28/05/11

Vamos ao teatro?

Olá, outra vez!
Eu e o António, em conversa, falámos na peça que está em cena no Teatro da Comuna, em Lisboa. "Do Desassossego", uma encenaçao e versão cénica do grande João Mota, numa interpretação de Carlos Paulo e Hugo Franco. Em cena até 12 de Junho, 4ª a Sábado às 21h30. 4ª é mais barato, 5 €... Pensamos em fazer a sugestão à turma. Quem quer ir?

Joana Maria

www.comunateatropesquisa.pt

3ª e ultima versao - conto individual

Aqui está a ultima versão do meu conto... Retirei a última parte e fiz outra ^^ O que acham? Comentem!

1 beijinho,
bom estudo,
até 4ª,
Joana Maria (nº40580)

http://pt.scribd.com/doc/56541095/3a-versao-e-ultima-Conto-Individual-escrita-criativa-flul

O Principezinho

"- Por favor... Prende-me a ti! - acabou finalmente por dizer.
- Eu bem gostava [...], mas não tenho tempo. Tenho amigos por descobrir e uma data de coisas para conhecer...
- Só conhecemos as coisas que prendemos a nós - disse a raposa. - Os homens, agora, já não têm tempo para conhecer nada. Compram as coisas já feitas nos vendedores. Mas como não há vendedores de amigos, os homens já não têm amigos. Se queres um amigo, prende-me a ti!
- E o que é preciso fazer?
- É preciso teres muita paciência, Primeiro sentas-te um bocadinho afastado de mim, assim, em cima da relva. Eu olho para ti pelo canto do olho e tu não dizes nada [...] todos os dias te podes sentar um bocadinho mais perto..."

