Queridos alunos:
Conforme prometido, contactei a revista Os Fazedores de Letras, da FLUL, com a proposta de publicarem o nosso conto colectivo. (Só recebi dois poemas manifestos e penso que o conto colectivo representa melhor a voz da turma, sobretudo pela experiência de autoria partilhada.)
Mantenham-se atentos à revista no próximo ano lectivo. Pode ser que estejam lá!
Saudações SOLares
04/07/11
Poema MANIFesto 2
Manifesto do Coiso
Manifesto do Coiso
Como desfazermo-nos de tudo o que é enguia
Para inícios de dias ideais?
Esqueçam as enguias
peguem numa tigela
e enfardem-se em cereais.
Tantos mitos e manias
que não servem para nada!
Graças ao odor das enguias
emancipei-me da minha namorada.
Cada homem ele próprio, uma voz da humanidade.
Cada homem ele próprio, saia rodada de ideologias.
Cada homem ele próprio, um acorde em desacorde.
Tantos mitos e manias
que não servem para nada!
Diogo Esteves, Ricardo Rodrigues e Bruno Jacinto
Manifesto do Coiso
Como desfazermo-nos de tudo o que é enguia
Para inícios de dias ideais?
Esqueçam as enguias
peguem numa tigela
e enfardem-se em cereais.
Tantos mitos e manias
que não servem para nada!
Graças ao odor das enguias
emancipei-me da minha namorada.
Cada homem ele próprio, uma voz da humanidade.
Cada homem ele próprio, saia rodada de ideologias.
Cada homem ele próprio, um acorde em desacorde.
Tantos mitos e manias
que não servem para nada!
Diogo Esteves, Ricardo Rodrigues e Bruno Jacinto
Poema MANIFesto 1
MANIFESTO ANTI-MANIFESTOS COM RIMA (COMO É PRÓPRIO DA POESIA)
Em que é que este verso não é um manifesto?
E por que havia de ser uma manifesto?
A poesia não se manifesta.
A poesia é.
E que não haja Marinettis
Almadas nem confettis
(Merda, que rima terrível
Vamos recomeçar.)
O Dantas é o maior
E se escreve mal, o que tem?
Não gasta o seu suor
A dizer mal de ninguém.
E tu Almada
Que não vales nada
Pára de dizer que não és assim,
Somos todos assim.
Todos somos ciganos
E tu não és excepção
És feio como os anos
E cheiras mal... ou não?
E o Álvaro, coitadinho
De quem ninguém tem pena
Maldito protestozinho
Ultimatum de alma pequena.
Não é preciso ir para o Rossio
Para se ser pantomineiro.
Basta ser-se pantomineiro
E escrever manifestos.
Ou ser como o Almada
Mas isso não tem piada.
E pronto.
E ponto.
António Seabra
Marcos Sousa Guedes
Joana Maria
Filipe Gomes
Em que é que este verso não é um manifesto?
E por que havia de ser uma manifesto?
A poesia não se manifesta.
A poesia é.
E que não haja Marinettis
Almadas nem confettis
(Merda, que rima terrível
Vamos recomeçar.)
O Dantas é o maior
E se escreve mal, o que tem?
Não gasta o seu suor
A dizer mal de ninguém.
E tu Almada
Que não vales nada
Pára de dizer que não és assim,
Somos todos assim.
Todos somos ciganos
E tu não és excepção
És feio como os anos
E cheiras mal... ou não?
E o Álvaro, coitadinho
De quem ninguém tem pena
Maldito protestozinho
Ultimatum de alma pequena.
Não é preciso ir para o Rossio
Para se ser pantomineiro.
Basta ser-se pantomineiro
E escrever manifestos.
Ou ser como o Almada
Mas isso não tem piada.
E pronto.
E ponto.
