23/05/11

Conto colectivo XIX

- Sugiro acabar com toda esta história!
- Que história, primo António?!
- A do Miguel e a tua! Como podes declarar que me amas, mais e mais, vendo-te nos olhos o fantasma do Miguel, sempre o Miguel! Bye, bye, bebé!

António desligou-me o telefone. O que seria de mim? O que é que ele queria dizer? “Bye, bye, bebé”? No dia seguinte apercebi-me ao que é que ele estava a referir-se. Levei uma tareia tão valente que fiquei em coma durante dias! Vim a saber, quando finalmente acordei, que os amigos do primo António encontraram o meu Miguel e trataram-lhe do sebo, de tal maneira que não lhe puseram mais a vista em cima. Aí sim, a minha vida ruiu…

Nunca irei esquecer aquela manhã no hospital de Guadalupe. Estava sozinha num quarto branco, iluminado pelo Sol brilhante daquela terra enfeitiçada. Mal acordei, comecei a ouvir uma voz alucinante a entrar pelos meus ouvidos adentro. Que infernal aquela voz! Era a cigana que me repetia: “Vais viver sozinha até aos oitenta anos… sozinha até aos oitenta anos… oitenta anos…” Aquela voz entontecia-me. Não podia ser verdade! O que seria de mim sozinha? Quem sou eu sem um homem a meu lado? Não! Preciso de um homem, quem quer que seja, Miguel, primo António, alguém! Sozinha? NÃO!

E de repente, interrompendo os meus pensamentos tortuosos, entrou no quarto um enfermeiro. Trazia a bata regular da sua profissão, ainda que algo de invulgar lhe rasgasse o hábito de que era feito o monge: uns olhos verdes lindíssimos, a barba bem aparada, um sorriso tão simpático.
- Ora muito bem, disse ele, vamos lá ver como está a funcionar esta cabecinha.
Sentou-se na borda da cama e começou a analisar uns papéis.
- Como se chama?, perguntou.
- Chamo-me Maria, respondi.
Sorriu-me, enquanto mexericava na papelada, e preparou-se para uma nova pergunta:
- Quantos anos tem?
Um enorme silêncio instalou-se no quarto. Até a telenovela emudeceu.
- Maria, quantos anos tem?, repetiu o enfermeiro após alguns segundos de espera.
Segurei-lhe na mão com força. Com a outra percorri-lhe a pele do braço, devagar. E foi então que me vieram à cabeça as palavras da vidente.
- Oitenta, disse eu, tenho oitenta.



António Seabra
Cláudia Ramalhosa
Cristina Branco
Joana Leotte

11 comentários:

  1. Gostei! Principalmente do final. Maria não queria passar a vida sozinha e no fundo (já) tinha oitenta anos. Bem pensado! Bom trabalho, colegas :) Joana Maria

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  3. Achei bastante bem redigido, com a linguagem própria da personagem que foi apresentada pelo primeiro excerto.
    A ideia do final está bastante boa. No final de tantas peripécias, de passar a vida tentando não cair nas palavras da vidente, Maria acaba realmente por dar corpo às previsões da vidente. Ao fugir do seu destino, esbarra com ele.

    Susana Correia

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  5. Hmm, creio que o enfermeiro foi inspirado numa pessoa real...

    Deixando-me de brincadeiras: gostei do final, sobretudo porque é parecido ao do filme da Sandra Bullock, "Premonição".
    Apenas tenho a apontar no diálogo entre a protagonista e o enfermeiro, falta, em alguns pontos, o travessão a separar o discurso directo do discurso do narrador. Tirando isso, acho que é um bom final. É mesmo caso para dizer que "quem tudo quer, nada tem".

    estudante 37878

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  6. Susana, não creio que seja tão evidente que Maria tenha esbarrado com o destino, até porque se formos a ver, objectivamente ela não tem oitenta anos, logo, ficamos sem saber se ela encontra no enfermeiro o homem da sua vida ou se não dá em nada (mas isso já será matéria para um outro conto colectivo). No entanto é este aspecto que torna o conto tão interessante, abre muitas hipóteses de leitura e interpretação.