"Principezinho", Saint – Exupéry

Estou cansada, demasiado cansada, exausta. Um nó de sentimentos mora dentro de mim e não consigo fazer-lhe frente. Não consigo dominá-lo, não consigo ter pensamentos lógicos, normais. Já foi há um ano, mas nem dei por dia nenhum passar.
Dou-lhe no máximo um mês…
Foi o prazo estabelecido. O Dr. Mendonça dava-lhe um mês de vida. A ele, ao meu bebé. Eu, que esperei nove meses para conhecer o meu bebé; eu, que tinha vivido cinco anos perfeitos com ele, tão perfeitos!; eu, que esperava ansiosamente pelo seu primeiro dia de escola primária, pelo seu crescimento, pelas suas amizades, pelas suas descobertas… eu, que lhe dava a eternidade. Mas agora, a eternidade só podia durar um mês. Na melhor das hipóteses, claro. Podia durar menos, podia partir antes do tempo.
Dou-lhe no máximo um mês…
As palavras ecoavam e não me saiam da cabeça, dos ouvidos, da vida. E ali estava o meu bebé, sem saber o que se passava, brincando com o seu melhor amigo, como em todos os dias. O urso João acalmava-o nas noites de sonhos maus, acompanhara-o na sua primeira ida ao dentista e viajava sempre ao seu lado no carro, cinto posto e tudo! Agora, o urso João acalmava-me a mim deste sonho mau. Só queria acordar, abraçar o meu bebé e saber que aquilo não era real. Mas isso não aconteceu e o mês ia passando. Cada vez que olhava para ele, tranquilo nas suas brincadeiras, cada vez que penteava os seus caracoizinhos louros de anjo, cada vez que o deitava na cama e o aconchegava, um sufoco no peito tirava-me a respiração. Não sabia se era a última vez que ele brincava, ou se o voltaria a pentear e a sentir o seu cabelinho, tal e qual o cabelo do pai, ou talvez nunca mais o deitasse naqueles lençóis de comboiozinhos ou mesmo noutros quaisquer.
Não penses na data, amor. Só é pior para ti. Se não soubesses de nada, de certeza que farias a tua vida normal. E mesmo sem data, podia-lhe acontecer alguma coisa. Pode sempre acontecer qualquer coisa a toda a gente. A diferença é não sabermos quanto tempo ainda temos. O Miguel continuava a tentar dar-me forças. Dava por mim em pranto a meio da noite e nunca se cansou de tentar, mesmo que dissesse o mesmo, noites seguidas. Continua a viver como viveste estes cinco anos. Foram bons. O tempo está a passar, por isso aproveita o tempo que ainda tens com o nosso bebé. Até pode durar mais, não sabes… Agradece estes cinco anos, agradece termos tido a hipótese de o conhecer.
Eu não percebia como conseguia ele estar tão calmo. Mas ele era assim e tinha sido essa sua calma que me fizera apaixonar por ele, tinha sido a sua paciência que me fizera casar com ele seis anos antes.
20 de Março de 2010. O dia amanheceu triste. Menos uma borboleta para celebrar a festa da primavera. Bateu as asas e voou para bem longe. Deixou um vazio, como se sempre tivesse existido, como se eu sempre o conhecera.
Hoje, um ano depois, recomeça a primavera. Eu estou em constante inverno. Mesmo que o sol doire lá fora, cá dentro faz frio, tanto frio! E eu estou cansada de mim. Estou cansada de me sentir assim, de não conseguir pensar em mais nada, de não conseguir dormir, de não conseguir comer, de não viver. Tenho noção que parei no tempo. Tenho noção que me tornei desleixada, que já não sou a companhia certa para o Miguel. Ele consegue continuar o caminho. Consegue estar bem, sorrir, ser o Miguel que era, ser o marido perfeito. Eu não. Mas já nem me importo. Somos companheiros de casa, de vida e de silêncio. Abraço-o, choro e adormeço. Acordo, choro e abraço-o.
E se saísses de casa, amor? Talvez ainda não esteja na hora de voltares ao emprego, mas procura uma actividade… Vai à biblioteca, vai passear com as tuas amigas, vai fazer voluntariado…
A manhã estava quente e cheia de sol. Fiz a vontade ao Miguel, vim passear. Mal saio de casa, as lágrimas começam a turvar-me a vista e respiro fundo. Já chega. Já passou um ano. Tenho que conseguir continuar. Repito para mim.
Aquela palavra que o Miguel usara… “Voluntariado” … Na minha juventude tinha feito voluntariado. Com animais, com idosos, com crianças… Sim, talvez fosse uma boa ideia! Estaria ocupada e a ser útil… Sabia que havia um orfanato a uns quarteirões do meu prédio. Podia-me oferecer para dar explicações, ou para as horas das refeições, ou para o que fosse preciso. Dirigi-me, passos decididos, até ao portão da casa. Lá dentro um pátio, um jardim, crianças, o carrossel a girar, duas gémeas a saltarem à corda, crianças, os baloiços a subir, a descer, a subir, a descer, crianças, o escorrega amarelo por onde deslizam gargalhadas rápidas, crianças… E oh! O meu bebé. Lá está ele a dizer-me adeus com a mãozinha, os seus caracóis dourados, lindo, tão lindo, a rir, a outra mão a abraçar o urso João, os ténis que comprámos quando passámos na montra da loja de desporto. Quero aqueles ténis mamã, quero jogar à bola com aqueles ténis.
- Bom dia! Posso ajudá-la? Vem visitar alguma criança?
Uma voz, do outro lado do portão, interrompeu-me os pensamentos. Uma senhora de bata cor-de-rosa aos quadrados, olhava para mim, sorridente. Olhei de novo para o pátio. Onde estava o meu bebé?
- Bom dia, não, não venho visitar ninguém… - não sabia o que responder. – Acha que seria possível falar com a assistente social do orfanato?
- Se não estiver em reunião acho que terá muito gosto em recebê-la. Vou procurá-la. Entre e espere um pouco. Como é que se chama?
- Maria.
Entrei. Sentei-me num banco do pátio a olhar aquela alegria, aquele vozear, aquela vida.
- Bom dia! Queria falar comigo? – uma jovem sentou-se ao meu lado, no banco.
- Sim, sim. Maria, muito prazer. Eu soube do orfanato e como tenho algum tempo livre… pensei que me poderia oferecer para ajudar, no que fosse preciso… Não sei se precisam de voluntários…
- É uma atitude muito louvável, a sua, Maria. É pena, já temos as tarefas todas asseguradas… Mas penso que duas mãos são sempre bem-vindas. Alguma vez fez voluntariado antes? – acenei que sim. – Como deve compreender, não a conhecemos e nos dias que correm é preciso ter muito cuidado. É preciso velar pela segurança das nossas crianças. É preciso preencher uma ficha com os dados pessoais e depois de um período de experiência é que poderá ser integrada nas actividades da casa. Está disposta a isso? – acenei afirmativamente. - Tem filhos, Maria?
- Tive.
- Oh, lamento, o que quer que tenha acontecido… Sabe que nos chegam muitas pessoas em fase de luto para trabalhar com crianças. Eu desaconselho, desculpe-me a sinceridade. Estas crianças não são substitutas de nenhum filho perdido, nem lhe vão trazer de volta filho nenhum. É preciso estar muito bem resolvida para conseguir ser útil, sem se magoar.
- Ainda assim… Não sei se já ultrapassei completamente tudo, como compreende, nem sei se ultrapassarei algum dia. Não posso ajudar em coisas pequenas e logo vemos como me dou?
- Talvez, sim. Mas fica o aviso, Maria. Não sei se vai conseguir. Pode conseguir e, nesse caso, ajuda alguém e ajuda-se a si, mas não fique triste se não conseguir. Olhe, podemos tentar integrá-la nas horas de tempos livres, no recreio. O que lhe parece?
Ali estava eu. Por onde começar? Como chegar àqueles miúdos? Não me conheciam, não os conhecia… Não iam interromper as suas brincadeiras para me conhecer. Esperei. Olhei em volta e vi um miúdo, pequeno, num canto sentado. Tinha um caderno ao colo e pegava num lápis. Estava sozinho e sentei-me ao lado dele.
- Estás a escrever uma história?
- Sim. Sou inventor.
- Se calhar queres dizer “escritor”… Os escritores é que escrevem histórias.
Não me ligou. Não interessava a palavra certa. Certo era que criava histórias.
- Era uma vez um menino, um menino feliz. Pegou num balão e voou, como sempre quis. Era uma vez um menino, um menino contente. Só queria ler e escrever e ser muito inteligente. Era uma vez um menino, um menino bonito. Só queria um amigo, nem que fosse um burrito. Era uma vez um menino, um menino normal. Não queria nada de nada e fazia tudo mal. Destes quatro meninos só um é real. Agora adivinha tu, qual é, afinal. O último de todos foi o que mais sofreu. Já adivinhaste? Esse sou eu.
Não sabia o que dizer àquilo… Seria a sua forma de se apresentar? - Foste tu que fizeste? – comecei por perguntar. – Tens mais histórias? Deixas-me ver o teu caderno?
- Sim, está cheio de histórias… Toma!
Peguei no caderninho. Vazio, branco da primeira à última página.
- Como te chamas?
- Era uma vez um menino, um menino feliz. Pegou num balão e voou, como sempre quis…

25/05/11

0/8

E revelou-me ao ouvido: [sic]

