05/04/11

Conto Individual - 1ª Versão - Márcia Bernardo

Abriu a porta de casa, alargando o nó da gravata que lhe asfixiava o pescoço. Passou os olhos desfocados pela correspondência, alternando a atenção entre as contas do gás e as contas da luz. Suspirou, desinteressado, e atirou-as para cima do móvel da sala. A televisão estava ligada, uma novela pouco imaginativa e igual a tantas outras passava no canal que a sua mulher estivera, decerto, a ver. Abanou a cabeça ao pensar na falta de gosto da esposa. Percorreu a pequena distância entre a porta de mogno e o sofá de pele branca que a mulher tanto insistira em comprar, apesar de ter de gastar balúrdios para mandar lavar os estofos de dois em dois meses. De onde estava, conseguia ver a cabeça da esposa e um pouco das suas costas, coladas ao encosto do sofá. Surpreendeu-o o facto de ela não se ter apercebido da sua presença atrás de si. Adormeceu, com certeza. Deu mais três passos. Estava agora em frente a um corpo pálido e sem expressão. Fios de sangue – demasiado coagulado - cobriam-lhe os lábios, dando-lhes a cor que haviam perdido. Ao lado dos braços inertes da mulher encontrava-se uma faca de cozinha coberta do mesmo líquido. O homem agarrou-lhe o corpo, manchando a camisa. Abanou-a freneticamente à espera de uma reacção, de um riso trocista, de uma gargalhada envenenada que denunciasse uma piada de mau gosto, mas só ouviu o som dos próprios sapatos a chapinhar no sangue que já escorrera para a carpete e para debaixo do sofá.

Adormeceu, com certeza. Convenceu-se, largando o corpo sem vida num impulso. Tremendo com as mãos, procurou as chaves do carro no bolso. Deixou-as cair uma, duas vezes. Quando finalmente teve mão nelas, pegou no casaco grosso que deixara esquecido no bengaleiro e abotoou-o até acima. Rodou a maçaneta da porta, apoiando-se nela, o corpo a resvalar para a direita, a vacilar para a esquerda, enquanto tentava manter o equilíbrio físico e mental. Um vizinho cumprimentou-o à saída do apartamento com um sorriso cordial.

“Boas! Vai sair a estas horas? A previsão é de chuvas fortes para a zona centro.”

Olhou para o vizinho, confuso. Não lhe respondeu.

Ignorou o homem de terceira idade e meteu-se dentro do carro, tentando inserir, à primeira, as chaves na ignição, riscando um pouco o rebordo desta ao falhar algumas vezes. Durante momentos, teve de se concentrar para saber de que lado ficava o acelerador. Decidiu-se pelo lado direito e arrancou, a mão suada e ensanguentada a escorregar do manípulo das mudanças. Não tinha um destino, mas iria para bem longe até a sua mulher acordar, porque ela adormecera, com certeza.

Dedos nervosos batiam na parte superior do volante, o suor escorria-lhe pela cara, os olhos moviam-se depressa demais para que pudesse olhar para algo sem se sentir enjoado. Com uma pancada seca esmurrou o botão do rádio, ligando-o. Uma música com um tom demasiado pop emergiu, mexendo-lhe com os nervos. Não mudou a estação, suportou a música até ao fim, até se seguir outra e outra e outra. Rangeu os dentes, as luzes néon da cidade pintavam-lhe alucinações fantasma nas córneas, encandeando-o. O semáforo vermelho obrigou-o a parar. Parar era mau, precisava de se manter em movimento. Pensou na mulher, pensou no sangue. Pensou na mulher e no sangue. Pensou no sofá manchado e no dinheiro que teria de gastar para o voltar a ver branco. Pensou que a mulher era uma desmiolada por adormecer e deixar a televisão ligada, a conta da luz a aumentar. Parar era mau, precisava de se manter em movimento. Num reflexo brusco que, num outro dia qualquer, lhe teria deslocado a rótula do joelho, pisou o pedal direito a fundo, com toda a força que tinha e não tinha. Foi metendo as mudanças, uma por uma, levando o carro ao limite e ignorando todos os sinais vermelhos por que passou. A mão esquerda começou a doer-lhe quando a locutora da rádio anunciou o vencedor de dois bilhetes para um concerto de sabe-se lá quem. O motor rugia como uma besta furiosa que se encontra prestes a atacar a qualquer momento, mas o homem não lhe fez caso até ouvir o que lhe pareceu ser o som de algo a ranger ou a desaparafusar-se. Julgou ouvir a voz da mulher e cerrou os olhos, segurando com firmeza no guiador, até que sentiu algo dentro de si a estalar.

“Cheguei.” A voz da esposa soou a partir da sala. “Temos de arranjar a maçaneta da porta, este ranger já começa a ser incómodo.”

De boca entreaberta e mãos cerradas, não à volta de um volante, mas de uma faca suja por pedaços de legumes cortados, o homem atónito analisava o próprio reflexo na janela embaciada da cozinha. Não se atreveu a encarar logo a mulher. Em vez disso, reparou na mão esquerda, um corte na sua palma tinha sangue coagulado. Sentiu-se zonzo.

“A previsão é de chuvas fortes para a zona centro.” Desviou a atenção da mão para a televisão, onde um homem velho apresentava as previsões do tempo. Sentiu um remoinho levar-lhe a sanidade e observou a mulher, que mudava o canal da televisão, e pediu ajuda com o olhar até ela reparar em si. Esta esboçou-lhe um sorriso de censura contida.

“Querido, já tomaste os comprimidos?”

Ele preparou-se para responder, quando emergiu da televisão o som de uma música demasiado pop para o seu gosto.

5 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Como eu adorei este conto :D
    Parabéns, Márcia! *

    @Tim

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  3. Gostei bastante deste conto que me surpreendeu com um final inesperado.

    Este narrador não parece estar
    muito bem, mas isso torna a história interessante, misturando realidade e imaginação.

    Embora esteja muito bem escrito acho que podias rever algumas frases:

    "...finalmente teve mão nelas..." (ao referir-se às chaves).

    "...coberta do mesmo liquido." ( ao referir-se ao sangue).


    Parabéns pelo conto


    Bruno Jacinto, nº39099

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  4. Este comentário foi removido pelo autor.

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  5. Boas! Simplesmente adorei o conto. Conseguiste através de palavras transmitir uma grande quantidade de alucinações que no final do conto conseguimos perceber porque aconteceram. Acho que este estado alucinogénico foi muito bem descrito. Só tenho algumas pequenas sugestões que talvez te possam ajudar a melhorar:
    - em “Rodou a maçaneta da porta, apoiando-se nela, o corpo a resvalar para a direita, a vacilar para a esquerda, enquanto tentava manter o equilíbrio físico e mental” eu percebo perfeitamente aquilo que queres dizer mas acho que a frase está um pouco confusa. Talvez a pudesses reescrever.
    -em “dois bilhetes para um concerto de sabe-se lá quem” penso que a frase devia ser alterada para “dois bilhetes para um concerto sabe-se lá de quem”
    Mais uma vez, parabéns!

    nº41199

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