RAZÃO SOMBRIA
Não me deram qualquer justificação para me levarem ao Psicólogo. Começaram por dizer que tinha de ser, que tinha mesmo de ser. Depois evoluíram para um motivo mais racional: não sabemos. E tanto o não saber como o ter de ser não me pareciam razões válidas. Fiz então um esforço para descobrir os motivos que estavam por detrás da marcação de uma consulta caríssima com um caríssimo salvador de tristezas. Ainda por cima para mim que nunca me senti sozinha nem deprimida nem nada dessas coisas. Estou sempre bem-disposta, a vida não me parece assim tão difícil, e independentemente do significado do adjectivo que vou usar a seguir, considero-me uma rapariga feliz. Então agora imagine-se a pergunta dentro de mim, o ruminar incansável à volta das razões que levariam uma rapariga boa de saúde como eu a frequentar um médico da cabeça. Quereria ele perguntar-me alguma coisa que só eu soubesse? Juntar a Santo Agostinho, Rousseau e Tolstói as Confissões de uma adolescente? Pensando bem, não seria má ideia: sempre gostei de ler e se fizessem da minha vida uma obra de arte não me importava nada. Por falar em livros vem-me à cabeça um conto de um escritor moçambicano em que a personagem principal é internada por gostar de declamar poesia. Será esse o medo dos meus pais?
Tentei convocar uma reunião familiar envolta em chá preto e torradas com marmelada mas o convite foi negado, tanto pelo meu pai como pela minha mãe, por ser o número de membros da família demasiado grande para o conhecimento do motivo. Como se houvesse ali alguém a mais com quem não se pudesse partilhar a informação. Em primeiro lugar achei que estavam a brincar com a minha cara porque a nossa família é composta por quatro elementos: além de mim e dos meus pais existe só o meu irmão Pedro. Em segundo lugar o Pedro sabe tudo acerca de mim e é uma pessoa com quem não tenho problemas de partilhar seja o que for. À falta de vontade dos meus pais para tomar chá e falar da vida acabei por desistir. E como sobretudo gosto de os ver satisfeitos lá acedi ao pedido, e ao fim de algumas semanas houve um dia em que o despertador do telemóvel me acordou com o seguinte lembrete: Psicólogo.
Então o dia chegou e lá fui eu. Bem-disposta como quase sempre, sorridente como quase sempre, acordei, tomei banho e arranjei-me. (Quando ia a sair de casa o arranjo foi quase todo pelo ar porque fiquei com os cabelos entrelaçados na minha fita porta-chaves que estava pendurada no candeeiro da entrada, um lustre velhíssimo que não serve para nada e que os meus pais teimam em manter ali. Penteei-me no espelho do elevador e não fiquei tão gira, então o ódio ao maldito lustre cresceu. Que importa isso. Bati a porta do prédio e apanhei o metro.)
Cheguei à estação, subi as escadas que nos elevam à superfície, atravessei meia dúzia de ruas e estava lá. Dois andares sem elevador que não custaram a subir. Incomodava-me, isso sim, a ideia de ter de esperar horas para que chegasse a minha vez numa sala cheia de cadeiras podres com velhas a queixar-se das costas e dos netos mal comportados.
Vá lá que não tive de esperar muito, a sala de espera vazia para espanto meu, as revistas da sala de espera ainda mais vazias de tão antigas, um ecrã onde alternava uma jornalista muito feia com a chuva esquisita que ocupa os televisores antigos. A jornalista falava de suicídio na adolescência, a chuva esquisita não falava de nada e agradava-me.
De maneira que ao sentar-me para esperar não esperei grande coisa e fui logo chamada. Entrei para o interrogatório espiritual e mesmo antes de começar a falar reparei no tique deveras engraçado que o doente, quer dizer, que o médico tinha no olho esquerdo, que piscava e piscava sem parar. Se calhar não era tique nenhum e estava apenas nervoso, mas sinceramente não vejo razão para a minha presença enervar alguém. Para juntar ao olho esquerdo que piscava sem parar uma das abas do nariz mexia-se a uma velocidade que por pouco não me fez desatar às gargalhadas. Mas contive-me, como sempre faço nestas alturas, e assim se deu início à sessão de perguntas.