António Seabra
Marcos Sousa Guedes
Joana Maria
Filipe Gomes
O CONTO colectivo (versão final)
"A verdade é que eu estive sempre convencida de que o meu casamento com o primo António não ia durar muito tempo, mas também não podia imaginar que as coisas se passassem como aconteceu. A razão por que mesmo assim me deixei embarcar neste projecto claramente insensato tem a ver com a predição desabusada de uma cigana que um dia, na feira de Guadalupe, leu na minha mão que havia de viver sozinha até aos oitenta anos, depois de ter rejeitado um homem que me havia de fazer muito feliz. Nunca acreditei em bruxos e videntes mas verifico amiúde que acertam em cheio, pelo que convém desmascará-los quanto mais cedo melhor."
Nunca irei esquecer aquela tarde em Guadalupe. Sinto o cheiro adocicado da feira, o sol na pele e oiço o vozear. Consigo cheirá-lo, senti-lo e ouvi-lo como se estivesse ao meu lado. Miguel era tudo o que eu desejara e bastante mais. Nos meus vinte anos nunca conhecera um homem como ele. Recordo bem o seu rosto: uma ligeira preocupação enrugava-lhe a testa, o sobrolho franzido adivinhando conspiração. Nos seus olhos negros os enigmas do universo, na sua boca um segredo vital. Deixou-me deslumbrada.
Com o primo António nunca foi assim. O meu marido é um homem de bem, dedicado aos negócios, aos amigos e ao mundo. O nosso casamento é um contrato bem sucedido. E que mulher não deseja um homem estável?
O primo rodeia-se de livros de economia, mantendo-se em constante aprendizagem, escrevinhando, sempre que está por casa, no que gosta de chamar "o meu livro de contas". Também Miguel escrevia, palavras que nunca li.
Nunca entendi a qual dos dois se destinavam as palavras da bruxa.
Mergulho numa constante incerteza. Como seria a minha vida se nunca me tivesse juntado ao António? Teria casado com o Miguel? Provavelmente não. O Miguel respirava liberdade, amava em liberdade.
Mas se nunca me tivesse casado? Será que teria voado para mais perto dos meus sonhos? Sempre quis viajar, por tempo indeterminado, sem destino marcado. Até hoje, na realidade, todas as minhas viagens não passaram de turismo.
Cinco da manhã, levantei-me, sem ter pregado olho. Precisava de repensar a minha vida. Talvez voltando a Guadalupe encontrasse a chave das respostas que procurava.
Desembarquei e senti novamente aquele cheiro, aquele vozear, como se o tempo não passasse ali. Fiquei hospedada no mesmo hotel, onde também nada mudara. Recostei-me na cama, peguei no jornal e foi, então, que li a notícia anunciando a abertura da Feira de Guadalupe.
Mais abaixo, destacava-se um pequeno anúncio:
“Estás só!
Mas não é demasiado tarde. Procura-me!
Estas palavras são para ti.
Aquela que avisa, aquela que ajuda,
A cigana da feira.”
Aquilo era para mim. Só podia ser para mim! Não que acredite nestas coisas, mas o certo é que tinha vindo até Guadalupe, obedecendo a um estranho impulso. Nem imaginava que a feira ainda existisse. No entanto, ali estava ela, no sítio onde tudo começara…
Iria lá nem que fosse para confrontar a cigana, dizer-lhe que se enganara. Por outro lado, ela não estava completamente enganada. E quem sabe, talvez o encontrasse...
Preparei-me para sair. Sabia exactamente o que vestir! Já não tinha vinte anos, mas estava fora de questão usar a roupa sofisticada com que enchera o armário. Acabei por escolher o vestido verde. Olhei-me ao espelho: o vestido parecia ter envelhecido. Já não me assentava como dantes. Vesti o preto e saí.
Não demorei a chegar ao meu destino. Parecia que o tempo não tinha passado por aqueles lados. A feira continuava igual. Ao entrar, vieram-me ao pensamento todos os bons momentos que ali tinha passado com o Miguel.
