Versão dois de “Descoberta”
PIRITES
Fátima refugiou-se em casa, com o coração aos saltos. Mal acreditava ter-se atrevido a introduzir-se em casa alheia, mas as suas suspeitas confirmavam-se.
Sabia que alguma coisa estava errada com o vizinho. Era o mesmo velho de roupas escuras, casaco coçado e chapéu fora de moda. Todavia algo estava diferente, ou talvez estivesse a ficar paranóica! A sensação era tão forte que lhe causava desconforto físico, agravado pelo facto de não conseguir descortinar a razão das suas desconfianças. De vez em quando, de livros abertos sobre a secretária, a atenção desviava-se-lhe para a janela, espreitando a rua.
Naquele fim de tarde, viu-o sair e, num impulso, resolveu entrar em casa dele. Saiu pelas traseiras, saltou o pequeno muro que separava os dois quintais, investigou porta e janelas. Tudo fechado! Trepou para a pequena varanda do primeiro andar. Levantou o estore… as portas estavam abertas.
O quarto ascético não a surpreendeu. Uma cama vitoriana em mogno, um guarda-
-fatos e mesas-de-cabeceira a condizerem. Para além da imagem no quadro, olhando-a acusadoramente, nada havia que lhe chamasse a atenção. Foi na casa de banho ao lado que descobriu as barbas brancas postiças! De repente, percebeu. Não era a barba, que parecia autêntica, era o andar! O que estranhara era o andar flexível, diferente do habitual caminhar cansado e lento.
Agora, em casa, as interrogações sucediam-se. Não seria sensato contar as suas suspeitas e não poderia aludir às barbas postiças sem revelar como as descobrira…
Fátima acordou assustada. Não recordava bem o pesadelo, mas o quadro aparecia nítido e perturbador. Tinha de voltar àquela casa!
Naquela tarde quente, Fátima cabeceava enquanto lia o calhamaço de Psicologia. As letras do livro dançavam perante os seus olhos sonolentos quando, de súbito, se sentiu alerta e desperta ao avistar, através da janela, o vizinho a sair de casa. Decide aproveitar a oportunidade.
Desta vez, arrisca descer ao andar de baixo. Nem as roupas gastas, nem o exterior modesto da casa, semelhante às do bairro, nem mesmo o quarto que investigara, nada indiciava o que presencia. Mobiliário requintado, tapeçarias persas, estatuetas, quadros antigos, tudo reluzindo numa limpeza meticulosa. Numa vitrina cheia de cristais, um ovo dourado decorado com gemas brilhantes numa pequena carruagem puxada por um anjo. Não devia ser, não podia ser um ovo Fabergé…
Entra na outra sala, a biblioteca. Gravuras alquímicas, idênticas à do quarto, decoram as paredes. Além de alguns livros clássicos escritos nas línguas originais, há sobretudo tratados de alquimia. Estranha também não encontrar aqui a escada para a cave; sabe que todas aquelas casas têm cave. Só lhe resta procurar na cozinha. Lá está, disfarçada num painel no fundo da despensa! Começa a descer as escadas e vislumbra, na obscuridade, um laboratório com bancadas, retortas, bicos de Bunsen. Imagina o velho sentado no banco de tripé, à luz bruxuleante do fogo que aquece as retortas. Um barulho na entrada da casa fá-la correr de volta à cozinha. Sem tempo para sair por onde entrou, experimenta a porta que dá para as traseiras. Trancada! Precipita-se para a despensa.
Suada, o coração acelerado, senta-se no chão, esperando, a cada momento, o abrir da porta do compartimento. Quem entrou subiu as escadas e a casa fica silenciosa. Fátima acalma-se gradualmente. Durante muito tempo não se ouviram ruídos, o vizinho decerto já estava a dormir. Assim, não poderia sair pela varanda por onde entrara. Tentaria a porta principal e se também estivesse trancada usaria uma janela. Levanta-se disposta a sair dali. Procurando não fazer ruído, abre a porta da despensa, mas hesita. A cave é misteriosa e afinal ainda não tem resposta para as suas dúvidas.
Decidida, abre o painel e desce as escadas. Começa a ver tudo mais distintamente após se habituar ao lusco-fusco proporcionado pelas pequenas janelas superiores. Frascos de conteúdo estranho alinham-se em prateleiras numa parede onde estão também alguns armários fechados. Um alambique exala um cheiro alcoólico. Caixas albergam diversos minérios de diferentes colorações, esverdeados, cinzentos, avermelhados, dourados. Pega num cristal que lhe chama a atenção e observa o fulgor alaranjado que este emite.
Nesse preciso momento experimenta um abalo, tem a sensação de descer num elevador a alta velocidade, objectos e paredes parecem prestes a abater-se sobre si. Sobe com dificuldade a escada que sente oscilar a cada passo que dá. Com a visão toldada, abre o painel que lhe parece enorme, só pensando em sair dali. Ao procurar alcançar uma janela, assusta-se com o seu próprio vulto reflectido no espelho da entrada da casa. Larga o cristal que se estilhaça no chão. Na calma que se segue, vê a figura da criança que a olha do outro lado do espelho.
