pois se a responsabilidade está agora nas mãos dos pescadores, o que eles fazem com o que lhes acontece torna-se mais importante. O que é que mudou na vida ou na consciência da aldeia este encontro com a mulher? Seria interessante propor um início de resposta no fim do conto, ou, a deixar a pergunta em aberto, evidenciá-la um pouco mais. Que achas?

    Quanto à forma do texto, só tenho um reparo. Na frase “Os meninos já acordados, amassados pelo sono, olhavam-na com a curiosidade de quem vê um bicho novo, nunca antes visto” eu retiraria o “nunca antes visto, pois está implícito no bicho novo e quebra o ritmo.

    De resto, mais uma vez muitos parabéns e obrigado

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Cristina, antes de mais, devo dizer-te que muito me agradou a viagem pelo conhecido de nós que julgamos desconhecer, quero eu dizer, que o ser humano é um animal de estranhezas diversas e às vezes chega e parte do mundo exactamente nas mesmas circunstâncias que o protagonista (ou a protagonista?) do conto. Como me tinhas dito para tentar vislumbrar um título para o teu conto, a primeira ideia que me veio à imaginação foi: “Sem título”. Mas desisti, à medida que ia lendo e relendo, outras possibilidades foram surgindo. Ei-las:

    1 - “Conto em concha”
    2 – “Histórias de uma estória”
    4 – “Conto dentro de um conto”
    4 – “Ignorância de si”
    5 – “A concha”
    6 – “Estranho aconchegar” (este parece-me engraçado por reunir numa só palavra a concha e a chegada daquele estranho ser)
    7 – Amar e voltar”
    8 – “Mar dentro”
    9 – “Do desconhecido”
    10 – “Estranho ser”

    Espero que um deles seja do teu agrado, caso contrário, também poderá ficar: “Sem título” o que também não deixa de ser um título.
    Devo ainda acrescentar, que li o teu conto não apenas à procura de um título, mas também ávido por encontrar nele algum desvio à norma da escrita, algum lapso que me permitisse escrever um comentário mais contundente, algo que fosse além do simples “gostei muito”. E, de facto, gostei, como já disse. Tem qualquer coisa que me puxa às raízes de uma terra longínqua! Aproveito para destacar as seguintes passagens: “Quem borda redes, cozinha peixe e cria filho não pode ter o cabelo desse jeito, se não um dia borda com cabelo, enforca o peixe e engasga o filho. Quem trabalha não tem braço e perna mole. Quem faz e tem menino não tem o peito assim. Não, a bicha não podia ser como as mulheres.”
    Depois, algumas linhas mais à frente, no 5º paragrafo, outra: “As mulheres riam-se da inocência do pequeno e da tolice da moça que não ouvia nem desouvia.”
    Gostaria de ter feito um comentário e/ou crítica mais amplificadora para o teu conto, por exemplo, revelar aspectos por ti não visualizados, alargar os horizontes do conto, destacar pormenores que passam despercebidos a quem escreve, etc. Tenho, no entanto, uma pequena distracção a assinalar, no 6º parágrafo, a palavra “deixa-la”.

    De resto, só me resta dar-te os PARABÉNS por esta obra de arte e vida!

    Um abraço academicamente fratermo!

    Nº - 41314

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  4. Errata: onde se lê fratermo, deve ler-se fraterno.

    Nº 41314

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  5. Obrigada Eduardo!
    A palavra "aconchegar" parece-me interessantíssima para o título do conto. Muito obrigada!
    Um abraço,
    Cristina, 37959

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  6. Comecei a ler (ouvir) e pensei: “poderia ser um mito”.
    Terminei a leitura e pensei: “poderia ser um mito”.
    Um mito não necessita de ser explicado, fala connosco.
    Um mito é contado, vezes e vezes sem conta, até o sabermos de cor.
    A oralidade está presente no ritmo, nas palavras que se entrelaçam em mnemónicas criativas.
    É bem explorada a riqueza vocabular do português; as metáforas são bem conseguidas.
    Só não entendi por que separar o “a” de “adentro”.
    Temos escritora!

    PS: Cristina, se ainda procuras título, deixo uma sugestão: Simbi(ose).

    Isabel (41435)

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  7. Antes de mais quero dar-te os parabéns e agradecer-te por partilhares este conto com todos nós. É verdadeiramente dos melhores que já li, e não falo apenas dos que li aqui no blogue. A linguagem que usas é muito poética e lindíssima, e a história em si é interessantíssima, lembrando alguns livros de mitologia de índios norte-americanos que li.

    O mar é uma personagem de pleno direito neste conto, um prolongamento dos que dele dependem. Gostei de como apresentaste as personagens tipo (no contexto da história) da “avó viúva” e da “mãe dos filhos emudecidos”, e da alusão ao facto de o trabalho que executam os homens ser tão árduo e perigoso que nenhum cega a velho de barbas brancas.

    Achei muito adequado o pensamento imediato de fazer da concha o telhado de uma casa de viúva, mostrando a praticabilidade de pessoas que não têm tempo para se perder em devaneios. Achei perfeitas as comparações entre elementos novos trazidos pela chegada da mulher desconhecida com elementos da realidade dos pescadores (“Um bicho mais branco que a carne do peixe afogado em água quente.” e “Ainda gorda do leite da mãe e do peixe mastigado.”, entre outros.

    A diferença entre a mulher recém-chegada e as mulheres da povoação é bastante marcada, mas, em vez de a rejeitarem, estas últimas recebem-na cordialmente e fazem tudo o que podem para a fazer sentir confortável. Isto fez-me sentir muito carinho pelas tuas personagens.

    Não tenho nada de negativo a apontar. Foi um prazer ler este conto!

    Aluna nº 41211

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  8. Este comentário foi removido pelo autor.

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  9. Parabéns Cristina,

    Ao ler o teu conto viajei para essa praia, senti o cheiro do mar salgado, o sumo da fruta espremida, os longos cabelos molhados e a pele polida, o riso das crianças e ar atarefado das mulheres e dos pescadores que vislumbravam com grande espanto oa criatura que os visitou, sem palavras, apenas com um sorriso.

    Gostei muito.

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