Percorri cada recanto da feira na busca do meu sonho. E de repente, não podia acreditar que ele estava ali mesmo, admirando um lindo colar de pedras vermelhas. Com o coração desordenado, aproximei-me dele e sussurrei-lhe:
— Tu aqui?
Sobressaltou-se e deu um passo atrás, franzindo o sobrolho. Imitei-lhe os gestos: não era ele. Uma centelha de lucidez fez dissipar o nevoeiro que me nublara a razão e levara a ver naquele homem o retrato vivo de Miguel. Esbocei um sorriso constrangido e afastei-me.
Ainda aturdida, percorri o perímetro, penetrando por entre o bulício e perscrutando cada tenda por que passava. Encontrei a barraca da cigana na periferia da feira, meia escondida atrás de um carrossel. À entrada, uma mulher jovem segurava uma criança irrequieta pelo braço, tentando limpar-lhe a boca suja.
— Desculpe, procuro uma senhora que costumava ler a sina aqui.
A mulher olhou-me com desconfiança e soltou o miúdo.
— Ah, a minha mãe. Não ‘tá não. Ela agora deu em ler a sina lá no circo.
Tentei saber mais, mas ela virou-me as costas, entrando na barraca. Pus-me a caminho, perguntando aqui e ali pelo circo da cidade. Quando o encontrei, ignorei o aviso do vendedor de bilhetes de que o espectáculo já estava a terminar e entrei. Os artistas surgiram de braços abertos, agradecendo ao público com sinceras vénias. Dei uma salva de palmas e levantei-me, determinada em confrontar a vidente.
Sem pudor, dirigi-me à zona das caravanas e vi a cigana entrar para uma delas. Bati à porta; não ouvindo resposta, entrei. Vi-a em frente ao espelho, retirando um véu escuro que revelava um rosto sulcado de rugas. Cruzámos olhares no espelho.
— Quer que lhe leia a sina, é?"
— Para dizer o que me disse há vinte anos atrás? Agradeço, mas não. Você estava enganada — disse-lhe calmamente.
— E menti?
— Diga-me você.
Deu um sorriso de dentes podres e anunciou:
— Tenho fome.
— Não desvie o assunto. Explique-se.
— Sim, mas tenho fome — insistiu a velha.
Sem outra saída, levei-a à tasca mais próxima. Pediu e repetiu o prato do dia, comendo com sofreguidão. Quando acabou, lambeu os dedos, soltando um arroto satisfeito.
— Você estava enganada, sabe? — arrisquei, já pouco segura.
Ela levantou-se, pegando no chapéu de palha e no cajado que trouxera. Os seus lábios sumidos rasgaram-se num esgar desditoso.
— Não me parece.
— Como assim, não lhe parece?
— Você é que deve ter tentado enganar o destino, de certeza! – disse, olhando em volta como se a minha presença fosse aquilo que naquela tasca havia de menos agradável. Dei por mim a erguer a voz e, finalmente, disse tudo aquilo que nunca ousara confessar a ninguém.
— Não ia ficar sentada à espera de uma desgraça. Casei-me com o meu primo, quando ele me propôs… Não o rejeitei. Fiz o que estava certo, mas mesmo assim não sou feliz.
A minha evidente frustração mereceu, por fim, uma frase mais longa do que eu a julgara capaz de produzir.
— E estava à espera de quê? Pensava que depois do casamento os pássaros cantavam de manhã e havia festa à noite? — agitou os braços no ar. — Você não tomou nenhuma decisão importante. Quis contrariar-me… ser rebelde. Caiu n’asneira que tentou evitar! Ah, mas não vou dizer mais nada…
Surpresa, vi-a dar um passo adiante. Quando estava certa de que ela me iria deixar sozinha ali, ouvi novamente a sua voz e segui-a com o olhar.