Isabel (41435)
Colega:
ResponderEliminarEncontro no seu conto uma singularidade especial que, não sabendo bem discriminar qual é, faz com que ele próprio me enfeitiçe. Lê-lo é como ser abraçada por uma certa alquimia e ser inundada pelos odores da casa que aqui é descrita.
Álgumas partes são quase arrepiantes e cresce, a cada parágrafo, uma sede enorme de querer sempre saber mais e mais sobre o que vai acontecer. Posso dizer que me senti como a Fátima; parecia que estava na pele dela, e que todo o cansaço, toda a excitação, toda a desconfiança e o medo passavam igualmente por mim. De facto, a parte final do conto emudece qualquer leitor e, para falar das minhas fraquezas, devo dizer que, mesmo agora, estou fugir com o olhar aos espelhos do meu quarto, com medo da aparição dessa figura incógnita.
Queria apenas realçar que é importante rever alguns tempos verbais para que não haja incongruências. Por exemplo, se escolhemos utilizar o pretérito perfeito no conto ("Fátima acordou assustada."), não podemos passar para o tempo presente sem razão aparente: "Decide aproveitar a oportunidade". De resto, tudo me parece bem.
Este conto é, deveras, uma sinestesia.
Parabéns!
41149
Boas! Gostei muito deste conto. Parece-me tão bem escrito que ao longo da leitura nós conseguimos sentir os arrepios da personagem. Tenho apenas algumas pequenas sugestões a dar:
ResponderEliminar-em “Mal acreditava ter-se atrevido a introduzir-se em casa” deveria evitar as duas utilizações do clítico através da reescrita da frase como “que se tinha atrevido a introduzir”
-em “As letras do livro dançavam perante os seus olhos sonolentos quando, de súbito, se sentiu alerta e desperta ao avistar, através da janela, o vizinho a sair de casa. Decide aproveitar a oportunidade.” creio que o verbo decidir deveria estar tal como os outros no pretérito perfeito do indicativo
-finalmente em “Suada, o coração acelerado, senta-se no chão, esperando, a cada momento, o abrir da porta do compartimento” sugiro que da frase seja dividida por um ponto final para evitar o excesso de vírgulas.
41199
Devo dizer que gosto muito mais desta versão do que da primeira! Para além deste novo fim que deixa o leitor curioso e na expectativa, também já não há perda de tempo com pormenores como os "amigos do chat". Concordo com os colegas em relação ao tempo dos verbos, é algo que tem de corrigir, no entanto gostei muito.
ResponderEliminar37958
A nível da escrita, o conto está muito bom e achei-o cativante graças ao seu desenrolar rápido, já que está sempre a acontecer algo e não existem momentos parados. Gostei da ousadia e da curiosidade desta personagem porque, afinal de contas, são essas suas características que fazem o conto avançar de forma emocionante, mas gostei especialmente da realidade com que os sentimentos de Fátima foram descritos, pois como os restantes colegas já disseram, é possível partilhar estes estados de espírito com ela, ao ponto de nos imaginarmos ao lado desta personagem, a passar pelas mesmas situações que ela.
ResponderEliminarA única coisa que tenho a apontar e que já foi também mencionada, é a questão da congruência verbal, pois em certos momentos do texto, senti que a transição de pretérito perfeito para presente do indicativo não era justificada e se encontrava um pouco desajustada. Entendi que o pretendido era dar às acções um carácter mais imediato, mas penso que, ainda assim, a utilização do pretérito perfeito daria mais coesão ao texto, facilitando também a sua leitura.
41131
A fluidez deste conto é muito boa, pois parece que estamos ao lado da personagem a acompanhar os seus actos e a viver o momento com ela. A escrita é muito madura e clara.
ResponderEliminarNão sei se o conto já está concluído, mas penso que seria muito interessante se pudesse continuar, fazendo-nos viver os momentos da personagem.
Gostei muito
Nº 35626
O conto está bastante interessante. O fluxo descritivo está bastante pensado e, em viés, alterna a narração e distrai o leitor. Boa!
ResponderEliminarDaí haver uma clara barreira entre o desconhecido, o alquimista, e a percepção deste. Mas sem mal maior para a estrutura global.
Não poderia deixar de referir que a ligação entre a psicologia e a alquimia, advertida, acredito, revela-se como um ponto de curiosa atenção e discução. Não sei em que medida esta personagem se encontra com a figura de um "mestre", ou se o encontro é travado com a sua "pedra" por polir. A sua personalidade, afinal.
Não queria deixar de referir uma gralha:
"Desta vez, arrisca descer ao andar de baixo. Nem as roupas gastas, nem o exterior modesto da casa, semelhante às do bairro, nem mesmo o quarto que investigara, nada indiciava o que presencia." Parece-me que esta não é a forma adverbial correcta, a do verbo presenciar.
N. 37966