“Quando entreviu que tudo era demasiado real, saiu de casa porque lhe apeteceu. Tratava-se de uma madrugada igual às outras; a diferença residia no singular interior, logo acima da consciência, que concedia um inadvertido lugar à exacerbada paixão por todos os elementos que permitiam a estrutura saudável da comum existência. Escolheu apanhar o autocarro e depressa verificou que a conformidade da rotina mantinha-se fiel. A força com que o solo empurrava o seu corpo, o ar que perscrutava as células do casal de pulmões, combinado com as invisíveis partículas oxigenadas de hidrogénio ao quadrado, bem como a saída e o regresso aos pontos de equilíbrio, do acto de caminhar, participavam nas reformadas sensações, agora conscientes, daquele estado. A mancha informe que é olhar para o exterior de um transporte em movimento dissipou-se e a visão deixara de ser totalitária, permitindo dar conta de componentes que perderam a surdez provocada pelo ruído visual da cidade. Era possível enquadrar na realidade; como se de uma fotografia, a grafia de luz que escreve sobre o tempo embalsamado, tratasse, potenciando a contemplação dos fragmentos. A máquina, desequilibrada, movia-se tão velozmente que a paisagem se lhe apresentava ao som da primeira Gnossienne, acabando por dar razão a Satie quando a compôs. Apertou o botão que dava significado ao abrandamento e saiu no centro, apercebendo-se, quando voltou a olhar, de que não havia ninguém dentro do autocarro. O despoletar desta paixão levou-lhe até ao local onde se encontram todos os estados de concentração: a marginalidade contextual; caiu no alheamento e nem se apercebeu da saída de quem conduzia. Foi o intenso amarelo de um grupo de narcisos semi-abertos que lhe fez caminhar a passo largo até a uma florista encontrada num dos cantos daquela praça. Estava fechada, o céu dispunha, ainda, as tonalidades de azul mais escuras, mas ficou a observar as míticas flores no pequeno vaso que fora útero, através do vidro, esse que nos engana quanto à liberdade. Pelo tamanho das flores constatou que eram antigas, que o bolbo, enterrado, já tinha despertado várias florações, num círculo sazonal que teve começo noutro bolbo, e assim por diante. Afinal, para além de meros narcisos, eram histórias da natureza que ficam por contar. Poder apreciar o esplendor, ver como as coisas são e que linhas as tecem, estava agora no seu horizonte. Apercebeu-se de que alguém dobrara a esquina, pois sentiu na pele uma intensidade diferente da brisa, mas foi tão rápido que não houve tempo para lhe poder cumprimentar. Há sempre uma estranha cumplicidade para com o outro quando nos encontramos sozinhos e este dá um sentido à nossa existência; quase nos mesmos moldes de um encontro com alguém desconhecido que fala a mesma língua que nós, mas numa terra estrangeira. Regressados, não vemos esse estranho. Os momentos de suspensão da normatividade estão cheios de fissuras onde é possível encontrar respostas que matam perguntas. Foi então que se deu conta do enorme graffiti que habitava na parede lateral de um edifício abandonado. Era transparente. Foi escrito na sujidade da parede, formando uma zona limpa, e incolor para todos os efeitos. Sem tinta, podia ler-se: ‘Morre enquanto amas.’. Que estranho, pensou, tinha a certeza que aquilo não estava ali ainda há pouco. Decidiu, então, atravessar a praça na diagonal, tendo o cuidado de pisar a fronteira entre o branco e o preto das pedras, e já se podia ver a ofuscante estrela do dia. Repetiu o percurso, uma vez que se desequilibrara várias vezes, e voltando à posição inicial tentou verificar se tudo estava no mesmo lugar – pois, só o tempo passara. Ali perto havia um chafariz de curioso aparato, mas longe da semântica aquática. De todo o modo, não conseguia descrevê-lo para além da semelhança com o interior de uma rocha. Aproximou-se para se poder acalmar com o refrescante olhar em direcção à água e pousada no fundo do chafariz estava uma pedra negra. Arregaçou a manga e, imergindo o braço na água, conseguiu apanhá-la, deixando-a secar ao sol na palma da sua mão. De superfície espelhada, muito polida, a pedra absorvia toda a luz em seu redor. Nunca vi uma pedra tão bela quanto esta, disse, guardando-a no bolso esquerdo enquanto olhava em seu redor para ter a certeza que ninguém visse o que estava a fazer; por não dar atenção suficiente às leis, não poderia saber se cometia alguma infracção. Mas ainda não avistava ninguém. As pequenas ondas provocadas pelo seu braço perdiam força até não formar mais distúrbio na superfície da água e foi aí que deteve a sua atenção. Inclinou-se para poder observar o seu reflexo e, suspirando, ali ficou. O reflexo na água era lindíssimo: vestindo apenas céu, nuvens, e azul profundo.”


1ª versão - n.º37966.

23/05/11

Conto colectivo XIX

- Sugiro acabar com toda esta história!
- Que história, primo António?!
- A do Miguel e a tua! Como podes declarar que me amas, mais e mais, vendo-te nos olhos o fantasma do Miguel, sempre o Miguel! Bye, bye, bebé!

António desligou-me o telefone. O que seria de mim? O que é que ele queria dizer? “Bye, bye, bebé”? No dia seguinte apercebi-me ao que é que ele estava a referir-se. Levei uma tareia tão valente que fiquei em coma durante dias! Vim a saber, quando finalmente acordei, que os amigos do primo António encontraram o meu Miguel e trataram-lhe do sebo, de tal maneira que não lhe puseram mais a vista em cima. Aí sim, a minha vida ruiu…

Nunca irei esquecer aquela manhã no hospital de Guadalupe. Estava sozinha num quarto branco, iluminado pelo Sol brilhante daquela terra enfeitiçada. Mal acordei, comecei a ouvir uma voz alucinante a entrar pelos meus ouvidos adentro. Que infernal aquela voz! Era a cigana que me repetia: “Vais viver sozinha até aos oitenta anos… sozinha até aos oitenta anos… oitenta anos…” Aquela voz entontecia-me. Não podia ser verdade! O que seria de mim sozinha? Quem sou eu sem um homem a meu lado? Não! Preciso de um homem, quem quer que seja, Miguel, primo António, alguém! Sozinha? NÃO!

E de repente, interrompendo os meus pensamentos tortuosos, entrou no quarto um enfermeiro. Trazia a bata regular da sua profissão, ainda que algo de invulgar lhe rasgasse o hábito de que era feito o monge: uns olhos verdes lindíssimos, a barba bem aparada, um sorriso tão simpático.
- Ora muito bem, disse ele, vamos lá ver como está a funcionar esta cabecinha.
Sentou-se na borda da cama e começou a analisar uns papéis.
- Como se chama?, perguntou.
- Chamo-me Maria, respondi.
Sorriu-me, enquanto mexericava na papelada, e preparou-se para uma nova pergunta:
- Quantos anos tem?
Um enorme silêncio instalou-se no quarto. Até a telenovela emudeceu.
- Maria, quantos anos tem?, repetiu o enfermeiro após alguns segundos de espera.
Segurei-lhe na mão com força. Com a outra percorri-lhe a pele do braço, devagar. E foi então que me vieram à cabeça as palavras da vidente.
- Oitenta, disse eu, tenho oitenta.



