09/06/11


Velocidade

A minha vida ultimamente anda um pouco atribulada, devido a uma série de más notícias que não me deixam propriamente bem e afectam o meu bem-estar mental.

Um dia, já confuso com as emoções que sentia – raiva, stress, vontade de espairecer, enfim – tive a ideia de pegar nas chaves do carro e desaparecer. O meu carro não é o que se pode chamar luxuoso: não tem ar condicionado, airbag, leitor de CD, nem jantes de liga leve. Tem um volante rijo, uma manete das mudanças lassa e muito pouco prática, uns bancos pouco confortáveis e uma suspensão… bem é melhor nem falar na suspensão.

Costumo chamar-lhe a minha caixa de fósforos, mas até um carro assim dá para sentir liberdade, a liberdade que só a velocidade traz. Pus a chave na porta já enferrujada, abri a fechadura, sentei-me no banco e liguei o motor. Nesse momento senti uma enorme tristeza pois o som do motor nada tinha em comum com aquele dos carros desportivos.

Pus o carro em ponto morto, acelerei o máximo, respirei profundamente e sorri. Estava na altura de sair dali, levantei o travão de mão, pus a primeira e comecei a minha perigosa viagem. Não parava no stop, na luz vermelha, nem na passadeira, não podia parar. Guiei até um local ermo, sítio de armazéns e fábricas, sem movimento, ideal para uma pequena brincadeira.

Acelerei a fundo, o carro ganhou velocidade e ao mesmo tempo que travava virei o volante. Uma marca circular de borracha queimada ficou desenhada no chão, depois de o carro se ter inclinado numa chiadeira. Soltei uma gargalhada – era o meu primeiro peão.

Abri a janela e senti o cheiro da borracha. Os subúrbios já não chegavam. Decidi ir para a auto-estrada. Liguei o rádio; um anúncio sobre pasta de dentes… mudei… outro anúncio sobre sabonete… mudei… um padre falava sobre a sociedade e a falta de fé das pessoas, era um programa religioso, deixei ficar.

A auto-estrada estava quase vazia; comecei a conduzir ainda mais depressa. No meu horizonte surgiu outro carro que ultrapassei, não sem antes lhe bater na traseira e lhe partir um farol. O outro condutor começou a gritar comigo, não o conseguia ouvir mas sabia que ele não dizia coisas agradáveis. Buzinou. Agarrado ao volante acelerei ainda mais sem, prestar a mínima atenção ao que acontecera.

Uns quilómetros à frente um carro da polícia mandava parar os condutores. Se não parasse cometia um crime, o meu primeiro crime na vida.

Senti um longo arrepio na espinha. O programa na rádio interveio, dizendo que a religião era a salvação. Tenho que admitir que não sou religioso, no sentido tradicional do termo, se bem que goste da ideia de uma vida para além da morte. Acelerei, cada vez mais decidido.

Um carro da polícia estava estacionado à beira da estrada com um radar a controlar a velocidade a que seguiam os condutores. Encostado ao carro estava um polícia que quase caiu quando passei por ele. Achei piada. Este entrou no carro de imediato, ligou a sirene e seguiu atrás de mim. Era mais rápido do que eu, tinha um carro mais potente. Em dois tempos estávamos lado a lado. Para me tentar parar, ia contra o meu carro que se ia desfazendo a cada encontrão. Eu fazia o mesmo, se bem que o resultado fosse pouco eficaz.

O outro carro era mais largo e mais estável, o meu não ia aguentar aquilo muito mais tempo. Felizmente, ao longe surgiu uma portagem e na minha cabeça uma ideia. A passagem era demasiado estreita, só havia espaço para um carro. Travei bruscamente! O polícia seguiu em frente, travou também e fez marcha-atrás, nessa altura passei por ele a toda a velocidade em direcção à portagem. O homem da cabine abriu a porta e fugiu à medida que eu me aproximava. A cancela partiu com uma facilidade incrível. Soltei uma grande gargalhada, pois aquilo lembrava um palito a estalar.

Respirei profundamente e olhei para o espelho retrovisor, o carro da polícia estava de novo no meu alcance. Reparei também que isso era um problema menor: ao longe a polícia tinha formado uma barreira com carros. Tinha chegado ao fim, não havia saída.

Peguei no telemóvel e escrevi uma mensagem: “ Mãe, a consulta foi pouco animadora. Doença a progredir. Cancro avança até paralisia. Fui dar uma volta de carro. Bj.”.

Na rádio, a conversa era sobre a vontade divina que controla tudo. Concordei, naquele momento a decisão de viver já não me pertencia. Acelerei a fundo, estava cada vez mais próximo da barreira. Alguns polícias perceberam que eu não ia parar e começaram a fugir, outros com o rosto sulcado pelo medo procuraram abrigo atrás dos carros. No último segundo, fiz uma viragem brusca. O carro capotou, foi contra um muro e ficou completamente esmagado. Com o choque, bati com a cabeça no volante e via sangue por todo o lado.

Inclinei-me e encostei a cabeça no assento. Reparei que parte do sangue que escorria da minha cara estava mais claro, foi então que percebi que estava a chorar.


Bruno Jacinto, nº39099

1 comentário:

  1. Bruno gostei muito do teu conto mas esperava outro final. Não achei muito real, que naquela velocidade e com toda aquela adrenalina, o personagem conseguisse escrever uma mensagem, contudo, compreendo que foi a maneira que encontraste de explicar a fúria com que o personagem vive o momento da viagem. Acho que a história tem pernas para criar um final mais surpreendente ou mais consistente, se é a morte que ele procura, são apenas lágrimas que nos deixa? Que sentimentos ou pensamentos teria ele um pouco antes? Falta qualquer coisa... De resto, felicito-te pelo conto, porque fiquei agarrada até ao fim.

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