04/05/11

Conto individual

O Estranho Mundo de Zoe

Era uma tarde de domingo, igual a muitas outras, Zoe e seu irmão Félix brincavam no quarto dos brinquedos enquanto aguardavam que o pai os chamasse para irem visitar os avós.
Zoe e Félix tinham dois anos de diferença, mas brincavam muito um com o outro, num universo que só eles compreendiam. A casa onde viviam era grande, com dois andares, as crianças viviam sobretudo no andar debaixo que era para elas um mundo de mistérios e lugares de conforto. Ao fundo das escadas encontrava-se uma velha máquina de costura cujas gavetas estavam cheias de tesouros, botões gigantes, botões pequeninos, botões às flores, botões de todas as formas e feitios, dos quais Zoe tinha muito medo, mas também havia rendas antigas, pedaços de bordados, caixinhas de remédio antigas e ovos de madeira para cozer meias. Ao lado estava a porta para o quarto de Zoe, era um espaço claro e acolhedor, com bonecas de trapos e na cabeceira da caminha de ferro estavam dois fantoches, um ouriço e um coelho, longas conversas surgiam com estes dois na hora de adormecer...
Neste piso inferior que era praticamente só para as crianças, também existia um quarto de arrumos cheio de armários com portas gigantes que não se podiam abrir, viviam lá monstros escondidos… Eles gostavam de aparecer quando estava escuro e silêncio. Nessa sala de arrumos estava a mesa, também gigante, dos legos onde havia uma cidade que igualava o mundo de lá de fora. Félix era quem arquitectava a estrutura da cidade, da vila e da praia, mas era Zoe quem lhes dava vida.
Os bonecos tinham nomes e personalidades, havia casais idosos, adultos e jovens apaixonados, havia ricos e pobres, pessoas boas e outras menos boas. Quando os diálogos e as construções terminavam, os dois irmãos contemplavam a cidade e limitavam-se a imitar os sons que esta tinha.... Bib bib, booooomm, Arghhg, trim trim. Bomp. Olá! Tinónini... Zzzhhjjhkkkmm.
Mas os legos não eram o único mundo criado por estes dois irmãos. No pátio da casa havia toda uma selva onde Gi-Joes entravam em guerra, claro está, havia sempre uma Gi-Jane que corrompia a razão de todas as guerras. Tinha de haver, impreterivelmente, uma mulher nas histórias para Zoe entrar na brincadeira.
As outras duas divisões do andar eram o quarto do Félix e o quarto dos brinquedos, ali, havia de tudo, desde pinipons, playmobils, transformers, barriguitas, barbies, pequenos-póneis,e quase todos os brinquedos da moda, naquela altura. As letras do abecedário estavam espalhadas pelas paredes, Félix, o mais velho, já as conhecia mas Zoe, ainda não. Os desenhos que os irmãos faziam eram expostos pelos pais nessa mesma sala, tornando a sala branca numa mistura de cores e bonecos animados.
Félix gostava de fazer banda desenhada, copiava os seus cartoons preferidos, que eram os Manga. Zoe não percebia a piada dos olhos bicudos e sentia-se frustrada por não conseguir desenhar tão bem como o irmão. Ela apenas sabia fazer pinturas abstractas! Começava com uma bola azul, depois outra cor-de-rosa, outra amarela, umas ondas roxas, umas sombras laranjas, pintava até a folha ficar preenchida, era o único tipo de desenho que ela sabia fazer, mesmo assim orgulhava-se deles e pedia para os emoldurar, eram os desenhos dela, os seus bebés artísticos.
Ás vezes, quando se fechava no quarto, ligava o seu gira discos portátil da fischer-price, uma prenda de quando fez quatro anos. O gira-discos ainda era dos que funcionavam a pilhas. Com o gira-discos ligado Zoe cantava e dançava como se fosse outra pessoa, noutro planeta, noutra época, fora da realidade.
No quarto, Zoe criava inúmeras personagens, baseadas nas pessoas que ela via diariamente. O quarto era um mundo seguro, onde Zoe podia ser quem quisesse, onde podia alcançar tudo o que desejasse.