António Seabra
Cláudia Ramalhosa
Cristina Branco
Joana Leotte

Aula com Hélia Correia


Foi retirado o vídeo que aqui constava.


Artigo n.º 79 do Código Civil Português: Direitos de Imagem.


[Heduardo KiesseJoana MariaDiogo Esteves]

Semana de África na FLUL

25 de Maio é o dia de África. Na próxima semana haverá comemorações na nossa faculdade.

Isabel Burgo, nº 41435

20/05/11



Eternidade provisória









Cansado de inventar silêncios na boca dos outros, pegou na vassoura. Varreu os pensamentos fora da validade. Esfregou as manchas de insónia, cor de sol, coladas à página onde dormira. Abriu as janelas na ânsia de se arejar por dentro. Lá fora, ruídos. Motores à velocidade de engarrafamento. Dirige-se para o quarto, afim de verificar se ela ainda estava deitada. Fotografou, do percurso, os passos que foi largando. Ao chegar, reparou que continuava deitada… a espreguiçar restos de sono por entre os lençóis.




Soergue-se, tentando afastar o sono do rosto com as mãos, dizendo: “Hoje vou procurar o meu lugar noutra página em branco. Se conseguires fotografar a minha ausência, deixa os fragmentos deste amor no cesto da roupa suja. Irei corrigir os dias em que escondi as palavras debaixo da língua – ter coragem para ler o teu fado em voz alta, sem receio de deixar cair as cordas vocais pela garganta a dentro. Sim, hei-de vestir-me de novo, limpa e lavada da cabeça aos sentimentos, nem que seja à força de tanto esperar. Tal como ontem, voltei a estar ausente. Não dormi apenas contigo. Todos os homens, que me amaram, estiveram connosco, enquanto fazíamos do amor um palco de diversão. Porque, acredita, a distância é a maior proximidade que tenho de ti. Desejo tanto estar longe, noutra página!”




Aquela revelação atingiu-o de forma abrupta. Demorou alguns segundos até recuperar o fôlego.
Sem saber exactamente o que responder, num tom desengonçado mas determinado: “Vai! Quero lá saber! Ando há dias para te propor isso. Pega nas tuas coisas e faz-te desaparição! Inventei o esquecimento para não trazer de volta os teus gestos, a tua boca sempre à beira do silêncio, as curvas onde o teu corpo é mais veloz. Vai! Não vou regatear nem mais um beijo! Os que te dei, alguém há-de roubá-los da tua boca. E quando um dia te lembrares de mim, verás que todos os parágrafos desta existência foram encontrados por alguém. De que te servirá, em frente às folhas em branco, tentar preencher a lápis os teus olhos cheios de vazio? Não me apetece fotografar a tua ausência. Fazer de conta que o passado não foi mais do que rascunhos interrompidos por falta de inspiração. Sabes, amor, não me importo de repetir diferentes versões do mesmo sentimento desde que a última versão me traga palavras que nos conduzam a uma história de verdade. Esta é apenas uma tentativa. Tem calma!”




“Tem calma?! É o que tens para me dizer? Desde quando a última versão traz mais verdade?” Descalçou o tapete por baixo dos pés. Afastou-se. Andou de um lado para o outro, parecia querer fintar o tempo com passos sem direcção. Por fim, tombou o corpo sobre a cama como se fosse uma mala carregada de cansaços. Voltou à carga:
“Muda de página, homem, muda! Há dias em que distribuo as minhas próprias ilusões por toda a casa. Nas gavetas da cómoda, nos retratos que enfeitam as paredes, nas toalhas, nos pires e nas chávenas penduradas nas prateleiras. Por todo o lado. Ouviste? Por todo o lado! Até mesmo aqui. Porque quando te escrevo, dos teus braços apenas recebo um abraço eternamente devedor. Nada mais. Portanto, não contes comigo para encobrir os teus lapsos de imaginação. Faz o que quiseres, não me dês poesia para curar o silêncio. Há sons que nada podem em certos dias. Apetece-me qualquer coisa além de nós. Quem sabe não haverá uma eternidade diferente. Hoje é um daqueles dias em que, aconteça o que acontecer, estou disposta a passar a noite em claro, envolta em lençóis de insónias. Podes não acreditar, mas estou inclinada a empanturrar-me de mimos, seja de quem for. Haverá outro modo de atear fôlego à tua respiração sem ser boca a boca? Vá! Responde! Se não tiveres nada a dizer, pelo menos saberei que não fomos feitos um para o outro e muito menos para os outros que habitaram connosco nesta cama.”




“Sossega… às vezes, também me pedem para manter os pés na realidade. É por isso que os mantenho, há anos, assentes no sonho. E, confesso-te, não gosto de ilusões… salvo quando o arrebatamento nelas contido nos ensina o caminho de volta à lucidez. Há muito que me tentei esconder da realidade, na tentativa de ser feliz. Deixa-me ser feliz em qualquer lugar, apaga este esboço! Risca-o. Reescreve-o, se necessário for. Mas não te esqueças de voltar ao princípio – é insuportável imaginar que poderei acordar sem ti ao meu lado.”




O conto aproximava-se do fim. Faltavam poucas linhas. Ambos o sabiam: por mais que tentassem adiar a eternidade, nas folhas, ficarão sempre alguns restos de tempo para viver. Vírgulas fora do lugar, frases inconclusivas, parágrafos mal escritos, rasurados e emendados. Na maior parte da vezes, rasurados, amachucados e atirados ao caixote do lixo como rascunhos. Tentativas.



Disfarçadamente, ela saiu do conto pela metáfora mais próxima. Consta que entrou na realidade. Nunca mais ninguém a viu, nem eu… Ele ainda sacudiu a folha com o intuito de ver cair uma palavra de despedida. Mas era demasiado tarde. Foi atingido por um ponto final, provisório.



2º versão – Pacheco Eduardo
Nº41314

18/05/11

ARTE BRASILEIRA.literatura, pintura, cinema.

Colegas,
Convido-vos, uma vez mais, a visitarem a exposição de pinturas e excertos literários, a assistirem os filmes e a participarem da tertúlia sobre a ARTE BRASILEIRA na Casa da América Latina nos dias 24, 26 e 27 de Maio, entre às 19h e às 21h30.

