O maior problema de todos é o facto de eu me ter apegado à vida rotineira, e agora perder-me nessas ruas repletas de futilidades, no meu quarto abarrotado com embalagens de gelados, livros, cartas, velas e restos de uma vida imprevisível. Um pormenor que nem a própria vidente deve ter previsto. Não obstante, deve ter razão e isso fez-me furiosa o suficiente para pensar que o casamento com o meu primo não passou de uma tremenda perda de tempo. "…Não há volta a dar…" Por mais que me tentasse abstrair desta frase, não lograva. Era um pensamento constante, daqueles que não envelhecem na memória. Apesar de tudo, acreditei que havia um caminho diferente. Um rumo concebido à imagem de um amor impermeável às rasteiras do destino. Nunca me conformei com o facto de alguém assumir para si o dom de espreitar o futuro dos outros. Para mim foi sempre mais fácil adivinhar o passado. Nunca tive nenhum.
Aquele pensamento perpassava na minha cabeça numa noite de insónia que prometia ser longa. Infelizmente reparei que a embalagem de gelados acabara. Dizem que coisas frescas fazem-me bem à memória. Mas estava com tanto sono que não consegui percorrer o corredor sem ir contra as paredes. Liguei a televisão para distrair as horas que não passavam. Por entre novelas, filmes e séries, parei num canal que quase me fez deixar cair o comando da mão. Um vidente propunha revelar o futuro dos telespectadores. Pego de imediato no telefone a fim de comprovar a veracidade daquilo que a sibilina previu.
Enquanto a chamada demorava a ser atendida, pensei no quão sou parecida àquelas porções de gelado que se derretiam até desaparecer por completo. A vida me tomava em goles e me foi pesando a idade. Peso pesado, presumo. Uma senhora simpática ocupava-me do outro lado da linha, informando que aguardasse. Já aguardei tanto tempo na minha vida, senhora. Pousei o auscultador na mesa-de-cabeceira, ao lado das fotos de família e de paixões fracassadas emolduradas e envernizadas em felicidade. Disse para comigo mesmo: “talvez isto tudo não passe de mais uma tentativa inútil.” Se o vidente me destinar um futuro assombroso, pecarei por me afundar em lágrimas, fechada e enclausurada no meu castelo a sete chaves. É o comum que há nos bruxos: mexem na vida das pessoas. Se me fosse destinado um prémio do Euromilhões, talvez saísse desta monotonia para comprar um folhetim. Porém, se me perco nas ruas da amargura, com previsões viciosas, o mais certo é substituir o calor dos amores por mais uma embalagem de gelados. Fria. E enquanto esperava que o vidente da televisão falasse comigo, comecei a imaginar como teria sido a minha vida se nunca tivesse metido os pés naquela feira.
Aluno nº 40834
Eduardo Pacheco
Bruno Jacinto
Ricardo
Aluno nº 40834
Eduardo Pacheco
Bruno Jacinto
Ricardo
(1ª parte do comentário)
ResponderEliminarCaros Colegas,
Após seis grupos apresentarem as suas propostas de continuação do conto colectivo, talvez tenha chegado mais um momento de ponderação sobre o que já foi escrito e sobre o que poderá vir a concluir esta narrativa. Pessoalmente, reconheço uma necessidade minha de rever o conto como uma colagem de pedaços que se querem unidos e coerentes, pedaços pensados e construídos por pessoas diferentes, com tendências temáticas e sintácticas diversas. Somos cerca de trinta pessoas que querem criar a escrita, testar a criatividade pela escrita, provar a escrita pela criação. É interessantíssimo tentar compreender como pessoas que, maioritariamente, estudam línguas, literaturas, artes e culturas reagem a possibilidade de tomar para si a capacidade de criar literatura. Na nossa faculdade, somos habituados à leitura analítica e mais ou menos crítica da literatura, a prática ensaística científica, ao foco no objecto, no autor e no seu contexto. Parece-me essencial que tenhamos um espaço tutorado em que possamos presenciar e viver os desafios da criação. E dito isto, vou ao que mais interessa neste comentário, ao nosso conto colectivo.