E como não sonhar naquela casa? Quando Zoe subia as escadas, encontrava na sala o pai a tocar viola e a mãe a dançar descalça, o pai também dançava e fazia umas figuras muito cómicas, ninguém dançava como ele, não era uma dança especialmente elegante, mas era apelativa, com alguns movimentos mais bruscos, acompanhados de expressões faciais sisudas e absurdas ao mesmo tempo.
Anos mais tarde ele explicaria a Zoe, que a dança era um reflexo das tripes que ele tivera quando era mais novo, em que as caras se arrastavam e fragmentavam.
Nessa tarde, Zoe brincava no quarto dos brinquedos com a sua casa de bonecas inglesa, toda feita em madeira, também tinha dois andares e uma família, como a de Zoe, olhando para a casa, surgiu-lhe um pensamento e interrogou-se em voz alta:
- Félix, e se formos uns bonecos iguais a estes? – Félix não respondeu e continuou a brincar, aquela questão deixara-a inquieta. Porque é que as coisas eram assim? E se não fossem? Quem é que controlava? E o quê?
Aquela casa de bonecas podia ser um outro mundo, onde outra Zoe brincava com outra casa de bonecas, com outra Zoe e outra casa de bonecas. E esta Zoe, a nossa Zoe, podia ser uma simples boneca, controlada por outra, controlada por outra, controlada por outra... Um sem fim de controlo de bonecos. Um espaço infinito de casas de madeira inglesa com famílias fabricadas.
O coração de Zoe batia aceleradamente, ela não queria mais brincar e não sabia o que fazer, será que se começasse a chorar, estaria a fazer a birra que a boneca que a comandava queria que ela fizesse?
Como é que alguma vez voltaria a ser ela própria, se na verdade, não passava de um fantoche igual aos que tinha na cabeceira de sua cama? Todas as histórias e todas as personagens que ela tão bem criara, tinham agora uma outra dimensão, estavam vivas como ela, e ela estava morta como elas. Não havia nada a fazer, Zoe duvidava assim, da realidade da sua própria existência. Restava-lhe chorar e esperar pelo consolo do pai e da mãe que, se calhar não passavam de uns bonecos disfarçados de pai e de mãe.
Félix apercebera-se que a sua irmã estava petrificada e chamou o pai para animá-la, este ao entrar na sala viu a filha com uma expressão alheada e fixa na casa das bonecas. Para distraí-la começou a fazer sons com o corpo, criando ritmos e música e Félix alinhou na brincadeira começando a cantarolar, Zoe estrebuchou, abriu muito os olhos e com ar desconsolado deu uns ares da sua graça fingindo entrar na brincadeira, porque ela ainda estava na dúvida...
Entretanto a mãe, que já estava pronta, chamou-os para saírem, ao subir as escadas, o pai pegou em Zoe ao colo, encheu-a de beijos e disse-lhe que não se preocupasse, porque tudo estava bem, tudo estava sempre bem enquanto ela fosse tão amada.
No carro, disse aos pais:
-Manhã manhã vou aprender o abecedário todinho! Os pais sorriram e a viagem correu bem.
A meio caminho, virou-se para o irmão e disse que não conseguia mexer os olhos para olhar para o lado. “ Como as bonecas”, pensou...
Todas as histórias que ela inventava podiam ser verdadeiras, e aquelas que lhe contavam podiam ser as falsas. No percurso até casa dos avós foi observando os carros que passavam e as pessoas na rua, todas elas seriam criadoras e todas elas haviam sido criadas. Muitos enredos, muitas histórias, muitas brincadeiras... E concluía para si mesma:
- Isto dá muito trabalho, não vou chegar ao fim!


aluna n.º 31223

1 comentário:

  1. Achei o conto bem interessante, gosto do modo como a história se desenvolve para Zoe nos mostrar as suas indagações ("Félix, e se formos uns bonecos iguais a estes?"...). A introdução é como uma descrição a nos mostrar "o estranho mundo de Zoe", e podemos imaginá-lo perfeitamente a fazer aquelas perguntas... Pode ser lido tanto por crianças quanto por adultos com o mesmo apreço, o que é algo difícil de se fazer! Está bem contado e prendeu a minha atenção até o fim.

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