Conto Individual 1ª Versão
Um castelo de areia é trabalho para meia hora: um balde de areia molhada, um punhado de areia seca, uma pá desajeitada manobrada com arrebatamento infantil – é o que basta. É um trabalho solitário, mas feito com orgulho.
Um forte, no entanto, é algo diferente. Exige trabalho de equipa, esforço ininterrupto – e engenho. Não se desfaz com a mesma desfaçatez com que se pisa um castelinho; deve ser construído longe de trilhos de pegadas e rastros de embalagens de gelados, pelo sim, pelo não. Os miúdos afastam-se com as suas pás roxas e ancinhos verdes e os seus baldes de plástico barato; os gritos que os seguem («Põe o chapéu! Anda pôr protector! Não te afastes!») são engolidos pelo marejar e pelos bramidos das gaivotas. Sendo assim, não é de estranhar que o primeiro guincho tenha sido de surpresa e desolação – não de horror – quando o cadáver descolorado, impelido por uma onda repentina, veio derrubar as ameias de areia.
Numa fria sala de jantar inundada de sol, Marcela dobra cuidadosamente o jornal e fita-me, pensativa; com o queixo apoiado na mão, observa-me a tomar café. Olho-a, franzindo a testa, mas a sua expressão meditativa não se altera. Suspiro e pouso a chávena.
“Que tens?,” pergunto, demasiado ensonada para me lembrar que Marcela nunca responde a uma pergunta directa.
Ela sorri levemente e, sem deixar de me fitar, estende a mão para remover a garrafa de whisky do alcance de Jaime, que a fita resignado.
“Já leste o jornal?,” pergunta-lhe, desviando finalmente o olhar de mim.
Jaime grunhe algo vagamente humano.
“A Marta morreu.”
A mente é um lugar estranho. Estou em pânico, claro, o que é, que sabes, como é que o mundo desaparece quando fechamos os olhos, mas não, «A Marta morreu». No entanto, este pânico é uma combustão isolada, compartimentada; registo, em câmara lenta, o efeito da causa: a cara de Jaime, mudando de flacidez bêbada à luz da manhã para um alerta agoniante; os olhos de Marcela, estreitando como os de um gato a ronronar de prazer, à medida que a sua própria mente compartimentada analisa os efeitos das suas palavras em mim.
Ergo as sobrancelhas e levo de novo a chávena à boca, cautelosa para que a mão não me trema.
“Isso não veio no jornal de hoje,” arrisco.
Marcela sorri inocentemente.
“C-como?,” balbucia Jaime.
“Afogada,” responde-lhe Marcela, serenamente.
Suicida, – tal qual um animal tenro prestes a saltar para um tanque de tubarões, a Marcela sempre me intimidou, mas nunca assim – corrijo-a:
“Com o pescoço partido. Atiraram-na para a água... depois.”
A cabeça de Marcela volta-se para mim tão depressa que me sinto zonza, mas não é de bom-tom vomitar à mesa do pequeno-almoço.
“Como é que soubeste?”
“Foram dois polícias a minha casa, anteontem. Fizeram-me perguntas sobre a Marta.”
Marcela faz um estalido com a língua, aborrecida.
“Porquê a ti?”
Encolho os ombros e faço uma careta. Os meus joelhos batem um contra o outro.
“Encontraram a minha morada e o meu nome na agenda em casa dela, como contacto de emergência.”
“Que burra!,“ exclama Marcela, ligeiramente divertida, sobressaltando Jaime.
Encolho os ombros de novo e levanto-me. O Jaime olha para mim; os seus olhos remelosos e injectados de sangue alternam entre fitar-me e fixar um qualquer ponto da sala; geme uma litania de murmúrios desconexos. Marcela comprime os lábios num trejeito juvenil e pede-me o telefone com um gesto.
“Crisântemos ou gladíolos?,” pergunta, enquanto marca um número. “Não, lírios, não é? Lírios brancos. Sim, acho que é adequado. É o usual, não?”
A Marcela tem um talento especial para dizer certas palavras e mudá-las na sua boca até que são as sílabas certas mas a palavra é outra, soa a outra. Como “usual”; hoje queria dizer “vulgar”. Assim como Marta fora “usual” para Marcela. O meu estômago crispa-se; uma película de suor cobre-me a nuca.
“Para quê?,” pergunto, a minha voz sumida de medo. Jaime solta um ganido patético.
“Para que havia de ser, tonta? O funeral. Está aí, na secção de óbitos,” disse Marcela, empurrando o jornal na minha direcção. Afastei-me da mesa com um safanão e corri para fora de casa, uma voz polida e distante a seguir-me, encomendando coroas e ramos.
Com a testa encostada ao rebordo do lavatório e uma mão debaixo da torrente de água fria conto-me uma história, Era uma vez um trio de abutres que apreciava carne humana.
Quando encontrei a Marta pela primeira vez ela ainda não despira aquele olhar arregalado de rato do campo; acho que foi isso que me chamou a atenção. Apresentei-me sem lhe dar tempo de pensar porque é que uma desconhecida lhe falava com tanto à vontade; empurrei-a para a frente da Marcela e do Jaime que a olharam de alto a baixo, franzindo o sobrolho. Marcela soltou uma gargalhada que fez com que Marta corasse, e não lhe prestou mais atenção.