Este evento de três dias tem como missão a divulgação da arte moderna e contemporânea brasileira, partindo do conceito de Inter-Artes, ao apresentar paradigmas culturais que atravessam o cinema, a pintura e a literatura brasileiras, com temas e plásticas que assentam sobre a formação e o sentido da sociedade brasileira. Constitui-se de uma exposição literária e plástica e de três filmes, debatendo-se a seguir as possibilidades de intersecção entre o filme apresentado, obras de artes plásticas e obras literárias.

Programa:

24| Ter | 19h00-21h30 | CAL
Inauguração da exposição
Projecção do filme Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade (1969, 108’)
Tertúlia sobre as artes plásticas brasileiras, por Cristina Branco

26 | Qui | 19h00-21h30 | CAL
Projecção do filme Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos (1963, 103’)
Tertúlia sobre o cinema brasileiro, por Catarina Oliveira

27 | Sex | 19h00-21h30 | CAL
Projecção do filme Central do Brasil, de Walter Salles (1998, 108’)
Tertúlia sobre a literatura brasileira, por Miguel Dores

Peço-vos que memorizem, anotem nas agendas, divulguem!
Uma boa última semana de aulas para todos!

Cristina Branco

17/05/11

Pai (2ª versão)

Nasci fruto de uma relação fugaz. Ela era uma adolescente que acreditava no amor eterno. Ele uma criatura que a iludiu com palavras bonitas. Ela enfrentou o triste destino de ter um filho naquela idade. Ele, mal soube que a sua semente tinha dado frutos, fugiu para parte incerta. No dia em que foi abandonada, a minha mãe contou aos meus avós que estava grávida. O meu avô ralhou, a minha avó gritou e a minha mãe chorou. Apesar do choque eles resolveram apoia-la durante a gravidez. Ignoraram as críticas e olhares mordazes da vizinhança e criaram-me como se de um filho me tratasse. A minha mãe e a minha avó sempre fizeram os possíveis e os impossíveis para sobreviver. Ambas tinham vários trabalhos para conseguirem trazer comida para casa. O meu avô lamentava todos os dias o combate que travara durante a guerra do ultramar e que o deixara preso àquela cadeira de rodas. Considerava-se um estorvo para nós pois em muitas situações estava dependente da nossa ajuda.

Foi este o ambiente em que cresci: sem pai, com uma mãe e uma avó que se matavam a trabalhar e um avô que se movimentava com a ajuda de duas rodas. Vivia revoltado com a ausência de pai. Interrogava-me sobre o motivo pelo qual ele tinha fugido às responsabilidades.

Uma tarde, ao vir do liceu, deparei-me com os olhar preocupado da minha mãe:

-Que se passa?

-É o teu pai… Acabou de ligar. Diz que te quer ver.

Na minha cabeça formou-se uma estranha bola de sentimentos. Por um lado, era meu pai, e eu sempre quis ter um pai. A vontade de o ver era muita. A curiosidade também : será que o meu pai também gosta de futebol? Será que ouve a mesma música que eu? Por outro lado, um sentimento de raiva apoderou-se de mim. Aparece dezasseis anos depois e pensa que está tudo bem?! Sempre sobrevivi sem pai, porque não continuar assim??

-Preciso de pensar, mãe.

-Eu sei, meu filho.

Decidi falar com o Miguel, um amigo de sempre. Expus-lhe a minha situação e pedi a sua opinião:

-Que devo fazer?

-Só tu sabes essa resposta.

-Eu sei disso, mas… como é ter um pai?

- Ter pai é poder abraçá-lo quando temos saudades. É poder ligar-lhe quando precisamos de dinheiro. É chorar quando estamos mal e gritar de alegria quando conseguimos alcançar os nossos objectivos. Ter pai é fazer de tudo para o convencer a deixar-nos sair a noite. É ter 18 num teste e ouvir da boca dele que podemos fazer melhor. Ter pai é passar horas com ele sentados no sofá a ver futebol. Ter pai é receber lições de vida. Ter pai é, acima de tudo, uma razão para se continuar a viver.

Nesse momento, tomei uma decisão. Contei-a à minha mãe mal cheguei a casa:

-Mãe, diz ao pai que amanhã à tarde me pode vir buscar.

Nessa noite, mal consegui dormir. Tinha medo de criar falsas expectativas em relação àquele ser que eu nunca tinha conhecido. Porém, era impossível não pensar que daqui a umas horas ia finalmente ter um pai.

No dia seguinte, depois das aulas, fiquei em casa à espera da sua chegada. Andei às voltas pela casa uma vez que não conseguia estar parado. Dirigi-me várias vezes à cozinha e olhei o relógio que estava por cima da porta. O tempo parecia não passar. As minhas unhas, que sempre tinham sido normais, agora não passavam de uma mistura de sangue e peles. Uma gota de suor formou-se na minha testa e deslizou pela cara a baixo até ao pescoço. E mais uma. E outra. Quando dei por mim, tinha a camisola encharcada e tive de a trocar. Ouvi um barulho e dirigi-me à porta pensando que era a campainha. No entanto, era apenas o barulho da televisão. Ao virar costas, soou finalmente o som da campainha. Abri a porta com a mão a tremer e deparei-me com um homem alto e moreno, tal como eu. Olhou-me nos olhos: -Desculpa, meu filho – e agarrou-se a mim. Sem saber o que fazer afastei-o e disse-lhe: -Sempre cresci sem pai. Se há alguém a quem tenhas de pedir desculpa, não sou eu...

A minha mãe olhava-nos com lágrimas nos olhos. Ele dirigiu-se a ela:

-Des…

- Não digas nada. Não vale a pena pedires desculpa quando sabes que nunca te vou perdoar. Enganaste-me. Mas acho que já devia estar à espera, não é? Agora só te peço uma coisa, não cometas o mesmo erro com ele!

-Não faço, nem quero fazer. Neste momento só quero que ele me dê uma oportunidade para recuperarmos o tempo perdido.