— Isto tem muita graça, tem. Vocês fogem, fogem… — acrescentou, desenhando um floreado no ar com um dedo. — Tentam ir contra o que ‘tá escrito — deixou a palma de uma mão cair sobre a outra, num sonoro clap. — Mas não há volta a dar.
Com isto, saiu pela estreita porta, com mais agilidade do que seria de esperar de uma mulher da sua idade. Fiquei de olhar fixo no vazio onde estivera há pouco a vidente. Sabendo que ela não voltaria continuei, ainda assim, esperançosa por algo mais do que aquela misteriosa explicação. Na minha cabeça ressoavam, sem parar, aquelas últimas palavras: não há volta a dar.
Sozinha na mesa, escapou-me uma frase dos lábios, sem qualquer permissão, numa voz que quase não reconheci.
— Sim, há.
A caminho do hotel não consegui deixar de pensar no encontro com a vidente. Chegada ao quarto, liguei a televisão e telefonei a pedir uma garrafa de champanhe.
O maior problema é o facto de eu me ter apegado à vida rotineira, e agora perder-me nessas ruas repletas de futilidades e restos de uma vida imprevisível. Um pormenor que nem a própria vidente deve ter previsto. Não obstante, deve ter razão e isso fez-me ficar furiosa o suficiente para pensar que o casamento com o meu primo não passou de uma tremenda perda de tempo. Não há volta a dar. Por mais que me tentasse, não lograva abstrair-me desta frase. Era um pensamento constante, daqueles que não envelhecem na memória. Apesar de tudo, acreditei que havia um caminho diferente.
Chegado o empregado com a garrafa, dei início a uma das noites mais lúcidas da minha vida. Aquele pensamento perpassava-me pela cabeça numa noite que prometia ser longa. O álcool aliado ao sono dificultava a passagem pelo ondulante corredor. Liguei a televisão para distrair as horas que não passavam. Por entre novelas, filmes e séries, parei num canal que quase me fez deixar cair o comando da mão. Um vidente propunha revelar o futuro dos telespectadores. Pego de imediato no telefone a fim de comprovar a veracidade daquilo que a sibilina previra.
Uma senhora simpática ocupou-me do outro lado da linha, informando que aguardasse. Já aguardei tanto tempo na minha vida, minha senhora, disse para mim mesma, e talvez isto tudo não passe de mais uma tentativa inútil. Se o vidente me destinar um futuro assombroso, pecarei por me afundar em lágrimas, fechada e enclausurada no meu castelo a sete chaves. É comum nos bruxos: mexem na vida das pessoas. Enquanto esperava continuava a pensar no rumo que daria à minha vida.
O vidente finalmente atendeu, perguntando o meu nome e o que eu gostaria de saber sobre o meu futuro. Disse que me chamo Maria e que casei com alguém por conveniência, mas amava secretamente outro homem, então o que faço, fico no meu porto seguro ou lanço-me num mar desconhecido? O vidente ouviu a minha dúvida e ficou por alguns segundos pensativo, como se estivesse a captar uma mensagem do além.
Em seguida olhou para a câmara e respondeu com outra pergunta:
— O que está mais perto dos teus olhos?
Não soube o que responder.
— O auscultador? — arrisquei.
— Não… O mais próximo dos teus olhos é o teu
nariz.
Então acordei.
Doíam-me as costas e o pescoço. Não sei porque é que insisti em deitar-me naquele sofá. Levantei-me para espreitar o frigorífico mas estava vazio. Eram três da manhã, bebi um copo de água e enfiei-me na cama. Deitada, olhava para o tecto. Sentia-me desperta e com vontade de fazer alguma coisa. Peguei num livro para ver se o sono voltava, mas não consegui passar da quinta linha. Pousei o livro e comecei a reflectir no sonho que tivera. Será que pôr a felicidade nas mãos de outros me fará feliz? Não estará já na hora de prestar mais atenção a mim mesma? Acho que estou farta de que a minha vida seja guiada pelos outros.