Era quase capaz de apostar que a primeira pergunta iria ser aquele cliché tenebroso que ocupa as cabeças das empregadas domésticas quando os filhos não vão à escola: porque te sentes triste. As minhas expectativas não foram concretizadas e como não me sinto triste nem sozinha nem deprimida nem nada dessas coisas tirei um cigarro do maço e pedi isqueiro ao médico. Como ele é médico e não doente recusou-se a dar-me o isqueiro e então guardei o cilindro na caixinha.
Depois de muito piscar os olhos e contorcer as narinas lá começou a falar. E em vez de fazer perguntas sobre a minha pessoa preferiu saber como estavam as coisas lá em casa. Pelos vistos a consulta devia ter sido marcada para as coisas lá de casa dado que as perguntas não eram pessoais. Respondi que estava tudo bem, que todos éramos felizes e nada havia a temer. Depois de lhe explicar este facto óbvio, e de ficar indignadíssima com a sua expressão de estranheza perante a segurança da minha resposta, o médico pegou numa caneta e começou a desenhar pequenos círculos perfeitos numa folha em branco. Ficámos os dois em silêncio, cinco minutos, dez, quinze, vinte, até sermos interrompidos por um doente que começou a bater à porta do consultório com murros pesados. O mundo vai acabar, anunciava ele, enquanto os punhos alternavam de encontro à janelinha que estavas prestes a partir-se. O médico levantou-se e saiu do consultório, envolvendo o profeta com o braço, e encaminhou-o para outra sala. Entretanto o telefone estava a tocar há horas, fartei-me de o ouvir ganir e atendi. Carreguei no botão do sistema mãos-livres, na esperança de que o médico o ouvisse no corredor e voltasse para a minha frente, e a voz que vinha do outro lado não me soou muito agradável. A princípio pareceu-me familiar, o que me assustou, mas logo percebi que estava a alucinar. É o que dá vir a estes sítios, pensei. Aquela voz podia ser de um maluco qualquer, e há tantos por aí. Era também um anúncio, tal como o doido que esmurrava a porta, mas agora em forma de despedida. Ia-se pendurar numa corda mas não queria deixar de agradecer ao psicólogo toda a ajuda. Obrigado, doutor, do fundo do meu coração, já que não posso agradecer do fundo da minha mente. Achei esta despedida engraçada mas nestes momentos, não é verdade, a gente não se pode rir. O médico, esbaforido, entrou no consultório aos tropeções e assustou-me. Já só ouviu as últimas palavras, talvez ainda tenha tido tempo para reconhecer voz, pois voltou a sair do consultório. Se calhar para socorrer o rapaz, telefonar aos pais, sei lá.
Eu, agora sozinha, pela primeira vez na vida sozinha, pela primeira vez na vida sozinha e logo num consultório psiquiátrico ou psicológico ou seja lá o que for, afinal que diferenças separam comprimidos de conselhos, abri uma das gavetas da secretária do médico e encontrei um isqueiro. Tirei outra vez o cigarro do maço para finalmente sujar um bocadinho os pulmões quando descubro que o isqueiro não tem gás. E ao reparar que o isqueiro não tem gás, e ao analisar que estou numa sala de malucos para explicar a alguém porque é que me sinto triste, que não sinto, e ao acrescentar a esta análise que para além de estar numa sala de malucos estou sozinha numa sala de malucos, eu que nunca estive sozinha nem sei o que é isso de solidão, e ao ouvir aquela chamada digna do sítio onde estou mas não digna de mim, de facto não digna de mim, tudo isto me pesou, como diria um dos amigos do Fernando Pessoa, acho que o Álvaro de Campos, tudo isto me pesou como uma condenação ao degredo.
Para acentuar o degredo o médico voltou, de lágrimas a correr pela cara. Não se sentou, dirigindo-se directamente a mim, agarrando-me na cara e dizendo-me, a chorar: por favor finge que não ouviste aquela conversa. Outro cliché tenebroso e, para fazer a rima, pavoroso. Assustada, sem saber o que dizer, mas sabendo à partida que a resposta era óbvia, positiva, peguei-lhe nas mãos suadas do desespero e descolei-as da minha cara. O homem sentou-se no lugar mas não conseguia conter os nervos, não conseguia falar. Só as abas do nariz a tremelicar, os olhos a piscar e os círculos perfeitos a aumentar. Como eu não sabia o que havia de dizer, e como o médico não fazia perguntas, e visto que já eram quase três horas da tarde, voltei para casa.