Olhei-o nos olhos:

-Não penses que regressas de repente e tudo fica bem. Sai daqui. Não te consigo perdoar.

O meu pai saiu com lágrimas nos olhos e eu corri a fechar-me no quarto. Descarreguei a minha raiva no pouco que tinha. Raiva de saber quem era o meu pai, raiva de saber que provavelmente nunca mais o ia ver e, acima de tudo, raiva de mim próprio por o ter mandado embora sem sequer ter ouvido as suas explicações.

Os meses passaram e a minha disposição não melhorou. As notas começaram a baixar pois eu dedicava todo o tempo a imaginar como seria a minha vida, se tivesse perdoado o meu pai.

Um dia, ao chegar a casa, o telefone tocou e eu atendi. Era do hospital da zona. O meu pai tinha sido atropelado. Estava mal e eu era a única família que ele tinha. Sem sequer pousar a mochila, dirigi-me para lá. Entrei no hospital e dirigi-me à recepção. Quis perguntar pelo meu pai mas nem o nome dele sabia. Dirigi-me então a uma recepcionista e perguntei:

- Deu entrada algum homem vítima de um atropelamento?

-Sim. Chegou um há cerca de duas horas. Vinha muito mal tratado. É da família?

-Hum… Sim… Sou o filho.

-Ele está no quarto 37.

Dirigi-me ao quarto e ao entrar vi um médico à cabeceira do meu pai:

-Como é que ele está?

-Este homem não morreu por pouco. Neste momento está em coma e não sabemos quando pode acordar.

As lágrimas vieram-me aos olhos. Não podia ser… não podia!

Dirigi-me ao meu pai e peguei-lhe na mão:

-Estás perdoado, pai.

Ele abriu os olhos, sorriu para mim e voltou a fechá-los.

Filipe Marques Nº41199

Conto Colectivo VIII

-António, ainda bem que atendeste, cada dia te amo mais, estou com umas saudades tremendas.
-Eu também, bebé, temos de ter calma, um dia estaremos juntos.
-António, achas que o Miguel permitiria isso?
-Querida, eu tenho informações que podem comprometer muito o Miguel, não sei se estás preparada para ouvir o que descobri.
-Ai meu Deus, que foi António, deixas-me sem ar, diz, diz, preciso de saber, estou pronta.
-Querida, contactei um detective privado para seguir o Miguel e descobri coisas interessantes, muito interessantes.
-António, isso é perigoso.
-Maria, sabias que todos os videntes que consultaste foram pagos pelo Miguel? Ele controlava a tua vida através deles.
-Não é possível, NÃO.
-Sim, ele manipulava-os de forma a influenciar-te. Sabes a cigana, aquela da feira de Guadalupe, ela nem cigana era, ela é uma actriz que costuma beber forte e feio no Bairro alto e o vidente.
-António, o meu mundo ruiu.
-Sabes querida, podemos acabar com isto, eu tenho uns amigos e...
-António! O que é que estás a sugerir!?



Marcos Sousa Guedes
37966
Rodrigo Torres Pereira

15/05/11

Ulisses (v. 2.0)

Ulisses 2

Desde já obrigado pelas sugestões sugeridas que me ajudaram muito com os problemas expostos e com outros que não tinha ainda notado.

1 Em relação às citações, optei por seguir a forma que Gonçalo M. Tavares usa no livro Jerusalém, de referir apenas os autores citados no fim do livro. Achei o método interessante, pois sem tirar espaço e protagonismo ao que acontece no livro, aguça-nos a curiosidade não só pela citação mas pelo momento da citação no livro, faz-nos querer retomar a leitura, dá-nos novas pistas de meditação sem as impor ao longo do livro. E assim, no meu conto, em relação à citação de Fernando Pessoa, continua a ideia de Universalidade da ideia, sem a restringir logo a uma frase de alguém em concreto

2 Cheguei a pensar retirar a citação de Sophia, pois parecia-me que o acrescentava não era suficiente para balançar o peso da relação entre a autora e a “minha” Sofia, mas a leitura e comentário da Cristina fez-me voltar a querer manter o poema, e assim, usando o seu conselho, indiquei o nome completo, para manter a distância entre ambas.

3 Quanto à tradução de Dante, resignei-me ao facto de que mais vale uma tradução fraca que tradução nenhuma. Mantive a minha apenas por ser uma interpretação mais pessoal dos versos, e assim reflecte melhor a minha relação com o conto e com o poema.

4 Usei também a ideia da Cristina de descrever primeiro a aldeia antes de “revelar” o narrador, e gostei do resultado, mas digam-me se continuarem a achar uma mudança muito brusca.

Agora que nos aproximamos da versão “final” do conto, peço e agradeço desde já todo o feedback que possam dar.

Saudações académicas

Marcos de Sousa Guedes

Nº 34083


14/05/11

2ª versão do conto individual

Não se sabe bem que ano era, só se sabe que era e que foi. Foi num amontoado de gente vivente numa terra lambida pelo mar. Não se sabe como é que foram lá parar, crêem-se sempre nascidos daquele areal. O mar ia e vinha e era dele que aquela gente vinha e partia. Os homens iam pela madrugada a dentro, penetravam o mar a dentro. Se o mar não gozasse, escarrava-os contra as pedras, fundava-os no seu fundo. As pedras eram as nuas montanhas que os matavam contra o mar. Os homens só iriam e viriam se as mulheres ali estivessem a criar as crias, a bordar e a rebordar as redes, a semear e a florir toda a vida e toda a eternidade para além do mar.

Como em toda a noite antes das madrugadas de pesca, as pedras estremeciam. A fertilidade daquela gente fervia pela sagrada perpetuação da espécie. O carinho daquela gente flutuava pelo encanto da espécie. A felicidade era amarfanhada pela angústia da madrugada. Era mais um dia sem saber do próximo. Nesses dias, depois da ternura vincada, depois dos homens irem ver o nascer do Sol no alto do mar, a alvorada alumiava a figura das mulheres a bordar com os seus meninos acocorados nos seus colos, a contar as lágrimas caídas e os nós feitos. Passava-se o dia, chegavam ou nunca mais voltavam. Fazia-se, criava-se, acarinhava-se o menino para se afundar no mar. Nunca se soube de um de barbas brancas que tivesse sobrado, nenhum que tivesse a pele curtida de quem tem a grandeza do seu pequeno mundo para contar.