Não é tarde, nem é cedo! Está na altura de tomar as rédeas da minha vida!
Mas e o António? É um bom homem, mas definitivamente não é o MEU
homem. Vou ligar-lhe para ter uma conversa que já devíamos ter tido há muito tempo.
Num impulso decidido peguei no telefone para ligar ao António uma última vez. O telefone tocava ao ritmo do meu coração. Um toque, dois... Estarei a fazer a escolha certa? Três... Quatro... Como irá ele reagir? Cinco... Será que bebi demasiado champanhe? Seis... Acho que vou desligar. Silêncio.
A voz entediante do António respondeu do outro lado da linha. Depois de os cumprimentos habituais e das perguntas desinteressantes de sempre, arrisquei por fim revelar-lhe o verdadeiro motivo do telefonema. Fui porém interrompida por uma voz feminina que sussurrou:
— Quem é, amor?
Um incómodo silêncio pairou no ar durante alguns segundos, enquanto eu tentava perceber a origem daquela voz. De repente fez-se luz e dissiparam-se todas as dúvidas. Com efeito, não só eu estava melhor sem o António, como também ele estava melhor sem mim.
— Sabes, António, tomámos os dois a decisão acertada.
E desliguei, decidida enfim a voar para mais perto dos meus sonhos
E vou-me embora. Com a mala aberta em cima da cama, decido não levar muita coisa. Deixo o vestido verde comprado em Marrocos, ou deixo apenas o vestido e levo comigo o verde, esperando um futuro diferente. Deixo os chapéus, o primo António, a incerteza, os acessórios, o passado, os sapatos, o Miguel e Guadalupe. Assim fico com espaço para o que aí vem.
— Bem-vinda a bordo. O seu bilhete, por favor.
Entreguei a minha nova vida em forma de papel.
Recostada numa espreguiçadeira, vários tons de azul fundem-se no horizonte. Sinto a cabeça aliviada, pacífica como o oceano à minha frente. Pela primeira vez na vida estou sozinha e estou bem. Não preciso de ninguém! Basta-me este Martini gelado.
De repente, interrompendo os meus pensamentos, aproximou-se uma voz:
— Posso-me sentar?
Voltei-me. Olhos verdes lindíssimos, a barba bem aparada, um sorriso convidativo.
— Sim, claro.
Nunca irei esquecer aquela tarde em Guadalupe. Sinto o cheiro adocicado da feira, o sol na pele e oiço o vozear. Consigo cheirá-lo, senti-lo e ouvi-lo como se estivesse ao meu lado. Miguel era tudo o que eu desejara e bastante mais. Nos meus vinte anos nunca conhecera um homem como ele. Recordo bem o seu rosto: uma ligeira preocupação enrugava-lhe a testa, o sobrolho franzido adivinhando conspiração. Nos seus olhos negros os enigmas do universo, na sua boca um segredo vital. Deixou-me deslumbrada.
Com o primo António nunca foi assim. O meu marido é um homem de bem, dedicado aos negócios, aos amigos e ao mundo. O nosso casamento é um contrato bem sucedido. E que mulher não deseja um homem estável?
O primo rodeia-se de livros de economia, mantendo-se em constante aprendizagem, escrevinhando, sempre que está por casa, no que gosta de chamar "o meu livro de contas". Também Miguel escrevia, palavras que nunca li.
Nunca entendi a qual dos dois se destinavam as palavras da bruxa.
Mergulho numa constante incerteza. Como seria a minha vida se nunca me tivesse juntado ao António? Teria casado com o Miguel? Provavelmente não. O Miguel respirava liberdade, amava em liberdade.
Mas se nunca me tivesse casado? Será que teria voado para mais perto dos meus sonhos? Sempre quis viajar, por tempo indeterminado, sem destino marcado. Até hoje, na realidade, todas as minhas viagens não passaram de turismo.
Cinco da manhã, levantei-me, sem ter pregado olho. Precisava de repensar a minha vida. Talvez voltando a Guadalupe encontrasse a chave das respostas que procurava.