O excerto de um conto de Teresa Veiga indicado pela professora para dar o impulso inicial da escrita deste nosso conto colectivo propôs-nos três personagens, um cenário e dois tempos: a narradora, o primo António, a cigana; Guadalupe; o momento que marca um passado pendente e um presente de insatisfação e ansiedade, sensação que obriga a narradora à uma reflexão sobre os rumos que a sua vida tem tomado. A partir daqui poderíamos ter desenvolvido a narradora como uma mulher insatisfeita que deixou-se embarcar num “projecto” que a levou a renegar um homem que a faria feliz e a ficar sozinha até os oitenta anos. Até agora temos dado ênfase sobretudo ao homem, Miguel, e às reflexões constantes sobre as relações da vida da narradora. De futuro, talvez teremos que desmascarar a “predição desabusada” da cigana, e, imagino, provar que a narradora não viverá sozinha até os oitenta anos por ter cometido um erro num momento específico da sua vida. Não somos obrigados a seguir este fim aparentemente delineado desde o primeiro parágrafo, talvez possamos dar volta à própria narradora e dar-lhe um companheiro no dia seguinte ao seu aniversário de oitenta e um anos. Uma discussão que penso ser interessante e necessária seria relacionada com a total falta de capacidade da narradora em considerar-se feliz sozinha, em construir uma felicidade sem, obrigatoriamente, um homem. Porque é que a narradora só poderá encontrar a “verdadeira” felicidade junto a um homem? Porque é que a nossa personagem principal parece tão obsessiva com a figura masculina como solução para a sua vida? Porque é que ela tem que viajar para encontrar a solução? Porque é que ela não é capaz de descobrir a felicidade dentro de si própria, independentemente do lugar ou da companhia? Aqui talvez exista um natural e inevitável conflito entre diferentes princípios morais e éticos, resultante da heterogeneidade do “colectivo”.
(Cristina Branco, nº37959)
(2ª e última parte do comentário)
ResponderEliminarÉ de assinalar a presença determinante de um campo semântico ligado ao exotismo das Caraíbas, de Guadalupe, da feira e do circo, ao misticismo bruto da cigana e dos seus presságios, e, simultaneamente, relacionado com uma actualidade ocidental presente em narrativas fílmicas e novelísticas que nos rodeiam. Penso que temos que ter cuidado com algumas generalizações e chavões, tanto nas acções, nas atitudes das personagens, como em expressões já banalizadas.
Relativamente à sexta parte aqui apresentada, tenho a dizer que a frase “Mas estava com tanto sono que não consegui percorrer o corredor sem ir contra as paredes.” parece-me deslocada do episódio que o grupo desenvolveu. Pelo que percebi ela estava a passar por uma insónia, então porque é que ela não conseguia percorrer o corredor do hotel sem ir contra as paredes? Para além desta única frase que não consegui encaixar no resto do texto, penso que conseguiram adaptar-se bem ao tipo de linguagem e ao ritmo desenvolvidos nas cinco partes anteriores.
A evolução do nosso conto colectivo testemunha a nossa evolução na disciplina. Assim sendo, espero atentamente pela sétima parte. Será que o vidente da televisão irá desmentir a cigana? Ou dar-lhe-á mais razões para continuar a sua viagem, a sua busca pela felicidade?
Espero ter conseguido expor uma reflexão que, no seu desenrolar, fizesse sentido para vocês. Continuemos o trabalho!
Até a próxima quarta!
Cumprimentos,
Cristina Branco, nº37959
Colegas:
ResponderEliminarDevo dizer, em primeiro lugar, que acho a vossa escrita extremamente saborosa. É deliciosa de se ler, harmoniosa e simples ao mesmo tempo.