As novidades desfilavam em frente de Marta como taças de champanhe fresco em tabuleiros de prata, e ela bebia cada uma até à última gota. Os seus olhos arregalavam-se na ânsia de devorar o mundo que eu lhe apresentava: nunca percebeu que, na verdade, era ela a ser devorada – porque, na verdade, eu e os meus amigos não passamos de sanguessugas. Pegamos nestes pedaços de almas de anjos, essa partícula que brilha nos olhos de pessoas como a Marta, fazemo-los girar, e girar e girar ao ritmo hipnótico daquilo a que chamamos vida, mas que é apenas uma morte adiada. Quando estamos fartos, quando a Marcela começa a bocejar e eu sinto um formigueiro familiar de impaciência e insatisfação, a música cessa – esprememos esses bocados de brilho nos nossos punhos e esmagamo-los sob os nossos saltos e ignoramos os padrões que o seu sangue desenha no passeio e rimo-nos se eles guincham por misericórdia – a música cessa e amanhã é outro dia, todos os dias.
Há que entender: neste mundo em que vivo, no mundo que é de Marcela e que nunca foi de Marta, ter uma consciência não tem utilidade prática. Isso é importante: há que percebê-lo pois é uma desculpa e uma razão, embora sejam apenas remendos em trapos sujos.
Marta engolia as luzes da cidade e erguia o copo para mais; rodopiava nos vestidos brilhantes que eu lhe arranjava, criando redemoinhos de cores violentas no néon preto e branco das nossas vidas mudas. Ela estendia a mão como uma criança para qualquer coisa com o potencial de a divertir e isso era tudo.
Esmagámo-la. E rimos e rolámos pelo chão sufocados no nosso histerismo, como hienas humanóides – como abutres. Ela queria sugar a vida até à medula – morreu numa noite sem nuvens: lançada ao mar com o pescoço partido. O caso arrastou-se e acabou por ser arquivado por falta de provas.
Semanas depois daquela manhã em casa de Marcela, o Jaime evaporou-se. Passaram-se dois anos: aguardo apenas o dia em que, no teatro ou num dos restaurantes preferidos de Marcela, alguém sussurrará no assento atrás de mim que o estuporado do Jaime Olivier finalmente sucumbiu à maior de todas as ressacas; uma pessoa não pode ser mais sóbria que a morte, e mesmo Jaime não poderá fugir dela para sempre. Marcela ainda é a mesma, claro que sim. Que cinco gerações depois de mim murchem e se desfaçam em cinzas e pó e nada, antes que da sua cabeça brote um único cabelo branco, pois claro que sim.
Nunca mais falámos sobre a Marta. A suspeita é um cancro ulceroso e eu sou apenas humana; as pessoas que, como a Marcela, se habituam a ser adoradas, dificilmente deixam que coisinhas burras e usuais como a Marta afastem os seus idólatras.
Há meses entrei num bar de jazz pela primeira vez em três anos. A Marcela diz que foi apenas uma coincidência; eu chamo-lhe destino – mas não à sua frente. Aquelas luzes púrpuras e negras sempre me agoniaram; o meu coração bate mais rápido ao som daquela música; cada pêlo no meu corpo se arrepia; parecem soldados numa parada, nos meus braços com pele de galinha. É como se o ritmo me tomasse o pulso e o acelerasse com qualquer propósito desconhecido; a minha mente confunde-se com as notas quentes e profundas e os meus nervos não ficam em melhor estado. Marcela diz que tudo não passou disso – de nervos.
Reconheci logo a melodia; Marta adorava-a: sentia pela música jazz uma adoração apaixonada de amantes à distância. Voltei-me para lhe dizer que não podia acreditar que não estivesse ainda farta; senti um espasmo violento – como se todo o meu corpo fosse um elástico demasiado esticado a estalar – quando percebi que estava a conversar com um candeeiro. Corri para fora do bar encharcada em suor e apenas quando cheguei a casa me apercebi de que havia lá deixado o meu lenço vermelho. Foi uma pena: a Marta sempre adorou aquele lenço.
Fez anteontem quatro anos e sete meses desde que «A Marta morreu». Não conto os dias; perco o fio à meada facilmente; falta pouco para que deixe de contar os meses também.
A Marcela decidiu levar-me para a casa do lago; disse que devia antes internar-me num hospício, mas ia fazer uma última tentativa. A Marcela adora o lago – é fácil perceber o quanto ela gosta de algo ou alguém pelo tempo que gasta a insultá-los. Como quando lhe peço a bóia vermelha grande: diz que sou uma tonta preguiçosa e que se a encher de limos nem preciso de voltar para casa, mas empresta-me sempre. É uma mulher magnífica, a Marcela, claro que sim.
Devo ter adormecido, deitada na borracha quente da bóia, com o sol nos olhos e a água a morder-me a ponta dos dedos; a Marcela diz que sim. Devo ter adormecido porque a cara da Marta a olhar-me fixamente do fundo do lago é um absurdo.
A Marcela diz que estou a começar a enervá-la.
Hoje à noite o Jaime bateu à porta. Tinha os olhos vermelhos, barba de uma semana e cheirava como se não visse um duche há ainda mais tempo. Olhou para mim a fungar e começou a carpir como uma velha desdentada; a Marcela bateu-lhe. A marca ficou, vermelho-raiva no seu rosto apatetado. A Marcela é muito forte para uma mulher tão sofisticada; acreditei que era uma deusa quando pela primeira vez a vi.
O rosto da Marta fitou-me do lume da lareira.
Perguntei-lhe. Perguntei-lhe, Marta, perguntei-lhe se te tinha morto. O Jaime tremeu e olhou para Marcela, como que a implorar, mudo. A lenha rangeu e, aos meus ouvidos, soou como ossos a quebrarem.
Diana Paulo, nº 41211
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