Desembarquei e senti novamente aquele cheiro, aquele vozear, como se o tempo não passasse ali. Fiquei hospedada no mesmo hotel, onde também nada mudara. Recostei-me na cama, peguei no jornal e foi, então, que li a notícia anunciando a abertura da Feira de Guadalupe.
Mais abaixo, destacava-se um pequeno anúncio:
“Estás só!
Mas não é demasiado tarde. Procura-me!
Estas palavras são para ti.
Aquela que avisa, aquela que ajuda,
A cigana da feira.”
Aquilo era para mim. Só podia ser para mim! Não que acredite nestas coisas, mas o certo é que tinha vindo até Guadalupe, obedecendo a um estranho impulso. Nem imaginava que a feira ainda existisse. No entanto, ali estava ela, no sítio onde tudo começara…
Iria lá nem que fosse para confrontar a cigana, dizer-lhe que se enganara. Por outro lado, ela não estava completamente enganada. E quem sabe, talvez o encontrasse...
Preparei-me para sair. Sabia exactamente o que vestir! Já não tinha vinte anos, mas estava fora de questão usar a roupa sofisticada com que enchera o armário. Acabei por escolher o vestido verde. Olhei-me ao espelho: o vestido parecia ter envelhecido. Já não me assentava como dantes. Vesti o preto e saí.
Não demorei a chegar ao meu destino. Parecia que o tempo não tinha passado por aqueles lados. A feira continuava igual. Ao entrar, vieram-me ao pensamento todos os bons momentos que ali tinha passado com o Miguel.
Percorri cada recanto da feira na busca do meu sonho. E de repente, não podia acreditar que ele estava ali mesmo, admirando um lindo colar de pedras vermelhas. Com o coração desordenado, aproximei-me dele e sussurrei-lhe:
— Tu aqui?
Sobressaltou-se e deu um passo atrás, franzindo o sobrolho. Imitei-lhe os gestos: não era ele. Uma centelha de lucidez fez dissipar o nevoeiro que me nublara a razão e levara a ver naquele homem o retrato vivo de Miguel. Esbocei um sorriso constrangido e afastei-me.
Ainda aturdida, percorri o perímetro, penetrando por entre o bulício e perscrutando cada tenda por que passava. Encontrei a barraca da cigana na periferia da feira, meia escondida atrás de um carrossel. À entrada, uma mulher jovem segurava uma criança irrequieta pelo braço, tentando limpar-lhe a boca suja.
— Desculpe, procuro uma senhora que costumava ler a sina aqui.
A mulher olhou-me com desconfiança e soltou o miúdo.
— Ah, a minha mãe. Não ‘tá não. Ela agora deu em ler a sina lá no circo.
Tentei saber mais, mas ela virou-me as costas, entrando na barraca. Pus-me a caminho, perguntando aqui e ali pelo circo da cidade. Quando o encontrei, ignorei o aviso do vendedor de bilhetes de que o espectáculo já estava a terminar e entrei. Os artistas surgiram de braços abertos, agradecendo ao público com sinceras vénias. Dei uma salva de palmas e levantei-me, determinada em confrontar a vidente.
Sem pudor, dirigi-me à zona das caravanas e vi a cigana entrar para uma delas. Bati à porta; não ouvindo resposta, entrei. Vi-a em frente ao espelho, retirando um véu escuro que revelava um rosto sulcado de rugas. Cruzámos olhares no espelho.
— Quer que lhe leia a sina, é?"
— Para dizer o que me disse há vinte anos atrás? Agradeço, mas não. Você estava enganada — disse-lhe calmamente.
— E menti?
— Diga-me você.
Deu um sorriso de dentes podres e anunciou:
— Tenho fome.
— Não desvie o assunto. Explique-se.
— Sim, mas tenho fome — insistiu a velha.