A avó viúva e a mãe dos filhos emudecidos crêem que o mar encerra a vida e a morte. Tinham que encontrar uma verdade que legitimasse o sofrimento do desaparecimento dos seus e que justificasse o conformismo viciado de vidas que tão bem conhecem os ritmos, os desafios e a dor aos quais se têm de prestar. Imaginava-se então que o verde cerrado, que nos fecha os braços, nos aperta os passos e nos cega o céu, não poderia ser atravessado. Acreditava-se em algo que um dia viria para abrir-lhes novas vontades de vida, para além do mar, para além da mata.

Num alvorecer desses, em que a lua se firmava ao canto do céu, as mulheres que baloiçavam e bordavam viram surgir de lá longe do mar uma concha. Esfregaram os olhos orvalhados. Poisaram as redes bordadas, deitaram os menininhos na areia. A concha era colossal, pensaram no telhado que aquela concha poderia dar para uma casinha de viúva. As mulheres andavam no silêncio húmido do nascer do dia. Avistaram um volume vivo aconchegado na concavidade da concha. Um bicho. Um bicho mais branco que a carne do peixe afogado em água quente. Era um polvo encolhido e morto. Ora, um polvo não teria um tufo de fios da cor de fogo. Fios que lembravam os fios da rede a serem queimados. As ondas traziam a concha para mais perto da praia e as mulheres, já de joelhos dentro da água, apercebiam-se das suas parecenças com ele, ou ela. Lembrava uma menininha nascida há pouco tempo. Ainda gorda do leite da mãe e do peixe mastigado. Aquilo não era polvo, nem menininha enroscada em linhas de bordado. Parecia ser uma mulher gorda como os bebés, cabeluda como um ouriço-do-mar, de carne tenra como um peixe bom e branca como morta. As mulheres amontoaram-se a volta daquilo. Cochichavam. É, é um corpo de gente. Alguém palpitou a possibilidade de ser mais um dos corpos inchados e crus que de vez em quando atracavam na praia. Nunca se tinha visto uma pele de morto tão brilhante, tão polida. A sombra e o murmúrio das mulheres levaram o corpo a mexer-se. O movimento do corpo afastou as mulheres de espanto. Mexia-se tão lentamente. A cabeleira ajeitava-se e desvendava a humanidade da bicha. É, é mulher. Uma mulher nua a dormitar numa concha. As pálpebras, atordoadas pela primeira claridade, abriam-se com preguiça. Que assombro que foi olhar naqueles olhos de mar raso. Não, não era como nós. Os seus pés e as suas mãos pareciam ser macios, as coxas eram rechonchudas, o ventre e os peitos pareciam virgens, os braços finos e moles e aqueles cabelos que nunca mais acabavam. Quem borda redes, cozinha peixe e cria filho não pode ter o cabelo desse jeito, se não um dia borda com cabelo, enforca o peixe e engasga o filho. Quem trabalha não tem braço e perna mole. Quem faz e tem menino não tem o peito assim. Não, a bicha não podia ser como as mulheres.

O corpo desenrolava-se e desequilibrava-se em cima da concha. Com um sorriso olhou para o seu público. As mulheres não tiveram como não retribuir a cordialidade, acenaram com a cabeça e com um rasgar da boca incrédula. Era uma jovem tão estranha, era uma mulher outra. A estranheza não as enojava, nem lhes metia medo. Primeiro pensaram no quão desagradável era ela, tiveram pena da sua fragilidade, da sua inutilidade. Umas ajudavam-na a pisar na areia molhada, outras traziam a concha na cabeça. Os meninos já acordados, amassados pelo sono, olhavam-na com a curiosidade de quem vê um bicho novo, nunca antes visto. Podia ser uma irmã, ou até uma mãe. Teria um homem. Mas não, ela não é daqui. Vem sozinha, sem homem, nem criança.

O sol já se sentia no acalentar da pele. A bicha ria-se com graça ao pisar na areia grossa da praia. Entre olhares, decidiram deixa-la em chão firme a ver o que a criatura faria. Afastaram-se e sentaram nas suas cadeiras a baloiçar, a olharem-na. Mantendo os olhos mergulhados nos dela, as mulheres papagueavam e cantarolavam, tentando rever nela alguma humanidade. A bicha ia deixando de ser bicha. Não que começasse logo a falar feito papagaio e a cantar como as mulheres, ia murmurando. Não parecia olhar especificamente para nada, apenas olhava e murmurava. Uma senhora, grata pelo telhado que a moça lhe trouxera, foi buscar a cadeira do seu filho para que se sentasse ao lado das outras. Todas iam cantando em murmúrio para acompanha-la. Sentou-se nua em cima dos seus longos cabelos, postura que lhe asfixiava os movimentos. Uma mulher que baloiçava perto dela sacou da faca enfiada na areia e cortou-lhe o cabelo. Empurrou o seu menino para fazer-lhe uma trança. Não dá jeito algum bordar com os cabelos soltos. O rapaz aproveitou e sentou-se aos seus pés e, sem se importar com o entendimento da moça, desatou a contar-lhe uma série infinita de histórias que se entrelaçavam numa só grande história. As mulheres riam-se da inocência do pequeno e da tolice da moça que não ouvia nem desouvia. O menino contou a sua história do mundo, a história do mar, da areia, das pedras e daquela gente que ele só conhecia desde que nascera. Contou-lhe da vez em que o avô foi e não voltou, da vez em que a mãe dera-lhe uma palmada por ele querer entrar para além do pomar selvagem que separava o mato da praia. Não se percebia o que ela entendia ou deixava de entender. As mulheres iam voltando aos seus bordados e à canção do dia.

