A PORTA NÃO BATEU …
A porta nunca bateu de facto. As pessoas bem educadas não batem com as portas.O lugar do pai na mesa ficou vazio. Os fatos do pai desapareceram. O jornal do pai deixou de vir regularmente. A cama grande passou a ter uma só almofada. O cheiro desagradável e insistente dos cigarros da mãe passou a empestar a casa dia e noite.
O pai estava vivo mas não estava ali. A mãe estava ali mas não parecia viva. Os olhos comiam-lhe a cara toda, as saias dançavam nas ancas magras e apareceram-lhe duas pequenas rugas obstinadas no canto da boca. Emocionalmente perturbada não conseguia gerir os acontecimentos.
O silêncio que descera sobre a casa era desconcertante.
Diana fazia-se pequena e despercebida. Veio-lhe aquele hábito de passear pelo corredor com as mãos atrás das costas e o queixo levantado a desafiar o mundo, quando ninguém a via .
O mundo desabara à sua volta sem que nada tivesse saído do lugar, a não ser o cadeirão do pai que ela virava para a parede quando estava sozinha em casa.
No colégio, a vida continuava, pontuada por vezes com segredos, risinhos e olhares de soslaio. Nessas alturas, Diana fingia-se de morta por dentro, não dava sinais de entender, recolhia-se num mundo só dela. Fora disso, falava, falava, falava constantemente: do primo que chegara do estrangeiro, do novo ipod, das gémeas vizinhas do andar de cima, do bebé recém-nascido no andar de baixo, da nova casa dos tios. De si, dos pais nunca.
Sábado amanheceu cinzento. A mãe acordou nervosa.
“ Despacha-te, Diana. O teu pai deve estar a chegar e quero-te pronta lá em baixo.”
“ O pai não sobe?”
Desabou-lhe na cabeça uma tempestade de lágrimas e de recriminações:
“Subir? Pôr cá os pés? Tens cada ideia. Não entendes nada. Não ouves nada. Não vês nada. Para ti está sempre tudo bem. Tanto te faz, não é? Desculpa, desculpa querida. Anda cá , Diana. Nada disto é contigo. Já não sei o que digo. Anda cá, anda.”
Abraçada à mãe, a passar-lhe uma mão desajeitada pelo cabelo, Diana segurou as lágrimas e afirmou a voz:
“ Pronto, mãe, pronto. Eu estou aqui. Já passou. Vou-me vestir que o pai deve estar a chegar. Descansa que ele não sobe e eu volto amanhã.”
O carro apitou duas vezes lá em baixo. Diana desceu as escadas quatro a quatro, atravessou a rua a correr e dois minutos depois estava sentada ao lado do pai, o sorriso a doer-lhe, a culpa de deixar a mãe sozinha a remoer-lhe, a importância de se sentar no banco da frente e a ideia de ter o pai só para si a agradar-lhe.
“ Não se dá um beijo ao pai?”
“ Agora não. Acabava de ver, pelo canto do olho, a cortina ligeiramente afastada da janela e a cara da mãe a espreitar.”
O carro arrancou bruscamente. A mão do pai pousou-lhe ao de leve no joelho.
“ Temos muito que falar os dois. Não tenho tido tempo. A tua mãe e eu…”
“ Pai como é que se chama o filme que vamos ver? Podemos ir comer um gelado a seguir. No sábado que vem posso trazer uma amiga? A Isabel. Lembra-se dela ? Aquela que os pais dela se separaram o ano passado. Anda um bocado triste.”
“E tu?”
“Eu, quê? Posso trazê-la pai? Se disser que sim dou-lhe um beijo agora.”
O carro encostou ao passeio e Diana abraçou o pai com toda a força.
“ Largue-me, agora largue-me, pai. Já chega, no sábado que vem há mais.”
O pai não insistiu, não disse mais nada e Diana agradecida encostou-se confortavelmente no banco e começou a olhar à volta.