Sem outra saída, levei-a à tasca mais próxima. Pediu e repetiu o prato do dia, comendo com sofreguidão. Quando acabou, lambeu os dedos, soltando um arroto satisfeito.
— Você estava enganada, sabe? — arrisquei, já pouco segura.
Ela levantou-se, pegando no chapéu de palha e no cajado que trouxera. Os seus lábios sumidos rasgaram-se num esgar desditoso.
— Não me parece.
— Como assim, não lhe parece?
— Você é que deve ter tentado enganar o destino, de certeza! – disse, olhando em volta como se a minha presença fosse aquilo que naquela tasca havia de menos agradável. Dei por mim a erguer a voz e, finalmente, disse tudo aquilo que nunca ousara confessar a ninguém.
— Não ia ficar sentada à espera de uma desgraça. Casei-me com o meu primo, quando ele me propôs… Não o rejeitei. Fiz o que estava certo, mas mesmo assim não sou feliz.
A minha evidente frustração mereceu, por fim, uma frase mais longa do que eu a julgara capaz de produzir.
— E estava à espera de quê? Pensava que depois do casamento os pássaros cantavam de manhã e havia festa à noite? — agitou os braços no ar. — Você não tomou nenhuma decisão importante. Quis contrariar-me… ser rebelde. Caiu n’asneira que tentou evitar! Ah, mas não vou dizer mais nada…
Surpresa, vi-a dar um passo adiante. Quando estava certa de que ela me iria deixar sozinha ali, ouvi novamente a sua voz e segui-a com o olhar.
— Isto tem muita graça, tem. Vocês fogem, fogem… — acrescentou, desenhando um floreado no ar com um dedo. — Tentam ir contra o que ‘tá escrito — deixou a palma de uma mão cair sobre a outra, num sonoro clap. — Mas não há volta a dar.
Com isto, saiu pela estreita porta, com mais agilidade do que seria de esperar de uma mulher da sua idade. Fiquei de olhar fixo no vazio onde estivera há pouco a vidente. Sabendo que ela não voltaria continuei, ainda assim, esperançosa por algo mais do que aquela misteriosa explicação. Na minha cabeça ressoavam, sem parar, aquelas últimas palavras: não há volta a dar.
Sozinha na mesa, escapou-me uma frase dos lábios, sem qualquer permissão, numa voz que quase não reconheci.
— Sim, há.
A caminho do hotel não consegui deixar de pensar no encontro com a vidente. Chegada ao quarto, liguei a televisão e telefonei a pedir uma garrafa de champanhe.
O maior problema é o facto de eu me ter apegado à vida rotineira, e agora perder-me nessas ruas repletas de futilidades e restos de uma vida imprevisível. Um pormenor que nem a própria vidente deve ter previsto. Não obstante, deve ter razão e isso fez-me ficar furiosa o suficiente para pensar que o casamento com o meu primo não passou de uma tremenda perda de tempo. Não há volta a dar. Por mais que me tentasse, não lograva abstrair-me desta frase. Era um pensamento constante, daqueles que não envelhecem na memória. Apesar de tudo, acreditei que havia um caminho diferente.
Chegado o empregado com a garrafa, dei início a uma das noites mais lúcidas da minha vida. Aquele pensamento perpassava-me pela cabeça numa noite que prometia ser longa. O álcool aliado ao sono dificultava a passagem pelo ondulante corredor. Liguei a televisão para distrair as horas que não passavam. Por entre novelas, filmes e séries, parei num canal que quase me fez deixar cair o comando da mão. Um vidente propunha revelar o futuro dos telespectadores. Pego de imediato no telefone a fim de comprovar a veracidade daquilo que a sibilina previra.