O Sol batia no cimo das cabeças, era já tempo de comer. A moça continuava sentada. Uma mulher vestiu-a e levou-a para perto da mesa aonde todas estavam. Perguntavam-se se saberia ela comer, se precisaria comer. A moça, como nada entendia, nem nada saberia responder, calou os olhos e a boca. Perante a maravilha das frutas e dos peixes dispostos, as mulheres cantavam mais alto. E a moça, na sua ignorância de si própria e na solidão de não ser realmente reconhecida, encobria-se de uma tristeza turva. O seu porte amolecia, os seus olhos embaciavam-se, os seus cabelos desafogavam-se. As outras, percebendo o enegrecer da moça, juntavam-se a ela. Umas traziam-na para deita-la ao colo das outras já sentadas na areia. Alguém lhe espremeu o sumo de uma fruta aguada na boca rosa. Ninguém entendia. A sua pele caiada parecia ainda mais morta e flácida. Ao verem-na assim, as crianças corriam e fugiam da morte, indo se esconder nos galhos das árvores de fruta do outro lado da praia. As mulheres tagarelavam aos gritos tentando perceber o que a fizera enfraquecer. Vagarosamente, a senhora desarmou o seu telhado e meteu-o a boiar na água. As mulheres deitaram a bicha no lugar donde viera. Deixaram-lhe frutas para que pudesse comer no seu regresso. Viram-na flutuar até um longe que se perdia no horizonte.

37959

imagem e texto

Gary Hume, Water Painting, 1999.

música: Vinicius de Moraes e Baden Powell, Canto de Xangô


Mulher reconhecida nas mulheres

Entre heras e flores

Que as toldam e encantam

Em fios de ouros.



Cristina Branco
37959

A propósito da aula de 13/05/11

Foto: Philip-Lorca diCorcia





Um quarto

Dois corpos quase despidos

A despedir mais qualquer coisa do que um mero adeus.





Nº 41314




















10/05/11

You are Welcome to Elsinore

Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte   violar-nos   tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas   portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício

Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsinore
E há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar

                                Mário Cesariny

Confessionário (2ª versão)



   Estava tão longe, que só a sentia em pensar. Duas nuvens mais tarde reencontrá-la-ia. Caminhava, o homem, com a sombra do dia quente a arrastar-lhe o medo pelas costas. Como estaria ela? Como lhe pareceria ele? Cada passo que dava levantava uma questão, e os pés pesavam-lhe por não ter resposta, tornando-lhe o caminhar cada vez mais lento. Cruzou a rua e viu um casal enamorado sentado no passeio. Olhou o céu e a lua espreitava. Levou a mão ao bolso e retirou recordações. A sua foto. Transpirava memórias a partir do seu retrato. E despiu o casaco, porque o seu sol aquecia-o.
   Chegou à casa era quase amanhã, e ela não estava. Teria faltado ao prometido? Teria desistido pelo seu atraso? Já não conseguia rebobinar os sentimentos. Sufocava da sua ausência. E, agora, que esperava reatar a relação, encontrava-se sozinho. Utilizou a chave que ela lhe dera quando ainda se amavam, abriu a porta do prédio, subiu as escadas e entrou em casa. O hall de entrada parecia-lhe mais sujo, agreste, devastado por um tufão de sensações. Olhou o mesmo espelho e viu uma cara diferente. O quão estava nublado! Levou as palmas ao rosto e vieram-lhe lágrimas às mãos. Caminhou à janela e respirou o ar da rua, enquanto gotas de água lhe caíam em cima da cabeça. E reparou que chovia. Por dentro, por fora. E, pelo tempo que tempera todo o seu feitio temperamental, pensa nela e porque ela lhe fugiu. «Escreves sensações em mim», pensou.
   Caminhou até à cozinha. Aqueceu um bule de chá. Bebeu goles imprecisos de coragem. Ela era o único pássaro que lhe pousava na janela. Que lhe diria quando voltasse? Será que voltava? Sentou-se numa cadeira e olhou em volta. A mesma mesa, as mesmas prateleiras, as mesmas recordações quentes. Um papel amarrotado, deitado no chão. Pousou a chávena, como quem aceita uma sentença e agarrou nele. De a conhecer asseada, sentiu um calafrio. Deixou-se ficar perto, mais perto, sem mexer no tempo. Desdobrou-o:
‘Meu amor, perdoa a minha ausência. Está para nascer quem será mais feliz do que algumas vez fomos. Escrevo-te esta carta, enquanto as horas passam no meu relógio. Eu nunca mudarei. Para mim a hora não passa, porque eu nunca mudarei. Peço que sares a ferida que te criei nesta distância, prometo não mais te magoar. Padecerei sempre de ser igual, e longe de mim querer criar-te ferida com as minhas frustrações. Vivo as minhas horas como uma aflição. Não me consigo estabilizar. Nunca notabilizei sentimentos, meu amor. Perdoo todo o teu rancor, mas prefiro viver só.’
   Deixou cair o papel ao chão, como quem salta de um precipício. Sentiu todas as portas fechadas ao redor da sua alma, e um misto de sensações apoderou-se dele. Poderia ter bebido mais do seu sorriso. Enquanto retorna, para sair, observa uma última vez o seu rosto ao espelho e procura sofrer saudade. Encontra-se tão vazio que nem sente falta, o corpo imóvel por tê-la perdido. Os seus olhos brilham, como as estrelas lá fora, procurando dar luz a um rumo novo. Desconhece-se; sente-se dorido e consumido, como gotas de água baldia que ao sol se evaporam. E, enquanto abre a porta para sair, encontra-a, entrando.
   Os seus olhares vagueiam, como um carrossel que carrega histórias mudas. Ela arrepende-se com o olhar. Ele aceita as suas desculpas. E, olhando-se, como quem se conhece duma vida, beijam-se. E não se tocam. Ele sorri. Ela retribui, e molha os seus lábios, afigurando uma onda que rebola na areia de uma praia feliz.
   «Acho que viver é desenhar sem borracha»
   «Estás disposta a dar-me a mão neste retrato?»
   Penetram-se os olhares e os lábios sorriem como aves reconfortadas em seus ninhos. Sim. E todo ele era impune e tinha uma história sem começo.
   «Amo-te»
   «Também te amo»
   Ele não disse a verdade. Ela mentiu. Tudo o resto germinará silenciosamente no interior de cada um até nova explosão.
   E então, abraçados com a eternidade, os dois amantes selaram o destino.

Aluno 40834