Em segundo lugar, penso que a esta altura do campeonato já devíamos ter passado para a fase do desmascarar da cigana. Foi-se trabalhando a terra ao longo das outras partes do conto para tornar proprício o nascimento desse grande clímax e revelação, porém, penso que se roubou demasiado tempo a falar dos sentimentos, inquietações, interrogações, conflitos interiores e suposições desta personagem principal, em vez de se incidir logo na ferida.
Agrada-me bastante a metáfora/imagem dos gelados. Dá uma frescura subtil ao conto, não obstante, surge como uma manobra um bocadinho forçada.
Por outro lado, penso que na altura (anos 70) a televisão fechava, digamos assim, para os seus espectadores a partir de uma determinada hora, portanto, como é que um vidente (e logo um vidente...) estaria do outro lado, a altas horas da noite, a fazer especulações sobre o futuro de outrém?
Em relação à frase que finda esta vossa contribuição: "E enquanto esperava que o vidente da televisão falasse comigo, comecei a imaginar como teria sido a minha vida se nunca tivesse metido os pés naquela feira", acho que a personagem já teve todo o tempo do mundo a seus pés para ponderar sobre isso. Ela interroga-se demasiado, e ainda que isso seja característico da sua personalidade, faz com que todo o processo se atrase ainda mais. Não interessa, neste momento, fazê-la pensar na sua vida caso nunca tivesse ido à feira de Guadalupe, até porque foi essa ida que despoletou toda a causa e essência deste conto.
No entanto, volto a subscrever o vosso talento para a escrita que é inegável.
41149
A criação de um conto colectivo, onde cerca de trinta pessoas contribuem com novos detalhes, e cada um à sua maneira pretende dar um pouco de si à obra, foi sem dúvida um desafio interessante. A maior dificuldade do meu grupo, que deu o seu contributo no início (2ºparte) do conto, foi controlar o impulso de não traçar uma linha condutora que limitasse o desenvolvimento do conto ou o seu fim. Tenho alguma dificuldade em criticar o conto de um, ou outro grupo, pois a parte IV é apenas a continuação da parte III, a parte V a continuação da IV e assim por diante, o que aumenta a dificuldade dos grupos, pois pretendem inserir novos elementos, tendo já este um número significativo de elementos cruciais que já encaminham a história. Contudo após uma releitura de todas as partes do conto, parece-me que as contribuições anteriores seguem uma linha coerente, que em certa medida é quebrada nesta parte do conto. Se o tempo da história até à parte V nos ilustra relativamente a vida de uma mulher nos anos 70, a partir deste momento considero que o conto reporta o leitor para o tempo actual, com características intrínsecas do século XXI, tais como telefonemas para concursos televisivos, ou esta permanecer com a emissão noite fora. O jogo euromilhões (que em Portugal só surge em 2004), também me parece ser outro elemento descontextualizado. Outro elemento que não ficou totalmente claro na minha perspectiva, atem-se com o facto de Maria ter viajado para Guatemala e encontrar-se até à parte V nesse local, e de repente sem uma ligação coerente entre o texto, Maria é reportada para o seu quarto.
ResponderEliminarPartindo da perspectiva que este conto se passa nesta época, mesmo assim não me parece assertivo decidir colocar Maria a ligar para outro vidente, pois na minha visão da personagem Maria não é nem crente nem descrente, é apenas uma mulher com dúvidas conjugais e uma história de passado por resolver. A previsão da bruxa atinge-a no sentido que a faz reflectir sobre o passado e o futuro, num momento em que põe em causa a sua vida, nesse sentido parece que adicionar outro bruxo à história, torna Maria uma personagem crente, retirando em certa medida a importância à bruxa de Guatemala. Contudo como referi inicialmente, considero que não é fácil dar continuidade a uma história já com diversos elementos, aos quais ainda se tem de acrescentar algo de novo. Nesse sentido sei que o contributo do meu grupo foi em muito facilitado, pois pegou no texto quando este ainda se encontrava em aberto.
Nº39034 Soraia Gonçalves