E ao entrar em casa, como se explicará isto por palavras sem parecer mentira, os meus sentidos bloquearam. O meu irmão Pedro, logo à entrada, pendurado pelo pescoço. Sob o lustre que não servia para nada. Devo ter ficado uns dez minutos a olhar para ele, os dez minutos mais demorados da minha vida. Depois reparei que no chão, na linha dos seus pés, um telemóvel. Por instinto peguei nele e vi a última chamada efectuada. Psicólogo.
Colega,
ResponderEliminarAntes de mais, parabéns pelo conto. Devo dizer que fiquei muito impressionada por teres conseguido dar vida a esta personagem feminina tão complexa e torná-la real, sem nunca a fazeres parecer descabida. Gostei particularmente do final inesperado, pois não julgava, de todo, que quem tivesse ligado para o psicólogo tivesse sido o irmão desta rapariga. Senti arrepios com a última frase, foi curta e "agressiva" e, para mim, foi como se me tivessem tirado o ar por momentos.
Passando para outros aspectos, na frase: "O mundo vai acabar, anunciava ele, enquanto os punhos alternavam de encontro à janelinha que estavas prestes a partir-se.", existe uma pequena gralha em "estavas", que deveria ser "estava", mas não é algo relevante e foi obviamente uma pequena distracção.
Por fim, na frase: "Entretanto o telefone estava a tocar há horas, fartei-me de o ouvir ganir e atendi.", eu entendo a utilização do verbo "ganir", tendo em conta o registo irónico e distinto da personagem, mas a palavra continua a não me soar muito bem, pelo que sugeria a supressão do termo, ficando apenas: "...fartei-me de o ouvir e atendi.".
Uma vez mais, parabéns pelo bom trabalho!
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António, nesta etapa em que os textos já foram vistos e revistos, os eventuais lapsos vão se tornando cada vez mais escassos e, ainda bem, é sinal de progresso. É certo que poderá haver um ou outro pormenor a retocar, há sempre, mas, nada de significativo.
ResponderEliminarBem, agora passemos ao teu texto propriamente escrito, começo por dizer que aquilo que fizeste na parte final do conto, não se faz aos leitores. Sim, não se faz mesmo! É que por muito que se saiba que estamos perante um exercício de imaginação e criatividade, no final, como direi? Fiquei pasmado, boquiaberto, perplexo, nem sei mais o que acrescentar. António? Esse final é impróprio para cardíacos. Para teres uma ideia do que estou a tentar dizer, ela é equiparável a uma bofetada no coração! Exagero? Até poderá ser, mas a verdade é que senti uma coisa cá dentro dificilmente explicável por palavras. Fez-me ganir o coração! (ganir o coração?) É, António, o teu conto, como já referi num comentário feito a um outro colega, insere-se na lista dos melhores que me passaram pela leitura. Sublinho a inteligência e a maturidade com que conduzes o enredo. Sublinho a força retumbante do final e a tua ousadia por trabalhares um tema tão complexo e delicado. Não é um conto superficial, pelo contrário, é um texto ao qual é impossível virar as costas quando se entra nele. Se inicialmente brinquei ao dizer que não devias fazer isto aos leitores, digo-te que sim, deves fazê-lo! Um conto tem de ter vida, tem de tocar, abanar, sacudir o leitor e tu conseguiste fazê-lo com mestria e o traquejo de quem sabe! Confesso-me um aprendiz de escritor, mas, diante de textos com o calibre do teu, penso duas vezes, sou um aprendiz de leitor! Posto isto, deixa-me apenas pedir-te uma coisa, posso? subtrai o “ganir” por favor, António!
:-)
Abraço academicamente fraterno
ps. olha lá, então e o “verde”? Procurei, procurei e nada Em todo o conto não usaste a palavra “verde”. Assim sendo, deixo-te com esta:
“Se eu não morresse, nunca! E eternamente
Buscasse e conseguisse a perfeição das coisas”
Cesário Verde
Nº 41314