    Gostei muito do trabalho deste grupo, sobretudo da sua atenção a pequenos detalhes que preenchem o texto, como o "bye, bye, bebé" que resume a personagem do António, o paralelismo com a primeira frase "nossa" do conto", ou o emudecer da telenovela, que prenuncia que também esta história se vai calar. Um único senão que aponto é algum vocabulário utilizado pela Maria, como "tareia", "trataram-lhe o sebo", ou mesmo o desesperado "preciso de um homem, quem quer que seja". Parece-me muito pouco feminino, e de certo modo desligado da personagem sonhadora e bastante ingénua que Maria se revelou até aqui.

    Muitos Parabéns ao grupo e Saudações académicas

    Marcos de Sousa Guedes

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  7. Marcos,

    Eu não acho que ela tenha esbarrado com o Miguel! O Destino não tem de concretizar numa pessoa. O que eu quis dizer é que esbarrou com o destino que a vidente lhe tinha mostrado: que iria ficar sozinha aos oitenta anos, o que se verifica no conto. Peço desculpa se me exprimi mal no primeiro comentário.

    De resto, concordo contigo acerca do discurso da Maria, mas discordo no que dizes no discurso do António porque me parece muito pouco sério para o homem que "desenhámos" nas aulas no início do conto.

    Um abraço para todos,
    Susana Correia

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  8. A parte do conto não é XIX mas IX ;)

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  9. Boa Noite!

    Esta parte do conto, actuando como o final do conto, teve um desenvolvimento deveras engraçado e bem construído. O facto mais interessante deste excerto é a possibilidade de o leitor imaginar e completar na sua mente um futuro para a protagonista, será que ficou ou não com o charmoso enfermeiro?

    De todos os grupos que estiveram encarregues de escrever uma parte do conto, acho que este foi um dos textos mais bem conseguidos. Afinal este grupo conseguiu introduzir um lado cómico ao conto e deixar um final em aberto.

    Os meus parabéns ;)

    Beijinhos,
    Tânia Almeida, nº.38063.

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  10. Este final é mesmo ao estilo do Van Damme ou do Vin Diesel... a parte inicial do coma é surpreendente, inesperada e fugaz, como se o coma fosse como comer uma laranja, coisas normais que acontecem... enfim, revela-se que a senhora encontra-se completamente apaixonada, tanto que o coma de dois dias não lhe traz mais mazelas que a fuga repentina do Miguel. E acho melhor a mulher viver sozinha, sempre só se estraga uma vida. Essa entrada do enfermeiro quase me cheirou a filme porno... e bem... parece que a Maria está condenada a menos que aposte em virar lesbiana... de facto, tanto homem e tão pouca sorte é de uma pessoa enlouquecer...

    40834

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  11. Como já foi comentado anteriormente, é bastante visível a incoerência do discurso nesta parte do conto.
    O primo António até agora tem sido caracterizado como uma pessoa bastante formal e distante para, de repente, ter um discurso próprio de um miúdo tonto ou de um tipo sem formação para dizer "bye bye bebé" Não é realista e até soa mal...
    Seguidamente, o "ataque" do primo também não coincide com o discurso anterior, em que dizia que o Miguel era um manipulador que até contratava falsas videntes para atormentarem a coitada da protagonista!
    E por falar em protagonista, o que é que lhe aconteceu?! trata-se de uma mulher bipolar? de uma coitadinha? De uma sonsa? Não se percebe. Inicialmente parecia uma mulher determinada mas com dúvidas sobre algumas decisões que tomara quando era mais nova. A protagonista parecia uma mulher coerente e matura, com valores e alguma coragem, porque decidiu partir à procura de respostas. De repente, torna-se numa pobre coitada que sofre imenso entre um homem e outro e chega ao cúmulo de pensar que "preciso de um homem, quem quer que seja", ou seja, se essa fosse a sua grande questão, para quê largar o primo em busca de outro homem? porque não se agarrava ela aquele que ela já tinha, uma vez que bastava ser um qualquer?...
    vamos tentar solidificar as personagens, dar-lhes mais estrutura e consistência, um pouco mais de realismo. Temos de nos questionar: quem é esta mulher? O que é que ela quer? O que é que ela sente? O que é que ela precisa? Qual é a sua história? A sua experiência e percepção do mundo?
    criando alguma afinidade com as personagens podemos identificar-nos coma história e talvez gostar dela. No todo, o conto está muito variado, muito esquizofrénico, será bom concordarmos nalgumas características e vontades dos personagens e do enredo para que a história tenha substância.

    Não obstante, a parte final da personagem já com oitenta anos, é interessante e poderá ser mais desenvolvida. :)

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