Uma senhora simpática ocupou-me do outro lado da linha, informando que aguardasse. Já aguardei tanto tempo na minha vida, minha senhora, disse para mim mesma, e talvez isto tudo não passe de mais uma tentativa inútil. Se o vidente me destinar um futuro assombroso, pecarei por me afundar em lágrimas, fechada e enclausurada no meu castelo a sete chaves. É comum nos bruxos: mexem na vida das pessoas. Enquanto esperava continuava a pensar no rumo que daria à minha vida.
O vidente finalmente atendeu, perguntando o meu nome e o que eu gostaria de saber sobre o meu futuro. Disse que me chamo Maria e que casei com alguém por conveniência, mas amava secretamente outro homem, então o que faço, fico no meu porto seguro ou lanço-me num mar desconhecido? O vidente ouviu a minha dúvida e ficou por alguns segundos pensativo, como se estivesse a captar uma mensagem do além.
Em seguida olhou para a câmara e respondeu com outra pergunta:
— O que está mais perto dos teus olhos?
Não soube o que responder.
— O auscultador? — arrisquei.
— Não… O mais próximo dos teus olhos é o teu
nariz.
Então acordei.
Doíam-me as costas e o pescoço. Não sei porque é que insisti em deitar-me naquele sofá. Levantei-me para espreitar o frigorífico mas estava vazio. Eram três da manhã, bebi um copo de água e enfiei-me na cama. Deitada, olhava para o tecto. Sentia-me desperta e com vontade de fazer alguma coisa. Peguei num livro para ver se o sono voltava, mas não consegui passar da quinta linha. Pousei o livro e comecei a reflectir no sonho que tivera. Será que pôr a felicidade nas mãos de outros me fará feliz? Não estará já na hora de prestar mais atenção a mim mesma? Acho que estou farta de que a minha vida seja guiada pelos outros.
Não é tarde, nem é cedo! Está na altura de tomar as rédeas da minha vida!
Mas e o António? É um bom homem, mas definitivamente não é o MEU
homem. Vou ligar-lhe para ter uma conversa que já devíamos ter tido há muito tempo.
Num impulso decidido peguei no telefone para ligar ao António uma última vez. O telefone tocava ao ritmo do meu coração. Um toque, dois... Estarei a fazer a escolha certa? Três... Quatro... Como irá ele reagir? Cinco... Será que bebi demasiado champanhe? Seis... Acho que vou desligar. Silêncio.
A voz entediante do António respondeu do outro lado da linha. Depois de os cumprimentos habituais e das perguntas desinteressantes de sempre, arrisquei por fim revelar-lhe o verdadeiro motivo do telefonema. Fui porém interrompida por uma voz feminina que sussurrou:
— Quem é, amor?
Um incómodo silêncio pairou no ar durante alguns segundos, enquanto eu tentava perceber a origem daquela voz. De repente fez-se luz e dissiparam-se todas as dúvidas. Com efeito, não só eu estava melhor sem o António, como também ele estava melhor sem mim.
— Sabes, António, tomámos os dois a decisão acertada.
E desliguei, decidida enfim a voar para mais perto dos meus sonhos
E vou-me embora. Com a mala aberta em cima da cama, decido não levar muita coisa. Deixo o vestido verde comprado em Marrocos, ou deixo apenas o vestido e levo comigo o verde, esperando um futuro diferente. Deixo os chapéus, o primo António, a incerteza, os acessórios, o passado, os sapatos, o Miguel e Guadalupe. Assim fico com espaço para o que aí vem.
— Bem-vinda a bordo. O seu bilhete, por favor.
Entreguei a minha nova vida em forma de papel.
Recostada numa espreguiçadeira, vários tons de azul fundem-se no horizonte. Sinto a cabeça aliviada, pacífica como o oceano à minha frente. Pela primeira vez na vida estou sozinha e estou bem. Não preciso de ninguém! Basta-me este Martini gelado.
De repente, interrompendo os meus pensamentos, aproximou-se uma voz:
— Posso-me sentar?
Voltei-me. Olhos verdes lindíssimos, a barba bem aparada, um sorriso convidativo.
— Sim, claro.
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