O mundo continuava ali. O pai estava vivo. A mãe estava viva. Ela também. Deixassem-na em paz, não lhe tentassem explicar nada. A guerra era deles. Diana só queria fazer-se tão pequena e despercebida durante uns tempos, que quando ambos dessem realmente por ela, já tinha começado a crescer sozinha e a responder sem se engasgar:
“ O meu pai? A minha mãe? Estão bem, muito obrigada. Eu também.”
Alguns anos mais tarde, Diana, uma jovem adulta, perscruta a sua memória, marcada pela separação dos pais e tece considerações sobre o seu presente e sobre os caminhos que se lhe abrem como opções de vida. Procura num momento de introspecção, desprendido de emoções infantis, fazer uma reavaliação das marcas passadas, tirar conclusões e com a lucidez proporcionada por raciocínio adulto, procura caminhos que não dependam de ninguém senão de si mesma.
Calha que estou sozinha em casa. No conforto do espaço conhecido, no ninho ambíguo do silêncio. Sobe-me um impulso incontrolável de explorar a arca da imaginação e da memória. Revolvo, ponho, tiro invento. .Tenho os braços cheios de um montão de coisas inúteis e de outras que o não são.
A gente nasce, a gente chora, cresce, faz altares de pessoas e ideias, faz amigos, faz disparates, faz versos, faz tristes figuras, melhor ou pior recorta e preenche um quadradinho próprio no meio onde vive e prepara-se para agarrar o tempo pelos colarinhos, sem pressa nem cerimónia
Mas o tempo não tem colarinhos. Não tem sequer pescoço. Para uns, é um relógio que divide a rotina em tarefas certinhas, para outros é um ladrão que é preciso apanhar a todo o custo. Mas afinal o tempo é apenas o período de difícil transição entre a vida que se pensou ter escolhido e as escolhas que os anos nos vão apresentar. Sempre apoiados e, ao mesmo tempo, fortes no contexto em que nos possamos integrar.
Felicidade? Aquela palavra mágica convertida em chave da vida para abrir toda e qualquer porta? Ilusão? Engano? Pozinhos de sonho sobre a realidade? A eterna fugitiva que perseguimos sem nunca lhe conseguirmos tocar? Um minuto perfeito, uma hora inesquecível e queremos repetir e repetir sem sabermos que mal lhe tocamos já se transformou em pedra da memória.
Melhor pôr um pé à frente do outro, tropeçar, cair levantar, fazer do erro bandeira, fazer do certo o incerto e seguir caminho sem olhar para trás mais que o instante preciso para dar corda ao relógio da vida.
Joana Sousa
Aluna nº 37679
Olá Joana!
ResponderEliminarAntes de mais nada, quero dizer-te que o título escolhido para ilustrar o teu conto foi muito bem pensado, porque deixa já por si no leitor um indício de suspense.
Em segundo lugar, considero de uma grande inteligência a forma como descreves todo o ambiente em torno do abandono do pai: "O lugar do pai na mesa ficou vazio. Os fatos do pai desapareceram. O jornal do pai deixou de vir regularmente. A cama grande passou a ter uma só almofada. O cheiro desagradável e insistente dos cigarros da mãe passou a empestar a casa dia e noite"; assim como a forma que, por outro lado, deixas bem patente a desgraça da mãe depois de ter perdido o marido: "A mãe estava ali mas não parecia viva. Os olhos comiam-lhe a cara toda, as saias dançavam nas ancas magras e apareceram-lhe duas pequenas rugas obstinadas no canto da boca. Emocionalmente perturbada não conseguia gerir os acontecimentos".
Por último, adorei o modo como a personagem principal, Diana, reage a todas estas emoções que revolucionaram as vidas destas três personagens, porque ela faz-se passar por despercebida e até revela alguma imaturidade no momento em que o pai tenta falar com ela sobre a separação, deixando bem claro que o tempo tudo cura!
Apenas um conselho: gostava de ler novamente a história com aspectos mais descritivos da relação que a personagem tinha com os progenitores, e a transformação ao longo dos anos.
Tirando isto, digo-te com toda a honestidade, é um conto muito bem construído e com uma história capaz de envolver qualquer pessoa!
Parabéns :)
Beijinhos,
Tânia Almeida, nº.38063